—E você é um furioso...
—Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a nossa língua e a
prosa do nosso tempo.
XLVI
Entre um ato e outro
Entre um ato e outro
Aqueles
almoços repetiram-se, os meses passaram, vieram férias acabaram-se férias, e
Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no Memorial, onde se lê que a
consulta ao velho Plácido dizia respeito aos dous, e mais a ida à cabocla do
Castelo a briga antes de nascer, casos velhos e obscuros que ele relembrou,
ligou e decifrou.
Enquanto
os meses passam, fazer de conta que estás no teatro, entre um ato e outro,
conversando. Lá dentro preparam a cena, e os artistas mudam de roupa. Não vás
lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fora
com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a
vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do
espectador é que tem verdes e flores. Deixa-te estar cá fora no camarote desta
senhora. Examina-lhe os olhos; têm ainda as lágrimas que lhe arrancou a dama da
peça. Fala-lhe da peça e dos artistas. Que é obscura. Que não sabem os papéis.
Ou então que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binóculo,
distribui justiça, chama belas às belas e feias às feias, e não te esqueças de
contar anedotas que desfeiem as belas, e virtudes que componham as feias. As
virtudes devem ser grandes e as anedotas engraçadas. Também as há banais, mas a
mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás
como as lágrimas secam inteiramente, e a realidade substitui a ficção. Falo por
imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.
XLVII
S. Mateus, IV, 1-10
S. Mateus, IV, 1-10
Se
há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que
desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como nos
Gênesis. Venhamos ao evangelista que serve de título ao capítulo. Os liberais
foram chamados ao poder, que os conservadores tiveram de deixar. Não é mister
dizer que o abatimento de Batista foi enorme.
—Justamente agora que eu tinha esperanças, disse ele à mulher.
—De quê?
—Ora de quê! de uma presidência. Não disse nada, porque podiam falhar, mas é
quase certo que não. Tive duas conferências, não com ministros, mas com pessoa
influente que sabia, e era negócio de esperar um mês ou dous...
—Presidência boa?
—Boa.
—Se você tinha trabalhado bem...
—Se tivesse trabalhado bem, podia estar já de posse, mas vínhamos agora a toque
de caixa.
—Isso é verdade, concordou D. Cláudia olhando para o futuro.
Batista
passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando, sem prever o tempo
em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberais estavam fortes e
resolutos. As mesmas ideias pairavam na cabeça de D. Cláudia. Este casal só não
era igual na vontade; as ideias eram muitas vezes tais que, se aparecessem cá
fora, ninguém diria quais eram as dele, nem quais as dela, pareciam vir de um
cérebro único. Naquele momento nenhum achava esperança imediata ou remota. Uma
só ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. Cláudia fincou os pés no chão e
cresceu. Não falo só por imagem;
D.
Cláudia levantou-se da cadeira, rápida, e disparou esta pergunta ao marido:
—Mas, Batista, você o que é que espera mais dos conservadores?
Batista
parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:
—Espero que subam.
—Que subam? Espera oito ou dez anos, o fim do século, não é? E nessa ocasião
você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?
—Posso fundar um jornal.
—Deixe-se de jornais. E se morrer?
—Morro no meu posto de honra.
D.
Cláudia olhou fixa para ele. Os seus olhos miúdos enterravam-se pelos dele
abaixo, como duas verrumas pacientes. Súbito, levantando as mãos abertas:
—Batista, você nunca foi conservador!
O
marido empalideceu e recuou, como se ouvira a própria ingratidão de um partido.
Nunca fora conservador? Mas que era ele então, que podia ser neste mundo? Que é
que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe faltava mais nada... D. Cláudia
não atendeu a explicações, repetiu-lhe as palavras, e acrescentou:
—Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as
mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.
Batista
sorriu leve e rápido; amava as imagens graciosas e aquela pareceu-lhe
graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela inspirou-lhe uma
refutação pronta.
—Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.
—Dance com que for, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberais;
lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você de apoiar os
liberais...
—Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso mostrar cartas.
—Qual moderação! Você é liberal.
—Eu liberal?
—Um liberalão, nunca foi outra cousa.
—Pense no que diz, Cláudia. Se alguém a ouvir é capaz de crer, e daí a
espalhar...
—Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus
verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua agora que tudo se organiza. Você
tem amigos pessoais no ministério, por que é que os não procura?
Batista
recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava às
ordens não era concebível sequer. D. Cláudia admitiu que não, mas um amigo
faria tudo, um amigo íntimo do governo que dissesse ao Ouro Preto:
"Visconde, você por que é que não convida o Batista? Foi sempre liberal
nas ideias. Dê-lhe uma presidência, pequena que seja, e...
Batista
fez um gesto de ombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi
dizendo as mesmas cousas, agora mais graves pela insistência e pelo tom. Na
alma do marido a catástrofe era já tremenda. Pensando bem, não recusaria passar
o Rubicon; só lhe faltava a força necessária. Quisera querer. Quisera não ver
nada, nem passado, nem presente, nem futuro, não saber de homens nem de cousas,
e obedecer aos dados da sorte, mas não podia.
E
façamos justiça ao homem. Quando ele pensava só na fidelidade aos amigos
sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a mesma esperança. O mal
vinha de olhar para o lado de lá; e era D. Cláudia que lhe mostrava com o dedo
a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidência, o
ministério... Ele torcia os olhos e ficava.
A
sós consigo, Batista pensou muita vez na situação pessoal e política.
Apalpava-se moralmente. Cláudia podia ter razão. Que é que havia nele
propriamente conservador, a não ser esse instinto de toda criatura, que a ajuda
a levar este mundo? Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o tio,
os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a execrar os
liberais. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema como os
liberais eram luzias. Batista agarrava-se agora a estas designações obsoletas e
deprimentes que mudavam o estilo aos partidos; donde vinha que hoje não havia
entre ele o grande abismo de 1842 e 1848. E lembrava-se do Visconde de
Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais
parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o
Partido Progressista, Olinda, Nabuco, Zacarias, que foram eles senão
conservadores que compreenderam os tempos novos e tiraram às ideias liberais
aquele sangue das revoluções, para lhes pôr uma cor viva, sim, mas serena. Nem
o mundo era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha.
Justamente nessa ocasião apareceu Flora. O pai abraçou-a com amor, e
perguntou-lhe se queria ir para alguma província, sendo ele presidente.
—Mas os conservadores não caíram?
—Caíram, sim, mas supõe que...
—Ah! não, papai!
—Não, por quê?
—Não desejo sair do Rio de Janeiro.
Talvez
o Rio de Janeiro para ela fosse Botafogo, e propriamente a casa de Natividade.
O pai não apurou as causas da recusa; supô-las políticas, e achou novas forças
para resistir às tentações de D. Cláudia: "Vai-te, Satanás; porque escrito
está: Ao Senhor teu Deus adorarás, e a ele servirás". E seguiu-se como na
Escritura: "Então o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anos e o
serviram". Os anjos foram só um, que valia por muitos; e o pai lhe disse
beijando-a carinhosamente:
—Muito bem, muito bem, minha filha.
—Não é, papai?
Não,
não foi a filha que tolheu a deserção do pai. Ao contrário. Batista, se tivesse
de ceder, cederia à mulher ou ao Diabo, sinônimos neste capítulo. Não cedeu de
fraqueza. Não tinha a força precisa de trair os amigos, por mais que estes
parecessem havê-lo abandonado. Há dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e
nem por isso menos lucrativas, moralmente falando. Não valem só estoicos e
mártires. Virtudes meninas também são virtudes. É certo, porém, que a linguagem
dele, em relação aos liberais, não era já de ódio ou impaciência; chegava à
tolerância, roçava pela justiça. Concordava que a alternação dos partidos era
um princípio de necessidade pública. O que fazia era animar os amigos.
Tornariam cedo ao poder. Mas D. Cláudia opinava o contrário; para ela, os
liberais iriam ao fim do século. Quando muito, admitiu que na primeira entrada
não dessem lugar a um converso da última hora; era preciso esperar um ano ou
dous, uma vaga na Câmara, uma comissão, a vice-presidência do Rio...
XLVIII
Terpsícore
Terpsícore
Nenhuma
dessas cousas preocupava Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da ilha
Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos. Não é que
ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião
de que a dança é um prazer dos olhos. Esta opinião é um dos efeitos daquele mau
costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Há outros também ruis,
nenhum pior, este é o péssimo. Deixa lá dizerem filósofos que a velhice é um
estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha,
por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o
estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas
não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre.
Bem
sei que há gente para quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem as
bailadeiras são outra cousa mais que mulheres de ofício. Também eu, se é lícito
citar alguém a si mesmo, também eu acho que a dança é antes prazer dos olhos
que dos pés, e a razão não é só dos anos longos e grisalhos, mas também outra
que não digo, por não valer a pena. Ao cabo, não estou contando a minha vida,
nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro.
Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições,
se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em
repeti-lo.
Por
exemplo, D. Cláudia. Também ela pensava no baile da ilha Fiscal, sem a menor ideia
de dançar, nem a razão estética da outra. Para ela, o baile da ilha era um fato
político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao
marido as portas de alguma presidência. Via-se já com a família imperial. Ouvia
a princesa:
—Como vai, D. Cláudia?
—Perfeitamente bem, Sereníssima senhora.
E
Batista conversaria com o imperador, a um canto, diante dos olhos invejosos que
tentariam ouvir o diálogo, à força de os fitarem de longe. O marido é que...
Não sei que diga do marido relativamente ao baile da ilha. Contava lá ir, mas
não se acharia a gosto; pode ser que traduzissem esse ato por meia conversão.
Não é que só fossem liberais ao baile, também iriam conservadores, e aqui cabia
bem o aforismo de D. Cláudia que não é preciso ter as mesmas ideias para dançar
a mesma quadrilha.
Santos
é que não precisava de ideias para dançar. Não dançaria sequer. Em moço dançou
muito, quadrilhas, polcas, valsas, a valsa arrastada e a valsa pulada, como
diziam então, sem que eu possa definir melhor a diferença; presumo que na
primeira os pés não saíam do chão, e na segunda não caíam do ar. Tudo isso até
os vinte e cinco anos. Então os negócios pegaram dele e o meteram naquela outra
contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo lugar ou nunca se sai dele.
Santos saiu e já sabemos onde está. Ultimamente teve a fantasia de ser
deputado. Natividade abanou a cabeça, por mais que ele explicasse que não
queria ser orador nem ministro, mas tão somente fazer da Câmara um degrau para
o Senado, onde possuía amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno.
—Eterno? interrompeu ela com um sorriso fino e descorado.
—Vitalício, quero dizer.
Natividade
teimou que não, que a posição dele era comercial e bancária. Acrescentou que
política era uma cousa e indústria outra. Santos replicou, citando o Barão de
Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher declarou por um modo seco e duro que
aos sessenta anos ninguém começa a ser deputado.
—Mas é de passagem; os senhores são idosos.
—Não, Agostinho, concluiu a baronesa com um gesto definitivo.
Não
conto Aires, que provavelmente dançaria, a despeito dos anos; também não falo
de D. Perpétua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural que dançasse, e muito,
não obstante o afinco e paixão dos seus estudos. Vivia enfeitiçado pela
medicina. No quarto de dormir, além do busto de Hipócrates, tinha os retratos
de algumas sumidades médicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita moléstia
pintada, peitos cortados verticalmente para se lhes verem os vasos, cérebros
descobertos, um cancro de língua, alguns aleijões, cousas todas que a mãe, por
seu gosto, mandaria deitar fora, mas era a ciência do filho, e bastava.
Contentava-se de não olhar para os quadros.
Quanto
a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsícore, era acanhada ou arrepiada,
como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que com pouco se enfadaria, e,
se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se
que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos;
mas, se lhe lembrasse o mar, e se consolasse com a esperança de o mirar
advertiria também que a noite escura tolheria a consolação. Que multidão de
dependências na vida, leitor! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se,
desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si.
Nenhum comentário:
Postar um comentário