O ouriço é um bicho poético por natureza porque parece
intocável. Há nele a alegoria perfeita de que tudo tem, no mínimo, dois lados,
duas possibilidades de olhar. O ouriço e suas costas cheias de pelos-espinhos,
o bicho capaz de se enrodilhar e virar uma bola de agressão, de dor, de medo
para quem chega perto, é o mesmo bicho macio e delicado, um bicho frágil,
angustiado por sua condição dupla: espinho e candura. Muitas pessoas são assim,
ouriçadas. Obviamente algumas se tornaram apenas espinhos, sem dentro, sem
espaço macio, mas outras não, outras carregam nas costas o peso dolorido da
vida, e mal ou bem, passam adiante esse peso, mas também tem uma elegância, uma
vontade de serem mais leves, menos secretas em suas qualidades. Somos rasos por
natureza, nos apoiamos muito nas aparências, então ao vermos um ouriço só vemos
seu externo, seu perigo, pouco vemos o dentro, o lado encostado à terra, o lado
que precisa, de uma forma ou outra, ser protegido.
Na verdade, somos todos meio
ouriços, somos todos meio casca agressiva, seja para nos mantermos vivos e
dignos, seja pelo medo de sofrer mais ainda. A questão fica por conta da falta
de equilíbrio de alguns: muitos se disfarçam em espinhos que se transformam em
um deles. É o verso de Fernando Pessoa revivendo, reafirmando uma verdade:
“Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. / Quando quis
tirar a máscara, / Estava pegada à cara. / Quando a tirei e me vi ao espelho, /
Já tinha envelhecido.” Esse é o perigo, uma vida se enrolando, se fazendo bola
de espinho, se fazendo máscara, para depois descobrir-se velho, descobrir-se
azedume e impossibilidade de retorno. Não que tudo tenha que ser sempre doçura,
candura ou uma vida rimada no sentimentalismo de Poliana, mas algum bom senso,
algum espaço para entregas, para confianças, para o uso delicado e poético da
vida temos que ter. Viver é ter sempre esse cuidado de não deixar que a máscara
se apegue à cara, que o espinho não atravesse a pele e atinja algo dentro. Mas
também tem o outro, afinal existimos em função do outro. Ninguém é uma ilha, já
anuncia a séculos o clichê, somos comunidade, e isso nos ouriça, isso nos faz
enrodilhar muitas vezes. Viver é conseguir, de uma maneira ou outra, que o
enrodilhamento, que o espinhamento, não seja total, não seja para todo o
sempre, não seja a única maneira que temos de contato com a pele do outro. As
defesas são justificáveis, o problema se estabelece quando defesas se
transformam em ataque, ou quando o ataque é a melhor defesa, dai as relações se
estremessem, daí somos apenas espinhos nas bocas dos cães, nada mais. Toda a
delicadeza, toda a maciez se perdeu, pois deixamos nos outros apenas nossa
casca, nossa máscara, nossa dor apegada à cara. Mostrar o rosto verdadeiro,
mostrar o dentro do corpo, muitas vezes, é um ato bem mais corajoso e
libertador do que nos protegermos com os espinhos, mesmo que para isso tenhamos
que baixar as defesas, tenhamos sair um pouco da zona de segurança e
invadirmos, frágeis e delicados, o desconhecido.
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