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domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Escrava Isaura - Bernardo Guimarães [parte 9]

Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de
sua verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se
consigo mesma de impor às poucas pessoas que com ela tratavam de
perto, um respeito e consideração a que nenhum direito podia ter. Mas
considerando que de tal disfarce nenhum grande mal podia resultar à
sociedade, conformava-se com sua sorte. Deveria, porém, ela, ou
poderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma ilusão? Com
seu silêncio, conservando-o na ignorância de sua condição de escrava,
deveria deixar alimentar-se, crescer profunda e enérgica paixão, que o
moço por ela concebera?... não seria isto um vil embuste, uma
indignidade, uma traição infame? não teria ele o direito, ao saber da
verdade, de acabrunhá-la de amargas exprobrações, de desprezá-la, de calcá-la
aos pés, de tratá-la enfim como escrava abjeta e vil, que ficaria sendo?
- Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! -
exclamava ela no meio do angustioso embate de ideias que se lhe
agitavam no espírito. - Não, não devo iludi-lo; isto seria uma infâmia... vou-lhe
descobrir tudo; é esse o meu dever, e hei de cumpri-lo. Ficará sabendo
que não pode, que não deve amar-me; porém ao menos não ficará
com o direito de desprezar-me.. uma escrava, que procede com lisura e
lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo enganá-lo; hei
de revelar-lhe tudo.

Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor e
lealdade, e os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando
chegava o momento de pô-la em prática fraqueava-lhe o coração. e
Isaura ia diferindo de dia para dia a execução de seu propósito.
Falecia-lhe de todo a coragem para quebrar por suas próprias
mãos a doce quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que às
vezes conseguia esquecer por longo tempo sua mísera condição, para
lembrar-se somente que amava e era amada.
- Deixemos durar mais um dia - refletia consigo. - esta ilusória,
mas inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra
para subir ao palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e
poderosa; quando descer, serei de novo sepultada em minha masmorra
para nunca mais sair. Prolonguemos estes instantes; náo será lícito deixar
passar ao menos em sonhos uma hora de felicidade sobre a fronte
do infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta frágil cadeia
de ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno de
meus sofrimentos.
Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da
paixão abafava os ditames da razão e da consciência, passaram-se alguns dias
até àquele, em que Alvaro os induziu por meios quase violentos
a aceitarem convite para um baile. Desde então Isaura entendeu que
seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável, conservar por mais
tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que não
havia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa e
precária situação.
Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo!
Uma escrava fugida apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seu
braço à face da mais brilhante e distinta classe de uma importante
capital!...
era pagar com a mais feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os
serviços, que com tanta delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto
repugnava absolutamente aos escrúpulos da melindrosa consciência de Isaura. É
verdade que Miguel, aterrado pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu-se
forçado a anuir ao seu gracioso convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio,
o que ambos tomaram por um sinal de aquiescência.
Enganavam-se. Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do que
tentar esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce, que
tanto lhe pesava sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu que
encobria aos olhos do amante sua verdadeira condição. Por mais,
porém, que invocasse toda a sua energia e resolução, no momento
decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra lhe pairava pelos
lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se aos
pés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo e
apaixonado do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não
ousava romper os lábios paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam-se
ao movimento como se estivessem pregados no chão. Isaura estava
como o desgraçado a quem circunstâncias fatais arrastam ao suicídio,
mas que ao chegar à borda do precipício medonho em que deseja
arrojar-se, recua espavorido.
- Fraca e covarde criatura que eu sou! - pensou ela por fim
esmorecida: - que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever!
não importa; para tudo há remédio; cumpre que ele ouça da boca
de meu pai, o que eu não tenho ânimo de dizer-lhe.
Esta ideia luziu-lhe no espírito como uma tábua salvadora;
agarrou-se a ela com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo,
tratou de pô-la em execução.
- Meu pai, - disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs o
portão do pequeno jardim, - declaro-lhe que não vou a esse baile; não
quero, nem devo por forma nenhuma lá me apresentar.
- Não vais?! - exclamou Miguel atônito. - E por que não disseste
isto há mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora
que já demos nossa palavra...
- Para tudo há remédio, meu pai, - atalhou a filha com febril
vivacidade - e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressa
à casa desse moço, e diga-lhe o que eu não tive ânimo de dizer-lhe;
declare-lhe quem eu sou, e está tudo acabado.
Dizendo isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação, os
lábios descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsa
e estridente, parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração. Era o
resultado do extremo esforço que fazia, para levar a efeito tão penível
resolução. O pai olhava para ela com assombro e consternação.
- Que estás a dizer, minha filha! - replicou-lhe ele - estás tão
pálida e alterada!.. parece-me que tens febre... sofres alguma coisa?
- Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O que
eu estou lhe dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai vá
procurar esse moço e confessar-lhe tudo...
- Isso nunca!... estás louca, menina?... queres que eu te veja
encerrada em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província,
entregue a teu senhor, e por fim ver-te morrer entre tormentos nas
garras daquele monstro! oh! Isaura, por quem és, não me fales mais nisso,
Enquanto o sangue me girar nestas veias, enquanto me restar o mais
pequenino recurso, hei de lançar mão dele para te salvar...
- Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu
pai!... retorquiu a moça com exaltação. - Como posso eu, sem cometer a
mais vil deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em
uma sala de baile?... Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas
souberem que ombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida...
- Cala-te, menina! - interrompeu o velho, incomodado com a
exaltação da filha. - Não fales assim tão alto... tranquiliza-te; eles nunca
saberão de nada. O mais breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã
mesmo, se for possível. Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem
longe, para os Estados Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar
fora do alcance de qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as
tuas prendas e habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em
qualquer canto do mundo.
- Ah! meu pai! essa ideia de irmos para tão longe, sem esperança
de um dia podermos voltar, me oprime o coração.
- Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de ir
parar ao fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.
- Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro,
nobre e generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e
das terríveis circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos e
disfarçados pelo mundo, talvez queira e possa nos amparar e valer contra
as perseguições...
- E quem nos afiança isso?... o mais certo é ele entregar-te ao
desprezo, logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se,
despeitado com o logro que levou, não for o primeiro a denunciar-te à
polícia. No transe em que nos achamos, é de absoluta necessidade
enganar a ele e a todos; se revelarmos a quem quer que seja o segredo
de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e vamos ao baile,
minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que devemos nos
sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se
algum dia souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos
verão o rosto, nem ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosa
em demasia. Se ignoram quem tu és, a tua companhia em nada os
pode infamar. Com isso não fazes mal a ninguém; é uma medida de
salvação, que todos te perdoariam.
- Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-me
absolutamente ao coração dar esse passo.
- Mas é preciso dá-lo, minha filha, se não queres para nós ambos
a desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos de
um dia para outro, como nos é forçoso, então as suspeitas que
começamos a despertar tomarão muito maior vulto, e a policia pôr-se-á à
nossa pista, e nos perseguirá por toda parte. É um sacrifício na verdade,
mas não será ele muito mais suave do que as perseguições da polícia, a
prisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar em casa de teu
senhor?...
Isaura não respondeu; seu espírito agitava-se entre as mais
pungentes e amargas reflexões.
As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo
desalento. Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia-se em um mar
de dúvidas e perplexidades, como frágil barca em meio de um oceano
irritado, sacudida aos boléus por vagalhões desencontrados.
O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e
sinceridade de seu coração, que não podia acomodar-se com o embuste
e a mentira, e uma espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre
o  espírito, a desviavam daquele baile, e por momentos pareciam fixar
definitivamente a sua resolução; e firme neste propósito dizia consigo
mesma: - não, não irei.
Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão
razoáveis, bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozar
por algumas horas a sua presença, faziam-lhe de novo flutuar o
espírito no mar das irresoluções. A lembrança de que em breve, talvez no
dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar-se de Álvaro,
sem esperança alguma de jamais tornar a vê-lo, sem poder dizer-lhe um
adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem para onde ia,
dilacerava-lhe o coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos
braços na hora da despedida, nem ter um seio onde verter as lágrimas da
mais pungente saudade; partir para levar uma vida errante e fugitiva,
sem esperança nem consolação alguma, através de mil trabalhos e perigos,
para terminá-la talvez entre os tormentos da mais atroz escravidão, oh!...
isto era pavoroso! - e, entretanto, era esse o único futuro que a pobre
Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de si uma
noite inteira de prazer e de ventura, uma noite esplêndida de baile e
regozijo de seu amante, respirando o mesmo ar, inebriando-se de sua
voz, bebendo o seu hálito, recolhendo dentro d'alma seus olhares
apaixonados, sentindo na sua a pressão daquela mão adorada, contando
as pulsações daquele coração, que só por ela palpitava. Oh! uma noite
assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora as angústias e
perigos, a escravidão e a morte!
Cândida e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter
consciência do quanto valia. Vendo-se o objeto do amor de um jovem
de espírito elevado, e dotado de tão nobres e brilhantes qualidades
como Álvaro, ainda mais se confirmou na ideia que de si mesma fazia.
Com sua natural perspicácia e penetração, bem depressa
convenceu-se de que o afeto que o mancebo lhe consagrava não era simples e
superficial homenagem rendida a seus encantos e talentos, nem tampouco
passageiro capricho de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera,
enérgica e profunda. Era isso para ela motivo de um orgulho íntimo,
que a elevava a seus próprios olhos, e por momentos a fazia esquecer-se
que era uma escrava.
- Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão,
ele não me amaria; e se sou digna de seu amor, por que não o serei de
me apresentar no seio da mais brilhante sociedade? A perversidade dos
homens pode acaso destruir o que há de bom e de belo na feitura do
Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada com estas ideias e com a
sedutora perspectiva de algumas horas de inefável ventura em companhia
do amante exclamava dentro d'alma: - Hei de ir, hei de ir ao baile!
Enquanto Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em
suas cismas, procurando firmar-se em uma resolução, o pai, não menos
inquieto e preocupado, passeava distraído entre os canteiros do jardim,
aguardando com ansiedade uma resposta definitiva de sua filha.
- Irei, meu pai, irei ao baile, - disse ela por fim levantando-se,
mas vou preparar-me para ele como a vítima que tem de ser conduzida
ao sacrifício entre cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento,
que me acabrunha...
- Pressentimento de quê, Isaura?...
- Não sei, meu pai; de alguma desgraça.
- Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está-me
adivinhando que de ir a esse baile resultará a nossa salvação.

Capítulo 13

Não pense o leitor que já se acha terminado o baile a que
estávamos assistindo. A pequena digressão que por fora dele fizemos no
capitulo antecedente, nos pareceu necessária para explicar por que
conjunto de circunstâncias fatais a nossa heroína, sendo uma escrava, foi
impelida a tomar a audaciosa resolução de apresentar-se em um
esplêndido e aristocrático sarau, - fraqueza de coração, ou timidez de
caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em
uma pessoa de consciência tão delicada e de tão esclarecido
entendimento.
O baile continua, mas já não tão animado e festivo como ao
princípio.
Os aplausos frenéticos, a admiração geral, de que Isaura se havia
tornado objeto da parte dos cavalheiros, tinham produzido um completo
resfriamento entre as mais belas e espirituosas damas da reunião.
Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em razão das entusiásticas
homenagens, que francamente iam render aos pés daquela que
implicitamente estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos
queriam dançar, e em vez de tisos folgazões, e de uma conversação
franca e jovial, só se ouviam pelos cantos entre diversos grupos
expansões misteriosamente sussurradas, e cochichos segredados entre
amarelas e sarcásticas risotas.

Propagava-se entre as moças como que um sussurro geral de
descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que
restrugem ao longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade.
Dir-se-ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que por
seus encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas,
não era mais do que - uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando,
nomeadamente aquelas que afagavam alguma esperança, ou se julgavam
com algum direito sobre o coração de Álvaro. Aniquiladas sob o peso
dos esmagadores triunfos de Isaura, não se achando com ânimo de
manterem-se por mais tempo na liça, tomaram o prudente partido de
irem esconder no misterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha
de tão cruel e solene derrota.
Não diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas,
distintas pelos encantos do espírito e do corpo, não houvesse muitas
que, com toda a isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem
a beleza de Isaura, e aplaudissem de coração e com sincero prazer os
seus triunfos, e foram essas que conseguiram ir dando alguma vida ao
sarau, que sem elas teria esmorecido inteiramente. Todavia não é
menos certo que do belo sexo, sem distinção de classes, ao menos
a metade é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades mesquinhas.
Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro
por seu par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas
de jogo, e bufetes guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e
champanha. Esta saleta comunica imediatamente com o salão onde se
dança, por uma larga porta aberta. Acham-se ai uma meia dúzia de
rapazes, pela maior parte estudantes, desses com pretensões a estroinas
e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade, dos prazeres e
das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de
charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da
mais formosa donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em
prosa e verso que na aurora da vida já têm o coração mirrado pelo sopro
do cepticismo, ou calcinado pelo fogo das paixões, ou enregelado
pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de esplim, que se
acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda espécie,
alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e
frivolidades da vida.
Entre eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais
um pouco a atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos
acontecimentos desta história. Este nada tem de esplenético nem de
byroniano; pelo contrário o seu todo respira o mais chato e ignóbil
prosaísmo.
Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena
de anos. Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é
desmesuradamente ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o
que, na opinião de Lavater, é indicio de espírito lerdo e acanhado a
roçar pela estupidez. O todo da fisionomia tosca e quase grotesca revela
instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de caráter. O que, porém,
mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida ganância, que
lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente
no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente
um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo,
sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um
vendilhão. Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do
rendimento de uma taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se
Martinho.
- Rapaziada, - disse um dos mancebos, - vamos nós aqui a
uma partida de lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a
arrastar os pés e a fazer mesuras.
- Justo! - exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando
baralhos. - Já que não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas.
Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sota me faz às
vezes estremecer o coração em emoções mais vivas do que as sentiria
Romeu a um olhar de Julieta... Afonso, Alberto, Martinho, andem
para cá; vamos ao lansquenê; duas ou três corridas somente...
- De boa vontade aceitaria o convite, - respondeu Martinho, -
se não andasse ocupado com um outro jogo, que de um momento para
outro, e sem nada arriscar, pode meter-me na algibeira não menos de
cinco contos de réis limpinhos.
- De que diabo de jogo estás aí a falar?... nunca deixarás de ser
maluco?... deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenê.
- Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter-se
nos azares do lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?...
Nem tão tolo serei eu.
- Com mil diabos, Martinho!... então não te explicarás?... que
maldito jogo é esse?...
- Ora, adivinhem lá... Não são capazes. uma bisca de estrondo.
Se adivinharem, dou-lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta
cidade; bem entendido, se encartar a minha bisca.
- Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau
ardido, e porque não é possível haver quem adivinhe as asneiras que
passam lá por esses teus miolos extravagantes. O que queremos é o teu
dinheiro aqui sobre a mesa do lansquenê.

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