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domingo, 26 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 19]

Sábado, 6 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Ontem, antes de jantar, meti uma carta no bolso do
pai. Escrevi-lhe o que ontem te expliquei. Depois de a
ter lido, ficou, durante todo o serão, desconcertado. Foi a
Margot quem mo disse, pois eu estava a ajudar lá em cima
a lavar a louça. Pobre Pim, eu devia ter sabido o resultado
de uma carta assim. Ele é tão sensível! Avisei logo o Peter
para não lhe perguntar mais nada. O Pim não voltou a
falar comigo sobre o caso. Ainda virá a fazê-lo?
As coisas aqui vão andando. As novidades que nos vão
dando sobre as pessoas lá de fora e sobre os preços são
quase inacreditáveis: duzentos e cinquenta gramas de chá
custam trezentos e cinquenta florins; meio quilo de café
oitenta florins; meio quilo de manteiga trinta e cinco; um
ovo quarenta e cinco. Por cem gramas de tabaco búlgaro
dão-se catorze florins. Todos fazem negócios "negros".
Todos os garotos têm qualquer coisa que vender. O moço
de recados da nossa padaria arranja-nos linha para pontear,
muito pouca e muito fininha, por noventa cêntimos; é o
leiteiro quem arranja os falsos cartões de víveres; um
cangalheiro negocia em queijo.
Todos os dias se registram
assaltos, assassínios e roubos em que, além dos criminosos
profissionais, estão muitas vezes envolvidos polícias e
guardas. Todos querem arranjar alguma coisa para acalmar
o estômago, e como o aumento dos salários é proibido, as
pessoas recorrem à intrujice.
A polícia de menores não tem mãos a medir. Não se
passa um dia sem que desapareçam raparigas de quinze,
dezesseis, dezessete anos ou mais.
Tua Anne.

Domingo, de manhã, 7 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Ontem à tarde, tive uma longa conversa com o pai.
Chorei terrivelmente e o pai chorou comigo. Sabes o que
me disse?
-Já recebi muitas cartas na minha vida, mas esta foi
a mais feia! Tu, Anne, tu a quem os pais dedicaram tanto
amor, sempre prontos a defender-te fosse do que fosse, tu
pretendes não ter obrigações para conosco? Tu julgas-te
posta de parte e abandonada? Foste muito injusta para
conosco, Anne. Talvez não quisesses dizer bem isso, mas
escreveste-o. Não, Anne, nós não merecemos uma tal
acusação.
Oh, sim, fui injusta-nunca cometi ação tão horrível
em toda a minha vida! Só pretendi fazer figura com todo
aquele palavreado e, com todas as minhas lágrimas, só
pretendi chamar a atenção do pai sobre mim. É certo que
sofri. Mas culpar o Pim, que é bom, que tudo tem feito
por mim e continua a fazer, foi ignóbil da minha parte.
Ainda bem que ele me tirou da minha torre de marfim,
que o meu orgulho ficou derrotado, pois eu já estava, de
novo, a ser muito presunçosa. Porque nem tudo o que faz
a menina Anne é bem feito, nem de longe! Causar uma tal
dor a uma pessoa a quem se diz amar, e ainda por cima
intencionalmente, é um ato baixo, muito baixo! E o
que mais me envergonha é a maneira como o pai me
perdoou. Disse que vai queimar a carta e é tão meigo
comigo como se tivesse sido ele que se portou mal. Oh, Anne,
tens que aprender ainda tanta coisa! Será melhor começares
já a aprender, em vez de olhares de alto para os outros,
ou de os culpar!
Vivi momentos difíceis. Mas não os vive toda a gente da minha idade? Representei muitas vezes
uma comédia mas nem sequer tive consciência disso. Sentia-me só, é verdade, mas nunca
verdadeiramente desesperada. Devo ter vergonha e tenho muita vergonha!
O que está feito, está feito, mas é sempre tempo de
evitar que o mesmo aconteça outra vez. Hei - de tornar a
começar pelo princípio e isto não deve ser difícil porque
tenho o Peter. Se ele me ajudar serei capaz! Já não estou
só, ele ama-me e eu a ele; tenho os meus livros, as histórias
que escrevi, o meu diário; não sou feia de todo, não sou
estúpida; tenho um feitio alegre e gostava muito de possuir
um bom caráter!
Sim, Anne, tu bem sabias que a tua carta era dura
de mais e que não correspondia à verdade, mas, apesar
disso, sentiste-te orgulhosa dela. De ora em diante o pai
há de ser para mim outra vez o exemplo a seguir e, assim,
hei de corrigir-me por força.
Tua Anne.

Segunda-feira, 8 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Pensando bem, nunca te contei nada da nossa família,
pois não? Mas vou fazê-lo agora mesmo.
Os pais do meu pai eram muito ricos. O avô venceu
pelo seu esforço e a avó descendia de uma família rica
e distinta. Assim, meu pai gozou uma juventude de "filho
de pais ricos": saraus elegantes, todas as semanas, festas,
bailes, raparigas bonitas, jantares, uma casa grande...
Mas o dinheiro perdeu-se todo depois da outra guerra
mundial, durante a inflação. O pai teve, portanto, uma
boa educação e, por isso, riu-se muito ontem à mesa, porque,
pela primeira vez numa vida de 55 anos, rapou uma
travessa.
Também a mãe é filha de gente rica e, escutamos de
boca aberta, quando ela nos conta de festas de casamento
com duzentos e cinquenta convidados, de grandes bailes
e grandes jantares. A nós já ninguém nos pode chamar
ricos, mas tenho boas esperanças de que as coisas se modifiquem depois da guerra. Para ser
franca, não me interessa lá muito uma vida tão simples como a que a mãe e a Margot
ambicionam. Eu, por mim, gostava de passar um
ano em Paris e outro em Londres para poder estudar
as diferentes línguas e também história de arte. Agora
compara tu os meus desejos com os da Margot, que quer
ser enfermeira-parteira na Palestina. Gosto de imaginar
vestidos bonitos e gente interessante, quero ver e viver
muitas coisas - já te falei disso-, e um pouco de dinheiro
far-me-á jeito.
Hoje de manhã a Miep contou-nos de uma festa de
pedido de casamento em que ela tomou parte. A noiva
e o noivo são de famílias ricas e tudo estava um primor.
A Miep causou-nos inveja quando falou da boa comida
que serviram: sopa de legumes com bolinhas de carne
pãezinhos de queijo, "hors díveloeuvre" com ovos, "roast
beaf", bolos, vinho e cigarros e tudo em abundância, claro
arranjado no mercado negro. Só a Miep bebeu dez "brandies" - nada mau para uma
antialcoólica. Se a Miep chegou
a isso então gostava de saber quantos engoliu o marido.
Claro que toda a gente ficou um pouco "animada". Entre
os convidados havia dois polícias militares que tiraram
fotografias. Parece que a Miep nunca se esquece dos seus
"mergulhados". Tomou nota dos nomes e das direções
destes homens para o caso de acontecer alguma coisa e
ela ter de recorrer aos "bons holandeses". Fez-nos crescer
a água na boca ao contar-nos daquelas comidas deliciosas,
a nós que só comemos algumas colheres de papa ao pequeno
almoço e depois não sabemos durante horas o que havemos
de fazer à nossa fome, que comemos todos os dias espinafres
mal cozidos (por causa das vitaminas) e batatas
meio estragadas, que enchemos o estômago com salada,
crua ou cozida, com espinafres e outra vez espinafres.
Talvez ainda fiquemos tão fortes como o Popeye, embora
isso nos pareça quase impossível.
Se a Miep nos tivesse levado àquela festa, não teríamos
deixado ficar nada para os outros convidados. Podes
crer que comíamos as palavras da Miep quando nos agrupamos
à volta dela e aquilo dava a impressão de que nunca
tínhamos ouvido falar de boa comida e de gente elegante.
Sendo nós netos de milionários. Não há dúvida de que
acontecem coisas estranhas neste Mundo!
Tua Anne.
REGULAMENTOS PARA OS SERVIÇOS DO SENHOR DOUTOR
De manhã : Sete e quinze às sete e trinta
Ao almoço: à uma hora.
Depois : o tempo que quiser.

Terça-feira, 9 de Maio de 1944
Querida Kitty :
Acabei a história Ellen, a fada. Passei-a a limpo
para um papel bonito, enfeitei-a a tinta vermelha, encadernei-a, e agora parece mesmo uma coisa
bonita. Mas não achas pouco para o aniversário do pai? Não sei bem.
A mãe e a Margot fizeram-lhe poemas.
Hoje, à hora do almoço, o sr. Kraler trouxe-nos a
notícia de que a sra. B., que, em tempos, foi propagandista
da firma, quer vir passar, a partir da semana que vem,
a sua hora de almoço no escritório. Imagina: se ela fizer
isso, ninguém poderá subir, as batatas têm de ser entregues
a uma outra hora, a Elli não poderá comer aqui,,
nós não poderemos utilizar o W.C., nem mexer-nos,
etc, etc.
Estivemos todos a inventar pretextos para a fazer
desistir. O sr. van Daan disse que talvez bastasse deitar-lhe
um purgante no café.
- Não, - disse o sr. Koophuis, - isso não, por favor. Então
ela nunca mais sairá do "trono".
Todos se riram muito.
- Do "trono"? perguntou a sra. van Daan.-O que
quer dizer?
Explicamos-lhe.
- É assim que se diz? - perguntou ela cheia de candura.
- Agora, imagina tu - segredou-me a Elli a rir - que
ela vai aos armazéns Bijenkorf perguntar onde fica o trono!
O Dussel está todos os dias, pontualmente, ao meio dia
e meia hora no "trono" - para usar a linda expressão.
Enchi-me de coragem e escrevi hoje num pedaço de
papel.
Colei o papel na porta do W. C. enquanto ele estava
lá dentro. Ainda devia ter acrescentado:
"Em caso de infração, haverá bloqueio", pois a porta
do W. C. tanto pode fechar-se por dentro como por fora.
Ai Kitty, o tempo está tão bonito. Quem me dera poder sair!
Tua Anne.

Quarta-feira, 10 de Maio de 1944
Querida Kitty :
Ontem, quando estávamos no sótão a estudar francês,
pareceu-me, de repente, ouvir correr água. Perguntei ao
Peter o que seria aquilo, mas ele, em vez de responder,
correu imediatamente à mansarda, pois já estava a adivinhar
a causa do desastre. Pegou no Mouchi e levou-o
sem piedade ao lugar próprio. O Mouchi fugiu para baixo.
Por uma questão de comodidade, o Mouchi tinha escolhido
um lugar no meio do serrim, mas o chichi passou
pelas tábuas e pingou, quase todo, na pipa das batatas.
As batatas e o serrim, que o pai foi buscar ontem,
cheiravam terrivelmente mal. Pobre Mouchi. Não sabias
que te tivemos de privar da tua turfa no caixote, por
já não haver nenhuma à venda.
Tua Anne.

Quinta-feira, 11 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Uma história que te vai fazer rir.
O Peter precisava de cortar o cabelo. A sua mãe,
como de costume, quis fazer de cabeleireira. O Peter
desapareceu no seu quarto e às sete e meia em ponto voltou
de calção de banho e de sapatos de ginástica.
- Vens comigo? - perguntou a mãe.
- Vou, mas estou à procura da tesoura.
O Peter ajudou-a a procurar, mas remexeu de mais
na caixa de "toilette" da sra. van Daan.
- Não me ponhas tudo em desordem - censurou ela.
Não percebi o que é que ele respondeu, mas deve ter
sido coisa malcriada, porque a senhora deu-lhe uma
palmada no rabo; ele pagou-lhe na mesma moeda e, quando
ela se preparava para lhe chegar outra, ele fugiu. às
gargalhadas.
- Anda comigo, minha velhinha! - gritou.
Ela ficou onde estava. Então o Peter agarrou-lhe nos
punhos e arrastou-a pelo quarto fora. Ela chorava, ria,
ralhava e tentou defender-se. Mas não lhe serviu de nada.
O Peter arrastou-a até junto da escada, onde a soltou.
A sra. van Daan voltou ao quarto e, suspirando alto,
deixou-se cair numa cadeira.
- O rapto da mãe - disse eu rindo.
- Mas ele magoou-me!
Fui ver-lhe os pulsos que estavam vermelhos e quentes e
refresquei-lhos com água: O Peter, à espera dela na escada,
impacientou-se. Com uma correia na mão, como um
domador de feras, apareceu à porta. Mas a sra. van
Daan não ia. Ficou sentada à escrivaninha. e pôs-se a procurar
o lenço. Depois disse:
- Primeiro, tens de pedir desculpa.
- Está bem - disse ele - peço desculpa porque se está
a fazer tarde.
Contra sua vontade ela riu-se, levantou-se e foi até à
porta. Mas ainda achou necessário dar-nos uma explicação,
ao meu pai, à minha irmã e a mim, que estávamos
a lavar a louça.
- Ele não era assim em casa. Se se tivesse atrevido, eu
dava-lhe uma bofetada que o teria deitado pela escada
abaixo(!). Nunca costumava ser tão malcriado, apanhava
muitas surras. Agora está a sofrer as consequências da
educação moderna. Ai!, filhos modernos! Eu teria lá tido
coragem de puxar assim pela minha mãe! O sr. Frank
fazia coisas destas à sua mãe?
Estava excitada, corria de um lado para o outro; fez
ainda algumas perguntas e só depois de se ter demorado
bastante tempo é que foi com o filho para cima. Mas passados
cinco minutos voltou a correr, toda zangada, tirou o
avental e deitou-o ao chão. Perguntei-lhe se já tinha concluído o serviço. Respondeu-me que
precisava de ir depressa
lá para baixo. Como um turbilhão desceu a escada, suponho
que para se deixar cair nos braços do seu Putti. Só às oito
voltou com ele. Foram buscar o Peter, que teve de ouvir
um grande sermão. Choviam palavras como "garoto malcriado",
"grosseirão", "mau exemplo", "olha a Anne...",
"a Margot é que...". Não consegui perceber mais nada.
Amanhã já não pensam mais nisso.
Tua Anne.
P. S. Terça e quarta à noite falou a nossa querida
rainha. Vai passar umas férias fora, para voltar com novas
forças. Oxalá volte depressa. Disse entre outras coisas:
"Em breve, depois de eu ter regressado... a libertação não
demora... heroísmo e tarefas pesadas".
Seguia-se um discurso do ministro Gerbrandy. Depois
remataram a emissão com a reza de um sacerdote que
pediu a Deus para proteger os judeus e todos os presos
nos campos de concentração, nas prisões e na Alemanha.
Tua Anne.


Sexta-feira, 12 de Maio de 1944
Querida Kitty:
Talvez te pareça fantástico mas estou tão ocupada
neste momento que o tempo não me chega para levar a
cabo os meus trabalhos. Queres saber o que ainda tenho
a fazer? Aí vai: até amanhã preciso de acabar a leitura
da primeira parte da biografia de Galileu, pois o livro
tem de ser entregue na biblioteca. Comecei ontem, mas
hei de lê-lo todo. Na próxima semana quero ler: "Palestina, uma encruzilhada" e o segundo
volume do "Galileu".
Ontem acabei a primeira parte da biografia do Carlos V
e agora torna-se urgente pôr ordem nos meus apontamentos
e nas datas genealógicas. Tirei, de vários livros, três
páginas cheias de palavras estrangeiras que quero decorar. A
minha coleção de "estrelas" de cinema está numa desordem
aflitiva e tem de ser arranjada. Mas só isto me levaria
alguns dias e como o "Professor Anne, conforme já foi
dito, está a sufocar com trabalho, o caos daquela colecção
tem de ser fatalmente abandonado à sua sorte por mais
algum tempo.
Teseu, Édipo, Peleu, Orfeu, Jasão e Hércules estão
à minha espera. Os seus feitos históricos confundem-se
ainda na minha cabeça como uma trama de fios embrulhados
e multicolores. Também Byron e Fídias precisam
de ser estudados para eu não perder a ligação. O mesmo
acontece com as guerras dos sete e dos nove anos; ando
a misturar tudo. Mas que queres que faça quando se
tem uma memória tão fraca como a minha? E agora
podes imaginar como serei aos oitenta anos! É verdade :
ia-me esquecendo da bíblia. Espero que não demorarei
muito a chegar à história da Susana no banho. E que
querem dizer com os crimes de Sodoma e Gomorra? Ai! tanta coisa por perguntar, tanta coisa
por aprender! A Lieselotte
von der Pfalz até a abandonei por completo.
Vês, Kitty, que estou a transbordar?
E agora outra coisa: Já sabes há muito que o meu
maior desejo é vir a ser jornalista e, mais tarde, escritora
famosa. Serei capaz de realizar esta minha ambição? Ou
será tudo isto uma mania de grandeza ou até uma loucura?
Só o futuro o dirá. Mas assuntos não me faltam. Hei de
publicar um livro depois da guerra: O anexo. Se serei
ou não bem sucedida, não se pode prever, mas o meu
diário servir-me-á de base. Além da história do anexo,
tenho outras ideias. Hei de falar nelas mais longamente
quando tiverem tomado forma.
Tua Anne.

Sábado, 13 de Maio de 1944
Querida Kitty :
Ontem, o aniversário do pai coincidiu com os seus
dezenove anos de casado. A mulher há dias não apareceu
lá em baixo no escritório, e o Sol brilhava como ainda
não tinha brilhado neste ano. O castanheiro está coberto
de flores e acho-o ainda mais belo do que no ano passado.
O Koophuis deu ao pai a biografia de Lineu, o Kraler
um livro sobre História Natural, e o Dussel Amsterdam
e Water; os van Daan deram um cesto tão estupendamente
enfeitado que nem um artista o faria melhor, contendo
três ovos, uma garrafa de cerveja, um frasco de
yoghurt e uma gravata verde. O nosso frasco de compota
quase desaparecia ao lado daquilo. As rosas que lhe ofereci
cheiravam muito bem mas os cravos da Miep e da Elli
não têm cheiro nenhum, embora sejam lindíssimos. O pai
não se pode queixar. Vieram cinquenta pastéis, que coisa
maravilhosa! O pai, por sua vez, ofereceu doce e uma
garrafa aos senhores e "yoghurt" às senhoras. Foi uma festa
em cheio!
Tua Anne.

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