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domingo, 26 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 17]

Sábado, 1 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Apesar de tudo, as coisas continuam a ser difíceis. Sabes
o que quero dizer? É que queria ser beijada, queria esse
beijo que tanto se faz esperar. Verá o Peter em mim mais
do que uma boa camarada? Não significo outra coisa para
ele? Tu bem sabes que sou forte, que sei suportar sozinha
o meu fardo e que não me habituei a procurar auxílio.
Nunca me agarrei à mãe. Mas agora sinto desejo de encostar
a cabeça aos ombros do Peter e de ficar muito quietinha.
Não consigo esquecer-me do sonho em que sentia a
face do Peter contra a minha. Como isso era belo! E ele,
não terá o mesmo desejo? É tímido de mais para me confessar
o seu amor? Mas porque é que me quer sempre ao
seu lado? Porque é que não fala? Quero ser calma. Quero
ser forte. Com um pouco de paciência, tudo virá. Mas
-e isto é aborrecido-tenho quase a ideia de que ando
atrás dele, por ter de ir lá para cima. Não é ele que vem
ter comigo. Mas a culpa é da distribuição dos quartos e
oxalá o Peter compreenda bem isto. Oh! Ainda há muito
mais coisas que ele tem de compreender!
Tua Anne.


Segunda-feira, 3 de Abril de 1944
Querida Kitty :
Contra o meu costume, vou falar-te hoje minuciosamente
da comida, pois é um problema que não só diz
respeito ao nosso anexo mas a toda a Holanda, à Europa,
e talvez ao Mundo inteiro.
Nos vinte e um meses que aqui vivemos, já passamos
por uma série de períodos alimentares. Vou explicar-te
o que isto quer dizer. Um "período alimentar é um período
em que se come sempre o mesmo prato de fundo e os
mesmos legumes. Durante algum tempo só tínhamos salada,
umas vezes com areia, outras vezes sem areia, umas vezes
misturada com as batatas, outras vezes com as batatas à
parte, assadas numa assadeira. Depois veio o tempo dos
espinafres, depois o da couve rábano, de cenouras, pepinos,
tomates, "choucroute", etc., etc., isto depende da estação
do ano. Não é nada agradável comer todos os dias choucroute
ao almoço e choucroute ao jantar, mas quando
se tem fome, come-se mesmo. Agora chegou o período mais
interessante: já não recebemos mais legumes frescos. Agora
o nosso "menu" da semana consiste em feijão vermelho ou
sopa de ervilhas secas, batatas com bolinhos de farinha,
purê de batata ou, quando Deus quer, alguns nabos ou
cenouras meio podres, e depois, de novo, feijão vermelho.
Comemos batatas a cada refeição, a começar pelo pequeno
almoço, por não haver pão suficiente. Para fazer sopas
utilizamos, além dos feijões vermelhos, também os brancos
ou batatas, ou então usamos sopas preparadas: "Sopa
Juliana", "sopa da Rainha" ou "sopa de feijão vermelho".
Já não há comida nenhuma sem feijão vermelho, nem o
próprio pão. à noite comemos as batatas com um molho
de fantasia e um pouco de salada de beterraba das nossas
conservas. Também quero falar-te dos bolinhos de farinha.
Fazemo-los de farinha do "governo" e com água e fermento.
Claro que ficam pegajosos e duros, pesam no
estômago como pedras. É isto.
O grande acontecimento da semana é uma fatia de
"foie-gras" e um pouco de compota para pôr no pão. Mas
estamos ainda vivos e as nossas refeições frugais, por vezes,
até nos sabem muito bem.
Tua Anne.

Terça-feira, 4 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Durante muito tempo eu já nem sabia porque é que
trabalhava. O fim da guerra está ainda tão longe, tão
irreal, tão fantástico! Se a guerra não acabar em Setembro,
não voltarei para a escola, pois não quero andar dois anos
atrasada.
Os dias têm sido para mim inteiramente cheios pelo
Peter. Os meus pensamentos, os meus sonhos, tudo tem
girado à volta do Peter, de tal forma que no sábado sentia-me
atordoada. Sentada ao lado dele, tive de fazer um
esforço enorme para não chorar e, no entanto, pus-me a
rir com a sra. van Daan ao fazermos um ponche de limão.
Excitei-me e parecia estar alegre mas, mal me encontrei
sòzinha, vi que havia de chorar. Em camisa de noite
ajoelhei-me no chão, rezei muito e depois chorei, a cabeça
sobre os braços, acocorada no chão frio. Por fim voltei a
mim, dominei as lágrimas e os soluços para que ninguém
me ouvisse. Depois animei-me a mim própria, dizendo
repetidas vezes: tem que ser, tem que ser, tem que ser...
Quase quebrada por aquela posição insólita encostei-me
à borda da cama até que, pouco antes das dez e
meia, consegui deitar-me. Acabou-se. Sim, agora tudo se
acabou. Tenho de trabalhar para não ficar ignorante,
para avançar mais tarde na vida, para vir a ser uma
jornalista! Sei que serei capaz de escrever bem, alguns
dos meus contos são bons, as minhas descrições do anexo
têm humor, há passagens eloquentes no meu diário, mas...
ainda não provei que tenho, de fato, talento. O sonho
de Eva é a minha melhor história, e acho estranho que
nem eu própria saiba explicar aonde fui buscar aquilo.
Uma parte de A vida de Candy também não está mal, mas
o conjunto não presta.
Sou eu mesma o meu crítico mais severo. Sei o que
está bem ou mal escrito. As pessoas que não escrevem não
imaginam quanto prazer isto pode dar. Antigamente tinha
pena de não saber desenhar. Mas agora sinto-me feliz por
saber, ao menos, escrever. E se não tiver talento suficiente
para escrever livros ou artigos de jornal, enfim, sempre
me restará escrever para meu próprio deleite.
Quero vir a ser alguém. Não me agrada a vida que
levam a mãe, a sra. van Daan e todas essas mulheres que
trabalham para, mais tarde, ninguém se lembrar delas.
Além de um marido e de filhos, preciso de mais alguma
coisa a que me possa dedicar! Quero continuar a viver
depois da minha morte. E por isso estou tão grata a Deus
que me deu a possibilidade de desenvolver o meu espírito
e de poder escrever para exprimir o que em mim vive.
Quando escrevo, sinto um alívio, a minha dor desaparece,
a coragem volta. Mas pergunto-me : escreverei
alguma vez coisa de importância? Virei a ser jornalista ou
escritora? Espero que sim, espero-o de todo o meu coração!
Ao escrever sei esclarecer tudo, os meus pensamentos, os
meus ideais, as minhas fantasias. Não tenho trabalhado
em A vida de Candy, mas sei como desenvolver a história
e só não consigo fazê-lo ràpidamente. Pode ser que nunca
acabe aquilo e que vá parar ao cesto de papel ou ao fogão.
Não é uma ideia agradável, mas penso: com catorze anos
e com tão pouca experiência, ainda não se pode, afinal,
escrever uma história filosófica.
Não quero perder a coragem. Tudo há de sair bem,
pois estou decidida a escrever!
Tua Anne.

Quinta-feira, 6 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Perguntas-me o que é que mais me interessa e quais
são os meus mais queridos entretenimentos. Não te assustes;
é que não são poucas coisas.
Em primeiro lugar, gosto de escrever, mas isto não é
bem um entretenimento.
Em segundo, gosto da genealogia das casas reais. Já
encontrei, em jornais, livros e papéis, bastante material
sobre as famílias francesas, alemãs, espanholas, inglesas,
austríacas, russas, norueguesas e holandesas. Consegui bons
resultados; há bastante tempo que tiro apontamentos de
todas as biografias e livros de história que leio.
O meu terceiro entretenimento é a história, por isso
o pai já me comprou alguns livros sobre este assunto.
Oxalá não venha longe o dia em que possa fazer investigações
nas bibliotecas públicas.
Em quarto lugar, gosto da mitologia grega e romana, e
também sobre isso tenho vários livros.
Outros entretenimentos são a coleção de fotografias
de "estrelas" de cinema e da família, os livros, saber coisas
sobre escritores, poetas e pintores e sobre a história da
arte. Pode ser que ainda, um dia, a música venha a
juntar-se a tudo isto.
Tenho grande antipatia pela álgebra, a geometria e
toda a espécie de contas. Fora isto agrada-me qualquer
disciplina da escola, mas coloco a história acima de todas.
Tua Anne.


Terça-feira, 11 de Abril de 1944
Querida Kitty:
Sinto como que marteladas na cabeça! Nem sei por
onde começar. Sexta-feira (Sexta-feira Santa) à tarde, e
no sábado também, fizemos vários jogos. Esses dias
passaram-se sem novidade e bastante depressa. No domingo
pedi ao Peter que viesse aqui e mais tarde subimos e ficamos
lá em cima até às seis horas. Das seis e quinze até às sete
horas ouvimos um belo concerto de música de Mozart;
do que mais gostei foi da "Kleine Nachtmusik". Não
consigo escutar bem quando há muita gente à minha volta,
porque a boa música comove-me profundamente.
Domingo
 à noite o Peter e eu fomos ao sótão. Para
estarmos sentados confortàvelmente, levamos umas almofadas
que pusemos em cima de um caixote. O sítio é
estreito e estávamos muito apertados um contra o outro.
A Mouchi fazia-nos companhia. Assim havia quem nos
vigiasse. De repente, às nove menos um quarto, o sr. van
Daan assobiou e perguntou se nós tínhamos levado uma
almofada do sr. Dussel. Saltamos do caixote abaixo e descemos
com as almofadas, o gato e o sr. van Daan. Por causa
da almofada do sr. Dussel desenrolou-se uma verdadeira
tragédia. Ele estava desatinado por termos levado a
sua "almofada da noite". Receou que a enchêssemos de
pulgas, fez cenas tremendas por causa de uma reles almofada.
Como vingança, o Peter e eu metemos-lhe duas
escovas duras na cama. Rimo-nos muito daquela pequena
partida Mas o divertimento não havia de ser de
longa duração. às nove e meia o Peter bateu à porta e pediu
ao pai que subisse para lhe ensinar uma frase inglesa muito
complicada.
- Aqui há gato - disse eu à Margot.-Ele não está a
dizer a verdade.
E tinha razão. Havia ladrões no armazém. Com rapidez,
o pai, o Peter, o sr. van Daan e o Dussel desceram.
A mãe, a Margot, a sra. van Daan e eu ficamos à espera.
Quatro mulheres cheias de medo não podem fazer outra
coisa senão porem-se a falar. Assim fizemos. De repente,
ouvimos, lá em baixo, uma pancada forte. Depois, silêncio.
O relógio deu dez menos um quarto. Estávamos lívidas
muito quietas e cheias de medo. Que foi feito dos homens.
O que é que significava aquela pancada? Haverá luta
entre eles e os ladrões? Dez horas. Passos na escada. Entra
primeiro o pai, pálido e nervoso, depois o sr. van Daan.
- Fechem a luz. Subam sem fazer barulho. Deve vir
a polícia.
Agora não havia tempo para medos. Fechamos a luz.
Ainda peguei no meu casaquinho e subimos.
- O que aconteceu? Depressa, conta! - Mas não havia
ninguém que pudesse contar, porque os senhores já tinham
descido outra vez. às dez e dez voltaram, dois ficaram de
guarda na janela aberta, no quarto do Peter. A porta do
corredor ficou fechada. A porta giratória também. Sobre
o candeeiro lançamos uma camisola. Depois eles começaram
a contar:
O Peter ao ouvir duas pancadas fortes, correu abaixo
e viu que do lado esquerdo da porta do armazém faltava
uma tábua. Voltou depressa para cima, avisou a parte
mais corajosa do grupo e então eles, os quatro, desceram.
Quando entraram no armazém encontraram os ladrões
em flagrante. Sem refletir o sr. van Daan gritou :
- Polícia!
Os ladrões fugiram num instante. Para evitar que a
ronda da Polícia notasse o buraco, os nossos homens colocaram
a tábua no sítio, mas um pontapé de lá de fora
deitou-a novamente ao chão. Os quatro ficaram perplexos
com tanto atrevimento. O sr. van Daan e o Peter sentiram
vontade de matar aqueles patifes. O sr. van Daan bateu com
o machado no chão. Depois novamente silêncio. Tentaram
colocar outra vez a tábua.
Novo susto: lá fora estava um casal e a luz forte de uma
lâmpada de mão iluminou todo o armazém.
- Com mil raios!-disse um dos nossos e... num instante
trocaram o seu papel de polícias pelo de ladrões.
Fugiram. Subiram. O Peter abriu portas e janelas na cozinha
do escritório particular, deitou o telefone ao chão e
depois desapareceram todos por detrás da porta giratória.
Fim da primeira parte.
Provàvelmente o casal avisaria a Polícia. Era domingo,
Domingo
 de Páscoa, e ninguém viria ao escritório, antes
de terça-feira de manhã. Não podíamos fazer mesmo nada.
Imagina duas noites e um dia a passar com tal angústia!
Nós, as mulheres é que já não éramos capazes de imaginar
coisa alguma. Estávamos sentadas às escuras; a sra. van
Daan resolveu fechar todas as luzes, e sempre que se
ouvia um ruído murmurávamos "chut, chut".
Eram dez e meia, onze horas, e de ruídos nada. Alternadamente
vinham ter conosco o pai e o sr. van Daan.
Depois, às onze e um quarto, ouvimos ruídos lá em baixo.
Agora já se ouvia a respiração de cada um de nós. Não
nos mexemos. Passos na casa, no escritório particular, na
cozinha, depois... na escada que conduz à porta camuflada.
Retivemos a respiração; oito corações a martelar.
Passos na escada, sacudidelas nas prateleiras da porta
giratória. Estes momentos são impossíveis de descrever.
-Estamos perdidos - pensei, e já nos via, a todos,
arrastados pela Gestapo através da noite. Mais duas vezes
mexeram na porta giratória, depois alguma coisa caiu e os
passos afastaram-se. De momento, estávamos salvos. Então
começamos todos a tremer. Ouvia-se o bater de dentes;
ninguém conseguia pronunciar uma palavra.
Não se ouvia mais nada em toda a casa, mas havia
luz do outro lado da porta camuflada. Teriam desconfiado
desta ou esqueceram-se de apagar a luz? Dentro do
prédio já não se encontravam estranhos; só lá fora, na
rua, haveria possivelmente um guarda. As nossas línguas
soltaram-se, começámos a falar, mas o medo ainda nos
dominava. Todos precisavam... O Peter tem um cesto de
papéis de chapa de ferro, que podia substituir o balde que
estava no sótão.
O sr. van Daan começou, depois o pai. A mãe teve
vergonha. O pai levou-nos o cesto ao quarto, onde a Margot, a sr. van Daan e eu, muito
contentes, o utilizamos,
e, por fim, também a mãe. Todos queriam papel. Felizmente
eu trazia algum comigo no bolso.
Do cesto vinha um cheirete horrível; falávamos em voz
baixa; estávamos cansados. Era meia-noite.
- Deitem-se no chão e durmam!
Deram-nos, à Margot e a mim, almofadas. A Margot
ficou deitada junto do armário dos víveres e eu entre as
pernas da mesa. No chão não se sentia tanto o mau cheiro,
mas a sra. van Daan, sem fazer o mínimo ruído, foi buscar
um pouco de cloro e deitou-o no cesto, que depois cobriu
com um pano velho.
Conversas, murmúrios, mau cheiro, medo, e sempre
alguém sentado no cesto. Impossível dormir-se. às duas
e meia eu estava tão cansada que não ouvi mais nada
até às três e meia. Depois acordei. Senti a cabeça da
sra. van Daan em cima do meu pé.
-Deem-me alguma coisa para vestir. Tenho frio.
Atiraram-me roupa. Mas não queiras saber o que era!
Fiquei com calças de lã em cima do pijama, um "pulover"
e uma saia preta, umas meias brancas e, por cima, soquetes
rotos.
Agora a sra. van Daan sentou-se numa cadeira e o
sr. van Daan deitou-se no chão, também em cima dos
meus pés. Comecei a pensar em tudo o que tinha acontecido
e pus-me a tremer de tal forma que o sr. van Daan
não pôde dormir. Preparei mentalmente as palavras que
havíamos de dizer, caso a polícia voltasse. Com certeza era
preciso confessar-lhes que éramos "mergulhados". Ou eles
eram bons holandeses - e então estávamos salvos - ou eram
pró-nazis e então aceitavam dinheiro!
- Tira o rádio - suspirou a sra. van Daan.
-Queres que o deite ao fogão? Se nos encontrarem,já
não importa que encontrem também o rádio.
- Então encontram também o diário da Anne - disse
o pai.
- E se o queimássemos-propôs a pessoa mais medrosa
do nosso grupo.
Este momento e aquele em que eu tinha ouvido as
sacudidelas da Polícia na porta giratória, foram para mim
os mais terríveis.
- O meu diário não! O meu diário só será queimado
comigo!
Graças a Deus, o pai já nem me respondeu.
Não vale a pena reproduzir todas as conversas. Confortei
a sra. van Daan, que estava cheia de um medo horrível.
Falamos de fugas, interrogatórios, da Gestapo e da
necessidade de sermos corajosos.
-Agora temos de ser valentes como os soldados
sra. van Daan. Se nos apanharem, o nosso sacrifício será
pela rainha, a pátria, a verdade e o direito, como dizem
também na emissora de Orange.
O que mais me aflige é arrastarmos tanta gente para
a infelicidade.
O sr. van Daan tornou a trocar o lugar com a sua
mulher, o pai veio para junto de mim. Os homens fumavam
sem interrupção, de vez em quando ouvia-se um
suspiro fundo, depois alguém a correr ao cesto... e isto
ainda se repetiu muitas vezes. Quatro horas, cinco horas,
cinco e meia. Fui ao quarto do Peter. Ficamos sentados
à janela, ouvíamos os ruídos, cada um sentia as vibrações
do corpo do outro, tão encostados estávamos. Só dizíamos
uma palavra, de longe em longe. Estávamos sempre
atentos ao que se ia passando. Ao lado ouvimos alguém
abrir as persianas.
às sete, os senhores queriam telefonar ao Koophuis e
pedir-lhe que mandasse alguém. Escreveram num papel
o que lhe iam dizer. Havia o perigo de o guarda em frente
da porta ouvir o toque do telefone, mas o perigo da
Polícia voltar era maior ainda. Os tópicos a comunicar ao
Koophuis eram os seguintes:
Assalto: a Polícia entrou em casa, chegou até à porta
giratória, mas não foi mais longe.
Ladrões, provàvelmente apanhados em flagrante, arrombaram
a porta do armazém e fugiram pelo quintal.
Porta principal trancada. O Kraler deve ter saído
pela outra porta. As máquinas de escrever estão em segurança
na caixa preta, no escritório particular.
Tentar avisar o Henk. Ir buscar a chave a casa da Elli. Ele que venha cá ao escritório com o
pretexto de que o
gato precisa de comida.
Tudo se fez tal qual. Telefonou-se ao Koophuis, levamos
as máquinas (que ainda estavam connosco em cima)
para baixo, e guardamo-las na caixa preta. Sentamo-nos
à volta da mesa e esperamos pelo Henk ou... pela Polícia.
O Peter adormeceu. O sr. van Daan e eu acabamos
por deitar-nos no chão. Depois ouvimos passos pesados.
Eu disse, em voz baixa:
- É o Henk.
- Não, não, é a Polícia, ouvi dizer alguém.
Bateram à porta. O assobio da Miep. Agora é que a
sra. van Daan não aguentou mais. Branca como a cal,
sem forças, estava caída na cadeira, e se aquela tensão
se tivesse prolongado por mais um minuto, ela teria desmaiado.
Quando a Miep e o Henk entraram no nosso quarto,
ofereceu-se-lhes um lindo espetáculo. Só a mesa valia a
pena ser fotografada. A revista "Filme e Teatro" aberta, e
as fotos das lindas "estrelas" do bailado besuntadas com
compota e com o remédio contra a diarreia. Dois frascos
de compota, um pão e meio, espelho, pente, fósforos,
cinza, cigarros, tabaco, cinzeiro, calcinhas, lâmpada de
bolso, papel higiênico, etc., etc...
Já se vê, recebemos o Henk e a Miep com júbilo e
lágrimas. O Henk tapou o buraco da porta com a tábua
e depois foi à Polícia para comunicar o assalto. A Miep
encontrou debaixo da porta um aviso do guarda-noturno
que viu o buraco e avisou a Polícia. O Henk foi também
falar com ele.
Tínhamos uma meia hora para nos arranjarmos. Nunca
vi uma tal metamorfose em tão pouco tempo. A Margot
e eu abrimos as camas, fomos ao W. c., lavamo-nos, limpamos
os dentes e penteamo-nos. Depois, num instante,
arrumamos o quarto e voltamos para cima. A mesa já
estava limpa. Fomos buscar água, fizemos café e chá e
pusemos a mesa para o pequeno almoço. O pai e o Peter
limparam o cesto sujo com água e cloro.
às onze horas já nos encontrávamos todos com o Henk
à volta da mesa e acalmamos pouco a pouco. O Henk contou:
- O guarda noturno Slagter ainda estava a dormir.
Falei com a mulher e ela disse-me que o marido, ao fazer
a ronda nos cais, tinha reparado no buraco na nossa
porta da rua. Foi procurar um polícia e, juntos, rebuscaram
a casa de cima abaixo. Que na terça-feira viria fazer mais
comunicações ao Kraler. Foi à esquadra da Polícia, onde
ainda não sabiam nada do assalto, mas tomaram nota
e disseram que viriam cá também na terça-feira.
No regresso o Henk passou pela loja do hortaliceiro,
na esquina, e contou-lhe do roubo.
- Eu sei, - disse o hortaliceiro pachorrentamente. - Passei,
ontem à noite com minha mulher pelo vosso estabelecimento
e vi o tal buraco na porta. Minha mulher não quis
parar mas eu acendi a minha lâmpada de bolso e iluminei
o interior. Os ladrões fugiram logo. Não chamei a Polícia,
pensei que seria melhor. Não sei nada, mas imagino
algumas coisas...
O Henk agradeceu e foi-se embora. O hortaliceiro
decerto suspeita de que estamos aqui, pois entrega as
batatas sempre à hora do almoço. Um tipo às direitas.
Depois do Henk nos ter deixado - era uma hora - deitamo-nos
para dormir. às três menos um quarto acordei
e já não vi o Dussel na sua cama. Ainda toda entorpecida
encontrei, por acaso, o Peter no quarto de banho.
Combinamos encontrar-nos depois em baixo, no escritório.
- Ainda sentes coragem para subir ao sótão? - perguntou-me.
Disse-lhe que sim, fui buscar a minha almofada
e subimos. O tempo estava uma maravilha. Em breve
as sereias começaram a dar alarme. Mas nós ficamos onde
estávamos. O Peter deitou-me um braço em volta dos
ombros e eu também deitei um braço em volta dos seus
ombros, e assim ficamos muito calmos, até que veio a
Margot chamar-nos para o lanche.
Comemos pão, tomamos limonada e já estávamos de
novo dispostos a dizer brincadeiras uns aos outros. Depois
disso não houve mais nada de especial. à noite agradeci
ao Peter por ele ter sido o mais corajoso de todos nós.
Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação
tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos.
Imagina a Polícia a remexer na estante da nossa
porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar conosco!
Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo,
cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso,
porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos
bondosos protetores.
-Estamos salvos. Não nos abandones!
É apenas isto que podemos suplicar.
Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações.
O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório
do Kraler mas sim no quarto de banho. às oito e meia
e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não
pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e
meia não podemos utilizar o autoclismo do W. C. Hoje
à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém.
Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se
devia mandar fazer isso. O Kraler censurou a nossa imprudência
e também o Henk disse que não devíamos em tais
casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que
somos "mergulhados", judeus enclausurados, presos num
sítio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres.
Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes
e aceitar o nosso
destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto
possível e ter confiança em Deus. Há de chegar o dia em
que esta guerra medonha acabará, há de chegar o dia
em que também nós voltaremos a ser gente como os outros
e não apenas judeus.
Quem foi que nos impôs este destino? Quem decidiu
excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos?
Quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos
trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará. Se
apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem
judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo.
Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se
aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por
isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só
holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro país.
Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.
Não percamos a coragem. Temos de ter consciência
da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa
salvação há de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso
povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram.
Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer,
mas através de todos os séculos se mantiveram fortes.
Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não
morrerão!
Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela
Polícia, estava preparada como os soldados no campo de
batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que
estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra.
Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua.
É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever
à própria rainha, não hei de desistir enquanto não
conseguir este meu fim.
Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais.
Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho
mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado,
mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho
uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me
ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser
mulher, uma mulher com força interior e com muita
coragem.
Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que
a mãe. Não quero ficar insignificante. Quero conquistar
o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
O que sei é que a coragem e a alegria são os fatores
mais importantes na vida! e não sei explicar porquê. Escrevi tudo num caos, não se sente o nexo,
e cada vez duvido mais de que um dia haja alguém interessado nos disparates que escrevo.
"As confidências de um patinho feio" será o título
desta papelada. O sr. Bolkestein e o sr. Gerbrandy, os
colecionadores de documentos de guerra, não encontrarão
nada de especial no meu diário.
Tua Anne.

Sexta-feira, 14 de Abril de 1944
Querida Kitty:
A atmosfera está ainda tensa. O Pim está muito irritável.
A sra. van Daan está deitada com uma constipação
e faz cenas; o marido está pálido e não tem cigarros que o
animem; o Dussel, depois de ter resolvido sacrificar uma
parte das suas comodidades, anda descontente.
Há muita coisa que não funciona. O W.C. está a deitar
água e a torneira está perra. Mas graças às nossas
muitas relações, estes males hão de remediar-se depressa.
Há ocasiões em que estou sentimental, sei-o bem, mas...
por vezes há razões para o sentimentalismo. Quando o
Peter e eu estamos sentados num caixote duro, no meio
de ferros-velhos e de pó, muito juntos, eu com um braço
em volta dos seus ombros, ele com um braço em volta
dos meus ombros, quando ele brinca com uma madeixa
do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos
pássaros, quando se vê as árvores a pintarem de verde
quando o sol nos chama e o ar é todo ele azul, oh!, então
os meus desejos são infinitos.
Mas aqui só se veem caras carrancudas e descontentes.
Suspiros e queixumes por toda a parte. Tudo isto dá a
impressão de que as coisas vão cada vez pior. A verdade,
no entanto, é que tudo corre sempre mal se não soubermos
reagir. Já não há ninguém cá no anexo que nos sirva de
exemplo, cada um luta sozinho com os seus nervos. Só se
ouve dizer:
- Quem me dera que isto acabasse!
A mim, o trabalho, a esperança, o amor e a coragem
fazem-me aguentar, mais até: tornam-me boa e feliz.
Creio, Kit, que estou um pouco maluquinha hoje.
Tua Anne.

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