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domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães [parte 10]

Ora, deixem-me em paz, - disse Martinho, com os olhos
atentamente dirigidas para o salão de dança. - Estou calculando o meu jogo...
suponham que é o xadrez, e que eu vou dar xeque-mate à rainha... dito e feito, e os
cinco contos são meus...
- Não há dúvida, o rapaz está doido varrido... Anda lá, Martinho;
descobre o teu jogo, ou vai-te embora, e não nos estejas a maçar a
paciência com tuas maluquices.
- Malucos são vocês. O meu jogo é este... mas quanto me dão
para descobri-lo? olhem que é coisa curiosa.
- Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres,
não é assim?... pois desta vez afianço-te da minha parte, que não
arranjas nada. Vai-te aos diabos com o teu jogo, e deixa-nos cá com
o nosso. As cartas, meus amigos, e deixemos o Martinho com suas
maluquices.
- Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.
- Ah! toleirões! - exclamou o Martinho, - vocês ainda estão
com os beiços com que mamaram. Andem cá, andem, e verão se é
maluquice, nem velhacaria. Enfim quero mostrar-lhes o meu jogo,
porque desejo ver se a opinião de vocês estará ou não de acordo
com a minha. Eis aqui a minha bisca. - concluiu Martinho mostrando um
papel, que sacou da algibeira; - não é nada mais que um anúncio de
escravo fugido.
- Ah! ah! ah! esta não é má!...

- Que disparate!... decididamente estás louco, meu Martinho.
- A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?...
- Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?
Estas e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um
coro de intermináveis gargalhadas, que competiam com a orquestra do
baile.
- Não sei de que tanto se espantam, - replicou frescamente o
Martinho; - o que admira é que ainda não vissem este grande anúncio
em avulso, que veio do Rio de Janeiro, e foi distribuído por toda a
cidade com o jornal do Comércio.
- Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos
embaraçarmos com semelhantes anúncios?
- Mas olhem que o negócio é dos mais curiosos, e as alvíssaras
não são para se desprezarem.
- Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de
ouro, que faz-te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile!
- pois é aqui que poderás encontrar semelhante gente?...
- Olé... quem sabe?!... tenho cá meus motivos para desconfiar
que por aqui mesmo hei de achá-la, assim como os cinco continhos
que, aqui entre nós, vêm agora mesmo ao pintar, pois que o armazém
de meu sócio bem pouco tem rendido nestes últimos tempos.
Martinho chamava armazém à pequena taverna de que era sócio
Ditas aquelas palavras foi postar-se junto à porta que dava para o salão
e ali ficou por largo tempo a olhar, ora para os que dançavam, ora para
o anúncio, que tinha desdobrado na mão, como quem averigua e
confronta os sinais.
- Que diabo faz ali o Martinho? - exclamou um dos mancebos
que entretidos com as mímicas do Martinho, tomando-as por palhaçadas,
tinham-se esquecido de jogar.
- Está doido, não resta a menor dúvida. - observou outro. -
Procurar escravo fugido em uma sala de baile!... Ora não faltava mais
nada! Se andasse à cata de alguma princesa, decerto a iria procurar no
quilombos.
- Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai
anda.
- Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali
dançando, e ele não tira os olhos dos que dançam.
- Deixá-lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi
um maníaco de primeira força.
- É ela! - disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para
seus companheiros; - é ela; já não tenho a menor dúvida; é ela, e está
segura.
- Ela quem, Martinho?...
- Ora! pois quem mais há de ser?...
- A escrava fugida?!...
- A escrava fugida, sim, senhores!... e ela está ali dançando.
- Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!... até onde
queres levar a tua farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável,
e vale mais que quantos bailes há no mundo. - Se todos eles tivessem
um episódio assim, eu não perdia nem um. - Assim clamavam os moços
entre estrondosas gargalhadas.
- Vocês zombam? - olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.
- Melhor! Melhor! - vamos com isso, Martinho!
- Não acreditam?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a
farsa.
Dizendo isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando
o anúncio, pôs-se em atitude de lê-lo. Os outros se agruparam curiosos
em torno dele.
- Escutem bem, - continuou Martinho. - Cinco contos! - eis o
título pomposo, que em eloquentes e graúdos algarismos se acha no
frontispício desta obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões...
- E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te
de preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.
- Eu já lhes satisfaço, - disse Martinho, e continuou lendo:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município
de Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome
Isaura, cujos sinais são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de
qualquer branca; olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor,
compridos e ligeiramente ondeados; boca pequena, rosada e bem feita;
dentes alvos e bem dispostos;  nariz saliente e bem talhado; cintura
delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um pequeno
sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui
semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância,
canta e toca piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem
uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de
boa sociedade. Fugiu em companhia de um português, por nome Miguel,
que se diz seu pai. É natural que tenham mudado o nome. Quem a
apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se lhe satisfazerem todas as despesas,
receberá a gratificação de 5:OOO$OOO.
- Deveras, Martinho? - exclamou um dos ouvintes, - está
nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de
Vênus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida!...
- Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos:
aqui está o papel...
- Com efeito! acrescentou outro - uma escrava assim vale a
pena apreendê-la, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos.
Se eu a pilho, nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.
- Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura
tão perfeita só se pode encontrar nos palácios dos príncipes.
- Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que
não pode ser outra senão essa nova divindade que hoje apareceu...
- Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e chamando-
os para junto da porta: - Agora venham cá, - continuou, - e
reparem naquela bonita moça, que dança de par com Álvaro. Pobre
Álvaro como está cheio de si! se soubesse com quem dança, caía-lhe a
cara aos pés. Reparem bem, meus senhores, e vejam se não combinam
perfeitamente os sinais?...
- Perfeitamente! - acudiu um dos moços, - é extraordinário! lá
vejo o sinalzinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver
a tal asa de borboleta sobre o seio, não pode haver mais dúvida. O
céus! é possível que uma moça tão linda seja uma escrava!
- E que tenha a audácia de apresentar-se em um bailes destes?
- acrescentou outro. Ainda não posso capacitar-me.
- Pois cá para mim, - disse o Martinho - o negócio é liquido,
assim como os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na
algibeira; e até logo, meus caros.
E dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu-o na algibeira,
e esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou o
chapéu, e retirou-se.
- Forte miserável... - disse um dos comparsas - que vil ganância
de ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender
aquela moça aqui mesmo em pleno baile.
- Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão
vil criatura é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos
todos conspirar para expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu
para ser escravo daquela rara formosura.
- É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo
estaria oculta uma escrava fugida!
- E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha
asilada uma alma de anjo?...

Capítulo 14
Havia terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo,
conduzia o seu formoso par através da multidão, através de uma viva
fuzilaria de olhares de inveja e de admiração, que se cruzavam em sua
passagem; a pretexto de oferecer-lhe algum refresco, a foi levando para
uma sala dos fundos, que se achava quase deserta. Até ali ainda ele
não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos positivos,
se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada
vez mais ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas palavras, em
todos os seus movimentos e ações.  Alvaro julgava já ter adquirido
completo conhecimento do coração de sua amada, e nos dois meses
durante os quais a havia estudado, não havia descoberto nela senão
novos encantos e perfeições. Estava plenamente convencido que de todas as
formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era em tudo a mais digna
de seu amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de sua alma,
da sinceridade do seu afeto. Pensava portanto que, sem receio algum
de comprometer o seu futuro, podia abandonar o coração ao império
daquela paixão, que já não podia dominar. Quanto à origem e
procedência de Elvira, era coisa de que nem de leve se preocupava, e
nunca se lembrou de indagar. A distinção de classes repugnava a seus
princípios e sentimentos filantrópicos. Fosse ela uma princesa que o
destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de
algum pobre pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia-a em si mesma,
sabia que era uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se
pode encontrar sobre a Terra, e era quanto lhe bastava.
Observava Alvaro em seus costumes, como já sabemos, a
severidade de um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado à
formosa desconhecida, aninhando em seu espírito um pensamento de sedução.
Naquela noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado
mais que nunca pelos novos encantos e atrativos que Elvira alardeava
entre os esplendores do baile, não pôde e nem quis dilatar por mais
tempo a declaração, que a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava
pelos lábios, e apenas achou-se em lugar onde pudesse não ser
ouvido senão de Elvira:
- D. Elvira, - lhe disse com voz grave e comovida, - se a
senhora é um anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deusa. O
meu coração há muito já lhe pertence; sinto que o meu destino de
hoje em diante depende só da senhora. Funesta ou propícia, a senhora
será sempre a minha estrela nos caminhos da vida. Creio que me conhece
bastante para acreditar na sinceridade de minhas palavras. Sou senhor
de uma fortuna considerável; tenho posição honrosa e respeitável na
sociedade; mas não poderia jamais ser feliz, se a senhora não consentir
em partilhar comigo esses bens, que a fortuna prodigalizou-me.
Estas palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas do mais
sincera e profundo amor, que em outras condições teriam caído como
bálsamo celeste sobre o coração de Isaura a banhá-lo em inefáveis
eflúvios de ventura, eram agora para ela como um atroz e pungente
sarcasmo do destino, um hino do céu ouvido entre as torturas do inferno.
Via de um lado um anjo, que, tomando-a pela mão com um suave
sorriso, mostrava-lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava por
conduzi-la, enquanto de outro lado a hedionda figura de um demônio
atava-lhe ao pé um pesado grilhão, e com todo o seu peso a arrastava
para um gólfão de eternos sofrimentos.
É que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante
uma pausa tinha notado os movimentos do infame Martinho, quando
encostado ao umbral da saleta com um papel na mão, parecia
examiná-la com a mais minuciosa atenção. Aquela vista produziu nela
o efeito de um raio; não duvidou mais que estava descoberta, e
irremissivelmente perdida para sempre. Súbita vertigem lhe escureceu os
olhos, pareceu-lhe que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que ia sendo
tragada pelas fauces de um abismo imensurável. Para não cair foi-lhe
preciso agarrar-se fortemente com ambas as mãos ao braço de Álvaro,

arrimando-se em seu peito.
- Que tem, minha senhora? - perguntara-lhe este, assustado. -
Está incomodada?...
- Algum tanto, - respondeu Elvira com voz desfalecida e
arquejante, e reanimando-se pouco a pouco. - Foi uma dor aguda... uma pontada
deste lado... mas vai passando... não estou acostumada com este aperto... o
remoinhar da dança me fez mal.
- Mas há de acostumar-se em pouco tempo - replicou-lhe Álvaro,
segurando-lhe uma das mãos e sustendo-a com um braço pela cintura. -
A senhora nasceu para brilhar nos salões... mas, se quer retirar-se...
- Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final...
Com estas respostas evasivas Álvaro tranquilizou-se, e em razão
dos movimentos rápidos da quadrilha na marca final, que imediatamente
seguiu-se, não pôde notar a extrema palidez e profundo transtorno das
feições de Elvira. A infeliz já não dançava, arrastava-se automaticamente pela sala;
seu espírito não estava ali, não ouvia nem via outra coisa senão a figura
repugnante do Martinho, postada como esfinge ameaçadora junto à porta da saleta,
para a qual ela volvia de quando em quando olhos cheios de ansiedade e
pavor.
E o sangue todo lhe refluía ao coração, que lhe tremia como o da pomba
que sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.
Em tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava com o
que devia responder àquela tão sincera e apaixonada declaração do
mancebo. Guardou silêncio por alguns instantes, o que Álvaro interpretou
por timidez ou emoção.
- Não me quer responder? - continuou com voz meiga, - uma
só palavra é bastante...
- Ah! senhor, - murmurou ela suspirando, o que posso eu
responder às doces palavras que acabo de ouvir de sua boca? Elas me
encantam, mas...
Elvira interrompeu-se bruscamente; um súbito estremecimento
agitando o braço de Álvaro o fez olhar para ela com sobressalto e inquietação.
- É ele!... - este som sussurrou-lhe pelos lábios como um gemido
rouco e convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala
em que se achavam, e sentiu mortal calafrio percorrer-lhe todo o como.
- Desculpe-me, senhor - continuou ela - não é possível por
hoje ouvir suas doces palavras; sinto-me mal; preciso retirar-me. Se o
senhor tivesse a bondade de levar-me onde está meu pai...
- Por que não, D. Elvira?... mas oh!... como está pálida!... está
sofrendo muito, não é assim?... quer que eu a acompanhe?... que lhe
chame um médico?... aqui mesmo os há...
- Obrigada, senhor Álvaro; não se inquiete; isto é um mal
passageiro, cansaço talvez; em chegando a casa ficarei boa.
- E quer então retirar-se sem me deixar uma só palavra de
consolação e de esperança?...
- De consolação talvez, mas de esperança...
- Por que não?
- Se nem eu mesma posso tê-la...
- Então não me ama...
- Amo-o muito.
- Então será minha...
- Isso é impossível...
- Impossível!... que obstáculo pode haver?...
- Não sei dizer-lhe, senhor; minha desgraça.
Esta amorosa confidência no momento em que se achava no ponto
mais interessante, foi bruscamente interrompida pela presença de
Martinho, que se lhes atravessou pela frente, fazendo uma profunda reverência.
Álvaro indignado carregou o sobrolho, e esteve a ponto de enxotar o importuno, como
quem enxota um cão. Elvira estacou como que petrificada de pavor.
- Senhor Álvaro, disse-lhe respeitosamente o Martinho, - com a
permissão de V. Sa preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem
V. S.a dá o braço.
- A esta senhora! - exclamou maravilhado o cavalheiro. - Que
tem o senhor que ver com esta senhora?
- Negócio de suma importância; ela bem o sabe, melhor do que
eu e o senhor.
Álvaro, que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjeto e
desprezível, julgando ser aquilo manobra de algum rival invejoso, e
covarde, que se servia daquele miserável para ultrajá-lo ou expô-lo ao ridículo,
teve um assomo de indignação, mas contendo-se por um momento:
- Tem a senhora algum negócio com este homem? - perguntou
a Elvira.
- Eu?!... nenhum, por certo; nem mesmo o conheço, - balbuciou a
moça, pálida e a tremer.
- Mas, meu Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está
pálida!.., maldito importuno, que assim a faz sofrer!... oh! pelo céu, D.
Elvira, não se assuste assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquele que
ousar ultrajar-nos!
- Ninguém quer ultrajá-los, senhor Álvaro - replicou o Martinho;
mas o negócio é mais sério do que o senhor pensa.
- Enfim, senhor Martinho, deixe-se de rodeios e diga-nos aqui
mesmo o que quer com esta senhora.
- Posso dizê-lo; mas seria melhor que V. S.a o ignorasse.
- Oh! temos mistério!... pois nesse caso declaro-lhe que não
abandonarei esta senhora um só instante, e se o senhor não quer dizer
ao que veio, pode retirar-se.
- Nessa não caio eu, que não hei de perder o meu tempo, e o
meu trabalho, e nem os meus cinco contos. - Estas últimas palavras
resmungou-as ele entre os dentes.

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