A
gente estranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão, sem lhe dar
a conversação. As visitas de rigor que ele fazia eram poucas,
breves e apenas faladas. E tudo isso foram os primeiros passos. A
pouco e pouco sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das
salas, a saudade do riso, e não tardou que o aposentado da
diplomacia fosse reintegrado no emprego da recreação. A solidão,
tanto no texto bíblico como na tradução do padre, era arcaica.
Aires trocou-lhe uma palavra e o sentido: "Alonguei-me fugindo,
e morei entre a gente".
Assim se foi o programa da vida nova.
Não é que ele já a não entendesse nem amasse, ou que a não
praticasse ainda alguma vez, a espaços, como se faz uso de um
remédio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas, sarava
depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a outra gente, ouvi-la,
cheirá-la, gostá-la, apalpá-la, aplicar todos os sentidos a um
mundo que podia matar o tempo, o imortal tempo.
Assim o deixamos, há apenas dous
capítulos, a um canto da sala da gente Santos, em conversação com
as senhoras. Hás de lembrar-te que Flora não despegava os olhos
dele, ansiosa de saber por que é que a achava inexplicável. A
palavra rasgava-lhe o cérebro, ferindo sem penetrar. Inexplicável
que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica por quê?
Quis perguntá-lo ao conselheiro, mas não achou ocasião, e ele saiu
cedo. A primeira vez, porém, que Aires foi a S. Clemente, Flora
pediu-lhe familiarmente o obséquio de uma definição mais
desenvolvida. Aires sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de
pé.
—Inexplicável
é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de
pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca
tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a árvore é árvore, nem
a choupana. Se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da
figura falem, sempre esses pintores cuidam que eles não dizem nada.
E retocam com tanta paciência, que alguns morrem entre dous olhos,
outros matam-se de desespero.
Flora
achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso és
mais velha e mais fina que ela, pode ser que a não aches mais clara.
Ele é que não acrescentou nada, para não ficar incluído entre os
artistas daquela espécie. Bateu paternalmente na palma da mão de
Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não
iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé dele, a mocinha confessou
que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se
havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada,
melhor seria ficar só na música. A música ia bem com ela, o
francês também, e o inglês.
—Pois só a música, o inglês e o
francês, concordou Aires.
—Mas o senhor promete que não me
achará inexplicável? perguntou ela com doçura.
Antes
que ele respondesse, entraram na sala os dous gêmeos. Flora esqueceu
um assunto por outro, e o velho pelos rapazes. Aires não se demorou
mais que o tempo de a ver rir com eles, e sentir em si alguma cousa
parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.
XXXV
Em volta da moça
Em volta da moça
Já
então os dous gêmeos cursavam um a Faculdade de Direito, em S.
Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que
saíssem formados e prontos, uma para defender o direito e o torto da
gente, outro para ajudá-la a viver e a morrer. Todos os contrastes
estão no homem.
Não
era tanta a política que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora
que os fizesse esquecer a política. Também não eram tais as duas
que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na idade em que tudo se
combina sem quebra de essência de cada cousa. Lá que viessem a amar
a pequena com igual força é o que se podia admitir desde já, sem
ser preciso que ela os atraísse de vontade. Ao contrário, Flora ria
com ambos, sem rejeitar nem aceitar especialmente nenhum; pode ser
até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando
tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era
então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar
vencer do irmão, que vinha pródigo delas. E Flora recebia-as todas
com o mesmo rosto amigo.
Note-se
— e este ponto deve ser tirado à luz, — note-se que os dous
gêmeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos.
Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuía em
cada um deles a feição pessoal. Demais, Flora simulava às vezes
confundi-los, para rir com ambos. E dizia a Pedro:
—Dr. Paulo!
E
dizia a Paulo:
—Dr. Pedro!
Em vão eles mudavam da esquerda para
a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes também,
e os três acabavam rindo. A familiaridade desculpava a ação e
crescia com ela. Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora
conversava. Pedro ia mais com o piano que com a conversa; Flora
tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e tocava falando, soltava a
rédea aos dedos e à língua.
Tais eram as grandes pinceladas da
imaginação dos dous. As estrelas recebiam no céu todos os
pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta e a vaga da praia
estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si ao pé de casa.
Tal ou qual impulso quis levá-los a discutir acerca do tempo e da
noite, da temperatura e da enseada. Algum murmúrio vago pode ser que
lhes fizesse mover os beiços e começar a quebrar o silêncio, mas o
silêncio era tão augusto que concordaram em respeitá-lo. E logo
acharam de si para si que a lua era esplêndida, a enseada bela e a
temperatura divina.
XXXVII
Desacordo no acordo
Desacordo no acordo
Não
esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravíssima os fez
concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica o
fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do
outro, mas a opinião uniu-os.
A diferença única entre eles dizia
respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de
justiça, e para Paulo era o início da revolução. Ele mesmo o
disse, concluindo um discurso em S. Paulo, no dia 20 de maio: "A
abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o
preto, resta emancipar o branco".
Natividade ficou atônita quando leu
isto; pegou da pena e escreveu uma carta longa e maternal. Paulo
respondeu com trinta mil expressões de ternura, declarando no fim
que tudo lhe poderia sacrificar, inclusive a vida e até a honra; as
opiniões é que não. "Não, mamãe; as opiniões é que não".
Natividade
não acabava de entender os sentimentos do filho, ela que sacrificara
as opiniões aos princípios, como no caso de Aires, e continuou a
viver sem mácula. Como então não sacrificar?... Não achava
explicação. Relia a frase da carta e a do discurso; tinha medo de o
ver perder a carreira política, se era a política que o faria
grande homem. "Emancipado o preto, resta emancipar o branco",
era uma ameaça ao imperador e ao império.
Não
atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a frase do
discurso não era propriamente do filho; não era de ninguém. Alguém
a proferiu um dia. em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de
terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua.
Era nova, era enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio
comum.
Há
frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando
menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias.
As próprias ideias nem sempre conservam o nome do pai; muitas
aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas,
verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por
suas.
XXXVIII
Chegada a propósito
Chegada a propósito
Quando,
às duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se meteu no
bonde, para ir a não sei que compras na Rua do Ouvidor, levava a
frase consigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que
passava, nem os incidentes da rua, nada; a frase ia diante e dentro
dela, com o seu aspecto e tom de ameaça. No Catete, alguém entrou
de salto, sem fazer parar o veículo. Adivinha que era o conselheiro;
adivinha também que, posto o pé no estribo, e vendo logo adiante a
nossa amiga, caminhou para lá rápido e aceitou a ponta do banco que
ela lhe ofereceu. Depois dos primeiros cumprimentos:
—Pareceu-me vê-la olhar assustada,
disse Aires.
—Naturalmente, não imaginei que
fosse capaz deste ato de ginástica.
—Questão de costume. As pernas
saltam por si mesmas. Um dia. deixam-me cair, as rodas passam por
cima...
—Fosse como fosse, chegou a
propósito.
—Chego sempre a propósito. Já lhe
ouvi isso, uma vez, há muitos anos, ou foi a sua irmã... Ora,
espere, não me esqueceu o motivo; creio que falavam da cabocla do
Castelo. Não se lembra de uma tal ou qual cabocla que morava no
Castelo, e adivinhava a sorte da gente? Eu estava aqui de licença, e
ouvi dizer cousas do arco-da-velha. Como sempre tive fé em Sibilas,
acreditei na cabocla. Que fim levou ela?
Natividade
olhou para ele, como receando se teria adivinhado então a consulta
que ela fez à cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu e chamou-lhe
incrédulo. Aires negou que fosse incrédulo; ao contrário, sendo
tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo. E
concluiu:
—Mas, enfim, por que é que chego a
propósito?
Ou o passado, ou a pessoa, com as suas
maneiras discretas e espírito repousado, ou tudo isso junto, dava a
este homem, relativamente a esta senhora, uma confiança que ela não
achava agora em ninguém ou acharia em poucos. Falou-lhe de uma
confidência, um papel que não mostraria ao marido.
Pode corrigi-los por boas maneiras;
fazê-los unidos, ainda quando discordem, e que discordem pouco ou
nada. Não imagina; parece até propósito. Não discordam da cor da
Lua, por exemplo, mas aos onze anos Pedro descobriu que as sombras da
Lua eram nuvens, e Paulo que eram falhas da nossa vista, e
atracaram-se; eu é que os separei. Imagine em política...
—Oh! não!
—Para
os outros é igualmente inútil, mas eu nasci para servir, ainda
inutilmente. Baronesa, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou
preceptor... Não faça gestos; não me dou por diminuído Contanto
que me pague os ordenados... E não se assuste; peço pouco, pague-me
em palavras; as suas palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a
minha ação é inútil.
—É! inútil.
—Uma pessoa de autoridade, como o
senhor, pode muito, contanto que os ame, porque eles são bons,
creia. Conhece-os bem?
—Pouco.
—Conheça-os mais e verá.
Aires concordou rindo. Para Natividade
valia por uma tentativa nova. Confiava na ação do conselheiro, e
para dizer tudo... Não sei se diga... Digo. Natividade contava com a
antiga inclinação do velho diplomata. As cãs não lhe tirariam o
desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta ocasião. Se é homem,
talvez não entenda logo, mas se é mulher creio que entenderá. Se
ninguém entender paciência; basta saber que ele prometeu o que ela
quis, e também prometeu calar-se; foi a condição que a outra lhe
pos. Tudo isso polido, sincero e incrédulo.
XXXIX
Um gatuno
Um gatuno
Chegaram
ao Largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ela entrou pela Rua
Gonçalves Dias, ele enfiou pela da Carioca. No meio desta, Aires
encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em direção
ao largo. Aires quis arrepiar caminho, não de medo, mas de horror.
Tinha horror à multidão. Viu que a gente era pouca, cinquenta ou
sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a prisão de um homem.
Entrou num corredor, à espera que o magote passasse. Duas praças de
polícia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este
resistia, e então era preciso arrastá-lo ou forçá-lo por outro
método. Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira.
—Não furtei nada! — bradava o
preso detendo o passo. É falso! Larguem-me! sou um cidadão livre!
Protesto! protesto!
—Siga para a estação!
—Não sigo!
—Não siga! bradava a gente anônima.
Não siga! não siga!
Uma
das praças quis convencer a multidão que era verdade, que o sujeito
furtara uma carteira, e o desassossego pareceu minorar um pouco; mas,
indo a praça a andar com a outra e o preso, — cada uma pegando-lhe
um dos braços, a multidão recomeçou a bradar contra a violência.
O preso sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora agressivo, convidava
a defesa. Foi então que a outra praça desembainhou a espada para
fazer um claro. A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a
pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de atropelo, pula aqui,
pula ali, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na
bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram
vingança das pernas, e um clamor ingente, largo, desafrontando,
encheu a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez compacta
e caminhou para a estação policial. Aires seguiu caminho.
A
vozeira morreu pouco a pouco, e Aires entrou na Secretaria do
Império. Não achou o ministro, parece, ou a conferência foi curta.
Certo é que, saindo à praça, encontrou partes do magoté que
tornavam comentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas
gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam há pouco contra a
ação das praças, como riam agora das lástimas do preso.
—Ora o sujeito!
Mas então... perguntarás tu. Aires
não perguntou nada. Ao cabo, havia um fundo de justiça naquela
manifestação dupla e contraditória; foi o que ele pensou. Depois,
imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um velho
instinto de resistência à autoridade. Advertiu que o homem, uma vez
criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso
para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição.
Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e
ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando
sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre,
sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho
Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires.
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