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domingo, 9 de março de 2014

Esaú e Jacó - Machado de Assis [parte 11]

  —E você é um furioso...
        —Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a nossa língua e a prosa do nosso tempo.

XLVI
Entre um ato e outro

Aqueles almoços repetiram-se, os meses passaram, vieram férias acabaram-se férias, e Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no Memorial, onde se lê que a consulta ao velho Plácido dizia respeito aos dous, e mais a ida à cabocla do Castelo a briga antes de nascer, casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou.
Enquanto os meses passam, fazer de conta que estás no teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá dentro preparam a cena, e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. Deixa-te estar cá fora no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; têm ainda as lágrimas que lhe arrancou a dama da peça. Fala-lhe da peça e dos artistas. Que é obscura. Que não sabem os papéis. Ou então que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binóculo, distribui justiça, chama belas às belas e feias às feias, e não te esqueças de contar anedotas que desfeiem as belas, e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e as anedotas engraçadas. Também as há banais, mas a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as lágrimas secam inteiramente, e a realidade substitui a ficção. Falo por imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.


XLVII
S. Mateus, IV, 1-10

Se há muito riso quando um partido sobe, também há muita lágrima do outro que desce, e do riso e da lágrima se faz o primeiro dia da situação, como nos Gênesis. Venhamos ao evangelista que serve de título ao capítulo. Os liberais foram chamados ao poder, que os conservadores tiveram de deixar. Não é mister dizer que o abatimento de Batista foi enorme.
        —Justamente agora que eu tinha esperanças, disse ele à mulher.
        —De quê?
        —Ora de quê! de uma presidência. Não disse nada, porque podiam falhar, mas é quase certo que não. Tive duas conferências, não com ministros, mas com pessoa influente que sabia, e era negócio de esperar um mês ou dous...
        —Presidência boa?
        —Boa.
        —Se você tinha trabalhado bem...
        —Se tivesse trabalhado bem, podia estar já de posse, mas vínhamos agora a toque de caixa.
        —Isso é verdade, concordou D. Cláudia olhando para o futuro.
Batista passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando, sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberais estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na cabeça de D. Cláudia. Este casal só não era igual na vontade; as ideias eram muitas vezes tais que, se aparecessem cá fora, ninguém diria quais eram as dele, nem quais as dela, pareciam vir de um cérebro único. Naquele momento nenhum achava esperança imediata ou remota. Uma só ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. Cláudia fincou os pés no chão e cresceu. Não falo só por imagem;
D. Cláudia levantou-se da cadeira, rápida, e disparou esta pergunta ao marido:
        —Mas, Batista, você o que é que espera mais dos conservadores?
Batista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:
        —Espero que subam.
        —Que subam? Espera oito ou dez anos, o fim do século, não é? E nessa ocasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?
        —Posso fundar um jornal.
        —Deixe-se de jornais. E se morrer?
        —Morro no meu posto de honra.
D. Cláudia olhou fixa para ele. Os seus olhos miúdos enterravam-se pelos dele abaixo, como duas verrumas pacientes. Súbito, levantando as mãos abertas:
        —Batista, você nunca foi conservador!
O marido empalideceu e recuou, como se ouvira a própria ingratidão de um partido. Nunca fora conservador? Mas que era ele então, que podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe faltava mais nada... D. Cláudia não atendeu a explicações, repetiu-lhe as palavras, e acrescentou:
        —Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.
Batista sorriu leve e rápido; amava as imagens graciosas e aquela pareceu-lhe graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela inspirou-lhe uma refutação pronta.
        —Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.
        —Dance com que for, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você de apoiar os liberais...
        —Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso mostrar cartas.
        —Qual moderação! Você é liberal.
        —Eu liberal?
        —Um liberalão, nunca foi outra cousa.
        —Pense no que diz, Cláudia. Se alguém a ouvir é capaz de crer, e daí a espalhar...
        —Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua agora que tudo se organiza. Você tem amigos pessoais no ministério, por que é que os não procura?
Batista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava às ordens não era concebível sequer. D. Cláudia admitiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo íntimo do governo que dissesse ao Ouro Preto: "Visconde, você por que é que não convida o Batista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidência, pequena que seja, e...
Batista fez um gesto de ombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves pela insistência e pelo tom. Na alma do marido a catástrofe era já tremenda. Pensando bem, não recusaria passar o Rubicon; só lhe faltava a força necessária. Quisera querer. Quisera não ver nada, nem passado, nem presente, nem futuro, não saber de homens nem de cousas, e obedecer aos dados da sorte, mas não podia.
E façamos justiça ao homem. Quando ele pensava só na fidelidade aos amigos sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a mesma esperança. O mal vinha de olhar para o lado de lá; e era D. Cláudia que lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidência, o ministério... Ele torcia os olhos e ficava.
A sós consigo, Batista pensou muita vez na situação pessoal e política. Apalpava-se moralmente. Cláudia podia ter razão. Que é que havia nele propriamente conservador, a não ser esse instinto de toda criatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o tio, os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a execrar os liberais. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema como os liberais eram luzias. Batista agarrava-se agora a estas designações obsoletas e deprimentes que mudavam o estilo aos partidos; donde vinha que hoje não havia entre ele o grande abismo de 1842 e 1848. E lembrava-se do Visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o Partido Progressista, Olinda, Nabuco, Zacarias, que foram eles senão conservadores que compreenderam os tempos novos e tiraram às ideias liberais aquele sangue das revoluções, para lhes pôr uma cor viva, sim, mas serena. Nem o mundo era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha. Justamente nessa ocasião apareceu Flora. O pai abraçou-a com amor, e perguntou-lhe se queria ir para alguma província, sendo ele presidente.
        —Mas os conservadores não caíram?
        —Caíram, sim, mas supõe que...
        —Ah! não, papai!
        —Não, por quê?
        —Não desejo sair do Rio de Janeiro.
Talvez o Rio de Janeiro para ela fosse Botafogo, e propriamente a casa de Natividade. O pai não apurou as causas da recusa; supô-las políticas, e achou novas forças para resistir às tentações de D. Cláudia: "Vai-te, Satanás; porque escrito está: Ao Senhor teu Deus adorarás, e a ele servirás". E seguiu-se como na Escritura: "Então o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anos e o serviram". Os anjos foram só um, que valia por muitos; e o pai lhe disse beijando-a carinhosamente:
        —Muito bem, muito bem, minha filha.
        —Não é, papai?
Não, não foi a filha que tolheu a deserção do pai. Ao contrário. Batista, se tivesse de ceder, cederia à mulher ou ao Diabo, sinônimos neste capítulo. Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força precisa de trair os amigos, por mais que estes parecessem havê-lo abandonado. Há dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos lucrativas, moralmente falando. Não valem só estoicos e mártires. Virtudes meninas também são virtudes. É certo, porém, que a linguagem dele, em relação aos liberais, não era já de ódio ou impaciência; chegava à tolerância, roçava pela justiça. Concordava que a alternação dos partidos era um princípio de necessidade pública. O que fazia era animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D. Cláudia opinava o contrário; para ela, os liberais iriam ao fim do século. Quando muito, admitiu que na primeira entrada não dessem lugar a um converso da última hora; era preciso esperar um ano ou dous, uma vaga na Câmara, uma comissão, a vice-presidência do Rio...

XLVIII
Terpsícore

Nenhuma dessas cousas preocupava Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da ilha Fiscal, que se realizou em novembro para honrar os oficiais chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer dos olhos. Esta opinião é um dos efeitos daquele mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Há outros também ruis, nenhum pior, este é o péssimo. Deixa lá dizerem filósofos que a velhice é um estado útil pela experiência e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os anos te convidem a deixar a primavera; quando muito, aceita o estio. O estio é bom, cálido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu aparece logo azul. Assim dançarás sempre.
Bem sei que há gente para quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem as bailadeiras são outra cousa mais que mulheres de ofício. Também eu, se é lícito citar alguém a si mesmo, também eu acho que a dança é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos anos longos e grisalhos, mas também outra que não digo, por não valer a pena. Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo.
Por exemplo, D. Cláudia. Também ela pensava no baile da ilha Fiscal, sem a menor ideia de dançar, nem a razão estética da outra. Para ela, o baile da ilha era um fato político, era o baile do ministério, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidência. Via-se já com a família imperial. Ouvia a princesa:
        —Como vai, D. Cláudia?
        —Perfeitamente bem, Sereníssima senhora.
E Batista conversaria com o imperador, a um canto, diante dos olhos invejosos que tentariam ouvir o diálogo, à força de os fitarem de longe. O marido é que... Não sei que diga do marido relativamente ao baile da ilha. Contava lá ir, mas não se acharia a gosto; pode ser que traduzissem esse ato por meia conversão. Não é que só fossem liberais ao baile, também iriam conservadores, e aqui cabia bem o aforismo de D. Cláudia que não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.
Santos é que não precisava de ideias para dançar. Não dançaria sequer. Em moço dançou muito, quadrilhas, polcas, valsas, a valsa arrastada e a valsa pulada, como diziam então, sem que eu possa definir melhor a diferença; presumo que na primeira os pés não saíam do chão, e na segunda não caíam do ar. Tudo isso até os vinte e cinco anos. Então os negócios pegaram dele e o meteram naquela outra contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo lugar ou nunca se sai dele. Santos saiu e já sabemos onde está. Ultimamente teve a fantasia de ser deputado. Natividade abanou a cabeça, por mais que ele explicasse que não queria ser orador nem ministro, mas tão somente fazer da Câmara um degrau para o Senado, onde possuía amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno.
        —Eterno? interrompeu ela com um sorriso fino e descorado.
        —Vitalício, quero dizer.
Natividade teimou que não, que a posição dele era comercial e bancária. Acrescentou que política era uma cousa e indústria outra. Santos replicou, citando o Barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher declarou por um modo seco e duro que aos sessenta anos ninguém começa a ser deputado.
        —Mas é de passagem; os senhores são idosos.
        —Não, Agostinho, concluiu a baronesa com um gesto definitivo.
Não conto Aires, que provavelmente dançaria, a despeito dos anos; também não falo de D. Perpétua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural que dançasse, e muito, não obstante o afinco e paixão dos seus estudos. Vivia enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, além do busto de Hipócrates, tinha os retratos de algumas sumidades médicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita moléstia pintada, peitos cortados verticalmente para se lhes verem os vasos, cérebros descobertos, um cancro de língua, alguns aleijões, cousas todas que a mãe, por seu gosto, mandaria deitar fora, mas era a ciência do filho, e bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros.
Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsícore, era acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que com pouco se enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse o mar, e se consolasse com a esperança de o mirar advertiria também que a noite escura tolheria a consolação. Que multidão de dependências na vida, leitor! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si.



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