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domingo, 26 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 18]

Sábado, 15 de Abril de 1944
Querida Kitty :
A um susto segue-se outro, - Quando é que isto terá
fim? É esta a nossa eterna pergunta. Imagina o que
aconteceu agora. O Peter esquece se de abrir o ferrolho
da porta principal (à noite a porta tranca-se por dentro)
e a fechadura da outra porta está estragada. Por consequência
o Kraler não conseguiu entrar com os operários.
Teve de pedir aos vizinhos para o deixarem entrar, quebrou
depois a janela da cozinha e saltou para dentro.
Está furioso por causa do nosso descuido. O Peter anda
desolado. Quando a minha mãe lhe disse à mesa que
tinha pena dele, pouco faltou para que desatasse a chorar.
Mas na verdade temos todos culpa, porque os senhores
costumam perguntar todas as manhãs se o Peter abriu
o ferrolho, e precisamente hoje não o fizeram. Oxalá eu
lhe possa dar logo algum conforto, gostava tanto de o
ajudar!

E agora algumas notícias sobre vários acontecimentos
no anexo durante as últimas semanas :
Há uma semana adoeceu o Boschi. Não se mexia
a Miep, sempre resoluta, embrulhou-o num pano, meteu-o
no seu saco das compras e levou-o à clínica veterinária.
O veterinário enfiou-lhe um remédio pela goela abaixo,
pois supunha que o bicho tinha uma infecção nos intestinos.
Depois disso o Boschi passeia lá fora, dia e noite; decerto
arranjou uma namorada.
A janela do sótão já fica outra vez aberta durante a
noite. Quando escurece, o Peter e eu estamos quase sempre
lá em cima.
Com o auxílio de Koophuis e com um pouco de tinta
de óleo, o W. C. arranjou-se. A torneira perra foi substituída
por outra. Este mês recebemos oito cartões de
racionamento. O nosso mais recente petisco chama-se "Piccadilly".
Se a gente tem pouca sorte, só encontra alguns
pepinos com molho de mostarda no frasco. Legumes já
não há quase nenhuns. Só salada e sempre salada. De resto
só comemos batatas com molho artificial.
Muitos e tremendos bombardeamentos.
A Câmara de Haia ficou destruída e com ela muitos
documentos. Diz-se que todos os holandeses receberão
novos cartões de identidade.
Basta por hoje.
Tua Anne.
Domingo
 de manhã pouco antes das 11 horas, 16 de Abril de 1944
Querida Kitty :
Peço-te que nunca te esqueças do dia de ontem,
por ser um dia muito importante na minha vida. Ou não
é importante para uma rapariga receber o seu primeiro
beijo? E eu não sou diferente das outras. O beijo que o
Bram me deu uma vez na face direita não conta, e o beijo
na mão de Mr. Walker também não. Agora vais ouvir
como aconteceu eu receber um beijo.
-Ontem, às oito horas, estávamos, o Peter e eu, no
quarto dele, sentados no sofá.
-Se pudesses chegar-te mais um bocado para lá,-disse-lhe,
- eu não dava com a cabeça contra a estante.
Ele recuou quase até ao cantinho. Passei-lhe o braço
à volta da cinta e ele abraçou-me. Já tínhamos estado
assim muitas vezes, mas talvez não tão próximos um do
outro. Apertou-me com força, o meu peito estava contra
o seu - o meu coração batia cada vez mais depressa. Mas
não é tudo. Ele não descansou enquanto não deitei a
cabeça no seu ombro e depois inclinou ele a cabeça sobre
a minha. Quando, passados cinco minutos, me ia endireitar,
tomou-me a cabeça entre as mãos e apertou-me,
de novo, contra ele. Oh! foi maravilhoso, eu não consegui
falar, só pude viver o momento. Um pouco desajeitado,
acariciou-me a cara e o braço, brincou com os meus caracóis
e assim permanecemos com as cabeças muito juntas.
Não posso descrever-te a minha emoção. Eu estava tão
feliz! E creio que o Peter também.
às oito e meia levantamo-nos e ele calçou as sandálias
de ginástica para fazer a ronda pela casa com o menos
ruído possível. Eu estava ao seu lado. Não sei dizer exatamente como aquilo aconteceu, mas ao
descermos, ele
beijou-me o cabelo, muito junto da orelha esquerda. Corri
para baixo sem me virar e... e só queria que já fosse mais
logo, à noite.
Tua Anne.

Segunda-feira, 17 de Abril de 1944.
Querida Kitty :
Que te parece : o pai e a mãe achariam bem se soubessem
que eu estou sentada com um rapaz no sofá e que nos
beijamos? Um rapaz de dezessete anos e uma rapariga
que vai fazer quinze? Não devem achar bem, creio, mas
afinal aquilo só me diz respeito a mim. Sinto-me calma
e segura a sonhar nos seus braços, e é tão excitante sentir
a cara dele contra a minha, é tão delicioso saber-se que
alguém nos espera!
Mas - há um mas - ele contentar-se-ia só com isto.
Não me esqueci da sua promessa, mas... sempre é um
rapaz!
Bem sei que estou a começar cedo, ainda não fiz os
quinze e já sou tão independente! Ninguém, provàvelmente,
sabe compreender. Tenho quase a certeza de que
a Margot era incapaz de beijar um rapaz sem que se falasse
logo de noivado e de casamento. Mas o Peter e eu não
fazemos planos. Calculo que a mãe também não se deixou
tocar por ninguém antes de conhecer o pai. O que
diriam as minhas amigas se me vissem nos braços do Peter,
com o meu coração contra o seu peito, a cabeça nos seus
ombros, e a sua cabeça em cima da minha?
Oh! Anne, que vergonha!
Mas, com toda a franqueza! Não acho que isto seja
uma vergonha. Vivemos aqui isolados do Mundo, cheios
de medo e de angústia, principalmente nos últimos tempos.
Porque é que nós, que nos amamos, havemos de nos afastar
um do outro? Porque é que havemos de esperar até ter
uma idade conveniente? E porque havemos de fazer tais
perguntas?
hei de saber tomar conta de mim. O Peter nunca me
causará aflições ou dores. Porque não hei de eu, por isso
fazer o que o meu coração me dita e o que nos torna
felizes? Mas... creio que estás a pressentir que lido com
certas dúvidas, dúvidas estas que provêm da luta entre
a minha fraqueza e o ter de fazer coisas às escondidas.
Achas que é meu dever dizer tudo ao pai? Achas que devemos
partilhar o nosso segredo com alguém? Receio que
muita coisa subtil venha a perder-se. E ficaria eu mais
calma intimamente? Vou falar com "ele" sobre o assunto.
Sim, tenho de falar com "ele" sobre muitas coisas,
porque passar o tempo a fazer apenas carícias, não faz
sentido. É preciso uma grande confiança para dizermos
tudo um ao outro, mas a consciência de possuirmos esta
confiança mútua nos dará força a ambos.
Tua Anne.

Terça-feira, 18 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Tudo vai bem. O pai disse que espera grandiosas operações
ainda antes de 20 de Maio, tanto na Rússia e na
Itália como no Ocidente. Quanto mais as coisas se estão
a demorar, tanto menos consigo imaginar a nossa libertação.
Finalmente, ontem o Peter e eu falamos sobre aquilo
que andávamos a adiar há dez dias. Expliquei-lhe todos
os segredos de uma rapariga e não me acanhei a falar nas
coisas mais íntimas. A noite rematou-se com um beijo
muito perto da boca. É uma sensação maravilhosa.
Talvez eu leve para cima o meu livro em que aponto
tudo o que me agrada, e assim podemos aprofundar juntos
as coisas belas. Não me dá satisfação estarmos só abraçados.
Gostava de que ele fosse da minha opinião.
Depois de um Inverno irregular veio uma Primavera
estupenda, um Abril magnífico, nem quente nem frio,
e só de vez em quando uma chuvarada. O nosso castanheiro
já está verde e veem-se, aqui e acolá, nascerem-lhe as
velinhas. No sábado a Elli deu-nos uma grande alegria. Trouxe
flores - três ramalhetes de narcisos, e para mim, jacintos
azuis.
Tenho que estudar álgebra, Kitty. Adeus.
Tua Anne.

Quarta-feira, 19 de Abril, de 1944
Querida Kitty:
Lieve Schat!
O que poderá haver de mais belo no Mundo do que
olhar a natureza pela janela aberta, do que ouvir cantar
os pássaros, sentir o sol no rosto e ter nos braços um rapaz
muito querido? O silêncio faz-nos tão bem!
Oh! Se nunca ninguém o interrompesse, nem mesmo
o Mouchi!
Tua Anne.

Terça-feira, 25 de Abril de 1944
Querida Kitty :
Há dez dias que o Dussel não fala com o sr. van Daan
e só porque tivemos de tomar, depois do roubo, algumas
medidas novas que não lhe agradam. Disse que o sr. van
Daan lhe deu berros.
-Tudo se faz aqui sem me consultarem-disse-me a
mim-; hei de falar a este respeito com o teu pai.
Ele não devia trabalhar, nem no sábado à tarde nem
no domingo, lá em baixo no escritório. Mas não cumpriu,
foi na mesma. O sr. van Daan ficou zangado e o pai foi
para baixo para falar com o Dussel. Claro, lá inventou
qualquer desculpa. Mas desta vez nem o pai se deixou
convencer. Agora o pai quase não lhe fala por ele o
ter ofendido. Não sabemos o que se passou, mas deve ter
sido coisa grave.
Escrevi uma história bonita, chama-se Blzrry, o descobridor
do Mundo. Agradou bastante aos meus três ouvintes.
Ainda estou muito constipada e contagiei a Margot,
o pai e a mãe. Oxalá não aconteça o mesmo ao Peter.
Queria que eu lhe desse um beijo, chamou-me o seu
"el dorado". Mas agora não pode ser, meu rapaz! Ele é
um amor!
Tua Anne.

Quinta-feira, 27 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Hoje de manhã a sra. van Daan estava de muito mau
gênio. Só se lamentava: por estar constipada, por não
haver gotas que lhe fizessem aguentar melhor as dores
no nariz. Depois, por não haver nem sol nem invasão, e
por se não poder olhar um pouco pela janela, etc., etc.
Foi-nos impossível manter um ar sério; rimo-nos dela,
e como, afinal, tudo aquilo não era uma grande tragédia,
ela acabou por se rir também.
Leio agora O Imperador Carlos Quinto, escrito por um professor de Guingen que trabalhou
quarenta anos nesta
obra. Em cinco dias li cinquenta páginas; é difícil ler-se
mais, de um livro assim, e ele tem quinhentas e noventa e
oito páginas. Agora podes fazer as contas ao tempo que
levará a leitura e, depois, falta ainda a segunda parte!
Mas... é deveras interessante!
O que uma rapariga trabalha normalmente na escola
não se pode comparar à tarefa que eu cumpro. Hoje
traduzi, do holandês para o inglês, um pedaço da última
batalha de Nelson. Depois estudei A guerra Nórdica
(1700-1721), Pedro o Grande, Carlos XII, Augusto o
Forte, Stanislau Seczinsky, Mazeppa, Brandemburgo, Pomerânia
e Dinamarca - com todos os dados correspondentes.
Depois li sobre o Brasil: o tabaco da Baía, a abundância
de café, o milhão e meio de habitantes do Rio de Janeiro,
Pernambuco e São Paulo, o rio Amazonas. Fiquei a saber
coisas dos negros, dos brancos, das mulheres, dos mulatos,
dos mestiços; fiquei também a saber que ainda lá vivem
cinquenta por cento de analfabetos e que há malária.
Como ainda me sobrava um pouco de tempo, peguei na
minha árvore genealógica: Jan o velho, Guilherme Luís, Ernst Casimir, Henrique CasimirI, até à
pequena Margriet
Franciska que nasceu em 1929 em Otawa.
Meio-dia: continuo a estudar, no sótão, o programa
sobre as catedrais... uff! até à uma hora.
às duas horas, a pobre rapariga (hum, hum!) já estava
de novo a estudar. Macacos com focinho achatado e
macacos com focinho aguçado. Kitty, és capaz de me dizer
quantos dedos no pé tem o hipopótamo? Depois seguiu-se
a bíblia, a arca de Noé, Sem, Cham e Japhet; depois
Carlos V. Por fim: inglês com o Peter: O Coronel de
Thackeray, vocábulos franceses, e comparar o Mississipi
ao Missouri. Chega por hoje.
Tua Anne.

Sexta-feira, 28 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Nunca me pude esquecer do meu sonho com o Peter
Wessel. Ainda hoje, ao lembrar-me, parece-me sentir a
face do Peter contra a minha, essa sensação que tanto me
maravilhou. Ao estar com o Peter daqui experimentava a
mesma sensação, sim, mas nunca tão forte até... ontem,
ao anoitecer, quando estávamos, como de costume, abraçados
no sofá. De repente a Anne de todos os dias transformou-se
numa outra Anne, naquela que não é divertida
nem travessa mas que quer ser terna e afável.
Estava muito junto dele e a comoção tomou conta de
mim. As lágrimas vieram-me aos olhos, caíram-me cara
abaixo e molharam a bata dele. Terá notado? Nem o
mais leve movimento o traiu. Sente ele o mesmo que eu?
Quase não falava. Saberá que convive com duas Annes
diferentes? Tantas perguntas por responder!
às oito e meia ergui-me e fui à janela onde costumamos
despedir-nos. Ainda eu tremia, ainda era a Anne número 2.
Ele foi ter comigo, eu deitei-lhe os braços ao pescoço e
beijei-lhe a face esquerda. Quando lhe quis beijar a outra,
as nossas bocas encontraram-se. Como numa vertigem,
estreitamo-nos, um contra o outro, uma vez e outra vez,
para nunca mais acabar!
Peter tem necessidade de ternura. Pela primeira vez
na vida descobriu uma rapariga e, pela primeira vez, compreendeu que estas "maçadoras", afinal,
têm também um
coração e que são muito diferentes quando se está a sós
com elas. Pela primeira vez na vida deu amizade e entregou-se
a outrem. Nunca antes tinha tido um amigo ou
uma amiga. Agora encontramo-nos. Eu também não o conhecia a ele, nunca tinha tido um
confidente, e agora tudo isto se realizou.
Mas eis uma pergunta que me tortura:
-Está isto certo? Procedo bem em ser tão transigente,
tão apaixonada, tão impulsiva e cheia de desejos, tal como
o Peter? Está certo que uma rapariga não saiba dominar-se?
Só há uma resposta: sentia dentro de mim profunda
ânsia, sentia-me só, e agora encontrei consolo e alegria.
Da parte da manhã Peter e eu somos as pessoas de
sempre; e mesmo durante o dia. Mas ao anoitecer não
podemos conter o desejo da felicidade e da alegria de nos
encontrarmos. Então somos um do outro. Todas as noites,
depois do último beijo, queria fugir, desaparecer, não ver
mais aqueles olhos, estar longe, longe, longe, totalmente
só na escuridão!
Mas depois de ter descido os catorze degraus, onde é
que me encontro? à luz crua da sala, entre vozes e risos;
perguntam-me isto ou aquilo e tenho de fazer tudo para que
ninguém note em mim qualquer coisa. O meu coração
ainda está impressionado de mais para esquecer um acontecimento como o de ontem à noite. A
meiguice e a brandura
talvez sejam qualidades raras na Anne mas, mesmo assim,
não se deixam afugentar de um instante para o outro.
O Peter atingiu-me como nunca nada me tinha atingido,
a não ser o meu sonho. O Peter revolveu o meu íntimo,
chamou-o à superfície. E não é natural que qualquer
pessoa no meu caso necessite reencontrar o sossego para
tranquilizar de novo o seu íntimo? Oh, Peter!, o que
fizeste de mim? O que queres de mim? Aonde vamos nós
parar? Oh! Agora é que compreendo a Elli. Agora que
vivo estas coisas, compreendo as dúvidas dela. Se ele fosse
mais velho e quisesse casar comigo, que lhe responderia?
Sê franca, Anne! Não eras capaz de casar com ele, mas
deixá-lo também te custa! O caráter do Peter ainda não
alcançou a harmonia interior. O Peter tem pouca energia,
pouca força de vontade e pouca força moral. Ainda é uma
criança, intimamente não tem mais idade do que eu; o
que ele procura, antes de mais nada, é a calma e a felicidade.
E eu? Tenho, de fato, só catorze anos? Não passo
de uma rapariguita estúpida? Não tenho ainda experiência
nenhuma? Tenho experiência, sim senhora, tenho mais
experiência do que os outros; vivi coisas que muito poucos
da minha idade viveram. Tenho medo de mim própria,
tenho medo de que o meu desejo me arrebate, e então o
que há-de ser de mim mais tarde, quando conviver com
outros rapazes? Oh, como tudo isto é difícil! O coração
e o juízo, e sempre a luta entre os dois. Cada um deles
fala no momento próprio, mas sei eu de certeza quais são
os momentos próprios?
Tua Anne.

Terça-feira, 2 de Maio de 1944
Querida Kitty:
No sábado, à noite, perguntei ao Peter se achava que
devia dizer ao pai o que se passa entre nós, e depois de
ponderar um bocado ele achou que sim. Estou contente
por isso, pois prova-me a pureza dos seus sentimentos.
Logo depois de eu ter descido, fui buscar água com o pai,
e já na escada disse-lhe:
- Pai, com certeza compreendes que o Peter e eu,
quando estamos juntos, não ficamos sentados a um metro
de distância um do outro. Achas mal?-O pai não me
respondeu imediatamente. Depois disse:
- Não, não acho mal, Anne, mas aqui, onde o espaço
é tão restrito, deves ter mais cuidado...
Ainda chegou a dizer mais algumas coisas no mesmo
sentido e depois subimos. No domingo de manhã chamou-me
para me dizer :
- Anne, pensei naquilo que me disseste (comecei a ter
medo). Vistas bem as coisas, não está certo aqui no anexo!
Julgava que vocês eram bons camaradas. O Peter está
apaixonado por ti?
- Não, não é isso - disse eu.
- Sabes Anne, eu compreendo-vos muito bem, mas
acho que deves manter um pouco de distância, não deves
encorajá-lo demasiadamente. Não devias ir tantas vezes
lá para cima. Nestas coisas o homem é a parte ativa e a
mulher pode detê-lo. Lá fora, na liberdade, todas estas
coisas são diferentes. Convives com outros rapazes e raparigas, podes dar passeios, praticar
desportos e outras
coisas no gênero. Mas se vocês aqui estão sempre juntos e se
um dia isso não te agradar por mais tempo, tudo se tornará
complicado. Vocês veem-se a cada passo, praticamente a todos os momentos : sê prudente,
Anne, e não te prendas tanto.
- Não me prendo demasiado, pai, e o Peter é correto,
é muito bom rapaz.
-Sim, é bom rapaz, mas não tem um caráter firme;
tão fàcilmente se deixa influenciar para o bom como para
o mau. Oxalá se mantenha correto, porque no fundo
é boa pessoa.
Ainda conversamos um pouco e depois combinamos
que o pai fosse falar com ele também. No domingo à tarde,
quando eu estava lá em cima, o Peter perguntou :
- Então falaste ao teu pai, Anne?
- Falei - disse eu - e vou-te contar tudo. Ele não acha
mal nenhum em estarmos tão juntos um do outro, mas
pensa que isto pode dar lugar a mal-entendidos.
- Já combinamos que nunca havemos de discutir e
estou resolvido a cumprir.
- Também eu, Peter, mas o pai tinha imaginado que
éramos apenas bons camaradas. Achas que já não podemos
ser bons camaradas?
- Porque não? Que te parece?
- Parece-me que podemos. Eu disse ao pai que tenho
confiança em ti. E é a verdade, Peter. Tenho tanta confiança
em ti como no pai, e penso que o mereces, não é
verdade?
- Espero que sim.
Corou e ficou atrapalhado.
- Creio em ti, Peter, creio que tens um bom caráter
e que farás o teu caminho na vida.
Falamos ainda de várias coisas e eu depois disse :
- Quando sairmos daqui, já sei que não vais fazer
caso de mim.
Ele disse com ardor:
- Não digas tal coisa, Anne! Oh! não, tu não tens
direito de me julgar assim.
Depois chamaram-me.
Na segunda-feira contou-me que o pai falou com ele.
- O teu pai pensa que a nossa camaradagem podia
acabar em namoro, e eu disse que podia ter confiança
em nós.
O pai quer que eu não vá tantas vezes lá para cima, mas não estou de acordo. Não só porque
gosto de estar com
o Peter mas também por lhe ter dito que tenho confiança
nele. E já que tenho esta confiança quero provar-lha.
E eu não lha poderia provar se manifestasse desconfiança,
ficando cá em baixo.
Não, Hei - de ir!
Entretanto, o "drama Dussel" acabou. No sábado, ao
jantar, pediu desculpa num discurso bem estudado, em
holandês. O sr. van Daan ficou logo derretido. Julgo que
o Dussel levou o dia inteiro a ensaiar "a lição". O seu
aniversário, no domingo, correu com calma. Nós, os
Franks, demos-lhe uma garrafa de vinho de rgIg, os van
Daans (que já estavam agora de bem com ele e lhe podiam
oferecer uma prenda) deram-lhe um copo de "Piccadilly"
e um maço de lâminas, o Kraler veio com um frasco de
compota de limão, a Miep com um livro e a Elli com uma
planta. E ele regalou-nos a todos com um ovo para cada.
Tua Anne.


Quarta-feira, 3 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Primeiro, as novidades da semana. A política está em
férias, não aconteceu nada, mas mesmo absolutamente
nada. Pouco a pouco começo a acreditar que a invasão
está para breve. Impossível deixarem os russos a esfalfarem-se
sozinhos. Aliás, da Rússia, também não há novidades.
O sr. Koophuis vem, de novo, todos os dias ao escritório.
Arranjou uma mola nova para o sofá do Peter e
agora não tem outro remédio senão fazer de estofador,
apesar da falta de jeito. Também arranjou um pó contra
as pulgas dos gatos. Já te contei que o Boschi se foi embora.
Desde quinta-feira desapareceu sem deixar vestígios.
Decerto lá estará no céu dos gatos, pois provàvelmente
algum "amigo dos animais" deliciou-se com ele para o
almoço. Pode ser que o seu pelo ainda dê uma touquinha
de criança. O Peter ficou muito triste.
Desde sábado que lanchamos às onze e meia. Ao
pequeno almoço comemos uma papa com que temos de
aguentar-nos. Assim poupamos uma refeição. Ainda é
difícil conseguir-se hortaliça. Hoje tivemos salada cozida
que já estava bastante estragada. Sempre salada, ou crua
ou cozida, e espinafres e, a acompanhar, batatas de má
qualidade. Uma combinação deliciosa!
Há mais de dois meses que eu não tinha tido o meu
"incômodo". Finalmente, no sábado apareceu. Apesar de
todas as contrariedades e mal-estar, sinto-me contente.
Tu talvez não possas compreender que aqui surja
tantas vezes a pergunta desesperada: porquê e para quê
é esta guerra? Porque é que os homens não podem viver
em paz? Para quê tantas destruições?
Estas perguntas são legítimas, mas até agora ninguém
soube encontrar-lhes uma resposta satisfatória. Porque é
que na Inglaterra se constroem aviões cada vez maiores,
bombas cada vez mais pesadas e, ao mesmo tempo, se
reconstroem filas de casas? Porque é que se gastam todos
os dias milhões para a guerra, se não há dinheiro para a
medicina, os artistas e os pobres? Porque é que há homens
a passar fome se, em outros continentes, apodrecem
víveres? Porque é que os homens são tão insensatos?
Não acredito que a culpa da guerra caiba exclusivamente aos que governam e aos capitalistas.
Não, o homem da rua também tem a sua culpa, pois não se revolta.
O homem nasce com o instinto da destruição, do massacre,
da fúria, e enquanto toda a Humanidade não sofrer uma
metamorfose total, haverá sempre guerras. O que se construiu e cultivou e o que cresceu será
destruído, e à Humanidade só resta recomeçar.
Tenho estado muitas vezes abatida mas nunca me
senti aniquilada. Considero a nossa vida de "mergulhados"
uma aventura perigosa que é, ao mesmo tempo, romântica e interessante. Sempre me propus
viver uma vida diferente da das raparigas em geral, do mesmo modo como também
não me agrada para o futuro a vida banal das donas de
casa. Isto aqui é um bom princípio com muitas coisas
cheias de interesse e, mesmo nos momentos mais perigosos,
vejo o cômico da situação e não posso deixar de me rir.
Sou jovem e com certeza ainda há em mim boas qualidades por despertar; sou jovem e forte e
vivo conscientemente esta grande aventura. Porque hei-de lamentar-me todo o dia?
Muito me deu a natureza: alegria e força. Cada vez
mais sinto como o meu espírito se desenvolve, sinto a libertação que se está aproximando, sinto
como é bela a natureza e como é boa a gente que me rodeia. Porque hei-de estar desesperada?
Tua Anne.

Sexta-feira, 5 de Maio de 1944
Querida Kitty:
O pai não está contente comigo. Julgava que eu,
depois da nossa conversa no domingo, tinha resolvido não
subir todas as noites lá para cima. Não concorda com a
nossa "beijoquice".
Detesto esta palavra. Bem basta a gente ter de falar
no assunto, não vejo necessidade de o escarnecer.
Ainda hoje hei - de voltar a falar com o pai. A Margot
deu-me alguns bons conselhos. Eis o que quero, mais ou
menos, dizer-lhe:
"Parece-me, pai, que exiges de mim uma explicação
e vou dar-te. É possível que estejas desapontado comigo
e me julgasses menos impulsiva. Com certeza gostavas que
eu fosse como as outras raparigas aos catorze anos ou,
melhor, como elas deviam ser. Mas enganas-te! Desde que
viemos para aqui, em Julho de 1942, até há poucas semanas,
a minha vida não tem sido fácil. Se tu soubesses quantas
vezes chorei de noite, como era infeliz, como me sentia
só, então compreenderias melhor porque é que quero
estar lá em cima. Não foi de um dia para o outro que
consegui chegar a viver sem o apoio da mãe ou seja de quem
for. Tem-me custado lutas duras e muitas lágrimas o ter-me
tornado tão independente como agora sou. Podes rir-te,
talvez não acredites, mas as coisas são como são. Tenho
a consciência de ser alguém que sabe responder por si
própria e que não se sente responsável para convosco.
Digo-te isto para que não penses que tenho segredos,
porque, de resto, só me considero responsável perante mim
mesma! Quando me debatia com tantas dificuldades,
vocês - e também tu - fecharam os olhos e os ouvidos.
Não me ajudaste, pelo contrário, só me advertias para eu não fazer tanto alarido. Eu era
barulhenta porque não queria ser infeliz, eu era travessa porque queria abafar
a voz que há dentro de mim. Representei uma comédia,
durante ano e meio, dia após dia, sem me queixar, sem
perder a linha; lutei até agora e venci. Sou independente
de corpo e de espírito, não preciso da mãe, saí fortalecida
de todas as lutas.
"E agora que alcancei o meu fim, agora que me impus,
hei - de seguir sozinha o meu caminho, o caminho que me
parece ser o melhor. Não podes, nem deves, considerar-me
uma rapariga de catorze anos. A nossa tragédia tem-me
envelhecido, e hei - de agir conforme me parece bem. Tu,
que és a bondade em pessoa, não me podes impedir de ir
lá para cima. Ou tu me proíbes tudo ou tens de ter confiança
em mim em todas as circunstâncias. Só te peço:
deixa-me em paz!"
Tua Anne.

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