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sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 16]

Segunda-feira, 20 de Março de 1944
Querida Kitty :
Hoje de manhã o Peter perguntou-me se não ia ter
com ele à tardinha e acrescentou que não o estorvava.
Disse que no quarto dele tanto havia lugar para um como
para dois. Respondi-lhe que não podia ir todas as tardes
porque os outros não achavam bem, mas ele disse que
não me devia importar com isso. Então prometi ir no
sábado e pedi-lhe que me avisasse sempre que houvesse
luar.
- Combinado - disse ele-, quando houver luar vamos
lá para baixo contemplá-lo.
Entretanto, caiu uma sombra sobre a minha felicidade.
Já desconfiava há bastante tempo de que a Margot também
gosta do Peter. Não sei se gosta muito mas, de qualquer
maneira, não me sinto à vontade. Sempre que vou para
junto do Peter, causo-lhe decerto um desgosto.
Acho muito delicado da parte dela procurar não mostrar
a sua dor. Se fosse eu, ficava fora de mim de ciúmes.
Mas a Margot diz que me não apoquente e que não tenha
pena dela.

- Mas não acho agradável que fiques assim de fora,
como uma terceira pessoa.
- Estou habituada - disse ela um tanto amargamente.
Ainda não tive coragem de contar isto ao Peter. Talvez
lhe conte qualquer dia. Por agora, temos de fazer outras
confidências. A mãe ontem ralhou-me. Mereci-o bem,
pois levei longe de mais a minha indiferença para com
ela. Hei de fazer os possíveis para me dominar; vou tentar
ser amável e não responder torto. Também o Pim está
menos afetuoso. Pretende não tratar-me como uma criança e cai no extremo oposto: é frio de
mais. Vamos a ver o que sai disto tudo!
Basta. Quero estar sempre a olhar para o Peter, estou
a transbordar.
Uma prova da generosidade da Margot: recebi hoje,
20 de Março de 1944, esta carta:
Anne, quando ontem te disse que não tinha ciúmes de ti só
fui 50 por cento sincera. A verdade é esta: não tenho ciúmes nem de ti nem do Peter, mas tenho
pena de mim por não ter encontrado ainda ninguém - e não vejo jeito de encontrar por enquanto -
com quem possa falar abertamente sobre o que penso e sinto. Não vos invejo por terdes
confiança um no outro. Isso compensa-te um pouco de tudo aquilo de que estás privada aqui e
que outras raparigas possuem como coisa natural.
Por outro lado sei que não me teria aproximado tanto do
Peter como tu, pois só posso fazer confidências a alguém muito
intimo, a uma pessoa que me compreenda sem ser preciso entrar
em grandes pormenores. E esse alguém tinha de ser
intelectualmente superior a mim, e não é o caso do Peter. Mas
compreendo que vocês dois se entendam muito bem. Por
isso não penses que me estás a roubar qualquer coisa ou que eu fique prejudicada, porque não é
assim.
Tu e o Peter só lucram com o vosso convívio.
A minha resposta:
Querida Margot, a tua carta foi muito gentil mas, mesmo
assim, não me sinto apaziguada e não sei se é que isto alguma
vez pode acontecer.
Não tenho tanta intimidade com o Peter como estás a
imaginar. Simplesmente sentimo-nos mais à vontade quando falamos ao fim da tarde, junto da
janela aberta, do que durante o dia, à luz do Sol.
É mais fácil murmurar os sentimentos do que dizê-los em voz alta.
Suponho que sentes pelo Peter uma espécie de afeição de irmã
e que gostarias de o ajudar tal qual como eu. Talvez ainda
venhas a ajudá-lo sem que vocês tenham a intimidade que nós
sonhamos. A confiança tem de ser recíproca. Julgo que é esta a
razão por que não me posso abrir com o pai inteiramente.
Não falemos mais sobre o assunto. Se houver alguma coisa
a dizer, escreve-me. É-me mais fácil exprimir-me por escrito.
Talvez não saibas quanto te admiro. Oxalá que eu tenha dentro
de mim um pouco de bondade do pai e da tua, pois nisto é que
sois muito parecidos.
Tua Anne.

Quarta-feira, 22 de Março de 1944.
Querida Kitty:
Ontem recebi esta carta da Margot:
Querida Anne:
A tua carta deu-me a impressão de que sentes remorsos quando
vais ter com o Peter para trabalhar ou falar com ele. Mas não
tens motivos para isso. O Peter não é pessoa que pudesse
servir-me de confidente. Tens razão quando dizes que o vês
como um irmão, mas... como um irmão mais novo! Dá-me sempre a
ideia de que tanto ele como eu estamos a estudar-nos
mutuamente para verificar, se nós, talvez um dia, ou talvez
nunca, poderemos conviver como irmãos. Mas por enquanto ainda
é cedo.
,Não tenhas pena de mim, por favor. Goza a amizade que,
felizmente, encontraste.
Entretanto acho a vida cada vez mais bela. Acredita,
Kitty, o velho anexo ainda há de assistir a um verdadeiro
grande amor. Não quero saber, por ora, se, mais tarde,
casarei com o Peter, porque não sei como ele será quando
adulto. Também não sei se depois ainda gostaremos tanto
um do outro. Que o Peter agora gosta de mim, já não
tenho dúvidas. Mas não sei bem que espécie de amor é
o seu. Ser uma boa camarada, aprecia-me como rapariga
ou como irmã? Ainda não consegui descobrir.
Quando me disse, ao falar nas zangas entre os seus
pais, que o ajudo muito, fiquei satisfeita e compreendi
que a nossa amizade tinha dado um grande passo em frente.
Ontem perguntei-lhe o que faria ele se aqui vivessem uma
dúzia de Annes que, a cada passo, fossem ter com ele.
Respondeu:
- Se fossem todas como tu, não seria nada mau.
Recebe-me sempre muito bem e vê-se que gosta de
me ver aparecer. Está a estudar francês com mais entusiasmo,
até estuda à noite na cama, depois das dez horas.
Oh, quando penso no sábado, nas nossas conversas, na
delícia de cada momento, sinto-me, pela primeira vez,
satisfeita comigo própria. Não me arrependo de nenhuma
das palavras que pronunciei, ao contrário do que sucede
quase sempre. Ele é muito bonito quando se ri e também
quando está calado, e é simpático e bom. A meu ver deve
ter ficado espantado ao verificar que, afinal, não sou a
rapariga mais superficial que existe na Terra mas sim uma
criatura sonhadora como ele e com as mesmas dificuldades
a vencer.
Tua Anne.

A minha resposta
Querida Margot:
Parece-me que o melhor é deixarmos correr as coisas.
Qualquer dia o Peter e eu havemos de tomar uma decisão, de
uma maneira ou de outra. Como isto se vai passar, não
sei, mas nestas coisas só costumo pensar na própria
ocasião. Uma coisa vou fazer com certeza, caso o Peter
e eu selemos definitivamente a nossa amizade: vou
contar-lhe - e não te peço sequer licença para isso
que gostas também dele e que pode contar contigo sempre que
for preciso. Não sei o que o Peter pensa a teu respeito, mas
hei de perguntar-lhe. Tenho a certeza de que pensa o
melhor. Podes ir ter sempre conosco, a qualquer sítio
onde estejamos. Nunca nos estorvarás. E repara, ele e eu
chegámos a acordo sem termos
falado, só fazemos confidências ao anoitecer, quando
escurece...
Sê corajosa. Eu também o sou. A tua vez há de chegar mais
depressa do que imaginas.
Tua Anne.

Quinta-feira, 23 de Março de 1944
Querida Kitty:
As coisas cá no anexo vão correndo melhor. O nosso
fornecedor "negro" já saiu da prisão.
A Miep voltou ontem, a tosse da Elli melhorou, só
o Koophuis tem de ficar ainda em casa. Ontem caiu,
aqui perto, um avião. Os tripulantes conseguiram saltar,
o aparelho despenhou-se sobre uma escola. Felizmente
as crianças não estavam lá. Houve incêndio e também
alguns mortos. Os alemães metralharam os paraquedistas.
A população ficou indignada com tamanha cobardia.
Nós, isto é, as mulheres medrosas, assustamo-nos muito.
Acho que isto de metralhar é... nojento.
Vou agora muitas vezes tomar um pouco do ar fresco
da noite no quarto do Peter. É bom estar sentada junto
dele e olhar através da janela. O sr. van Daan e o Dussel
fazem pouco quando subo.
Dizem: "A segunda pátria da Anne" ou "Não acham
que fica mal a um jovem receber senhoras no seu quarto
a estas horas e no escuro?"
O Peter mostra uma indiferença espantosa em face
de tais observações. A mãe dele anda também curiosa
e gostava de saber quais os assuntos das nossas conversas,
mas não faz muitas perguntas porque receia uma resposta
pouco amável. O Peter disse que os adultos têm mas é
inveja por sermos novos e que se aborrecem por nós não
ligarmos importância à sua má-língua. Por vezes vem cá
abaixo buscar-me, mas, apesar de procurar dominar-se,
fica sempre corado como um pimento e quase não consegue
falar. Que sorte tenho eu por não corar com tanta facilidade!
Deve ser uma maçada.
O pai diz que sou uma pretensiosa, mas não é verdade.
Sou apenas um pouco vaidosa. Até agora ninguém me
tinha dito que o meu físico era agradável, com exceção
de um rapaz da escola que me achava bonita quando
me ria. Mas o Peter fez-me ontem um autêntico cumprimento.
Vou reproduzir-te a conversa. Eu andava intrigada
por ele repetir tantas vezes:
- Ri-te mais uma vez!
Perguntei-lhe:
- Porque queres que me ria tantas vezes?
- Porque ficas muito linda. Aparecem-te covinhas
nas faces. Como é que fazes isso?
- Já nasci assim. É, de resto, a única coisa bonita
que possuo.
- Por amor de Deus, isso não é verdade!
- Escusas de me contradizer. Sei que não sou bonita.
Nunca fui nem serei.
- Não estou de acordo. Acho-te bonita.
- Não é verdade.
- Se eu to digo, podes acreditar que é mesmo.
Claro, eu então disse-lhe que o achava também bonito.
Toda a gente nos enche os ouvidos com ditos sobre a nossa
amizade. Mas não fazemos caso. As observações são todas
chochas. Esquecer-se-ão certos pais do seu tempo da juventude?
Quer-nos parecer que sim. Tomam-nos a sério
quando dizemos coisas para rir e riem-se de nós quando
falamos a sério.
Tua Anne.

Segunda-feira, 27 de Março de 1944
Querida Kitty:
Na nossa "história da época do mergulho" a política
devia ocupar um capítulo grande, mas como é um assunto
que não me tem interessado muito, tenho-me descuidado
de o tratar. Por isso vou dedicar esta carta à política.
Que haja as mais diversas maneiras de pensar é coisa
evidente, que neste tempo de guerra, cheio de confusões,
se discuta constantemente, também é lógico, mas... que
as pessoas se estejam sempre a zangar por causa da
política, é estupidez.
Que apostem, riam, ralhem, que façam o que lhes
apeteça - por mim podem mesmo rebentar. Mas que não
se zanguem, pois as consequências são sempre más. As
pessoas que nos visitam trazem, não raras vezes, notícias
que não passam de boatos. A rádio, até agora, tem dito
a verdade. O Henk, a Miep, o Koophuis, o Kraler, a
Elli, todos relatam os acontecimentos conforme a sua
disposição, com todos os "up and down". O Henk ainda
é o mais sóbrio deles todos.
Aqui no anexo a disposição, no que respeita a política,
é mais ou menos sempre a mesma. Nos debates sem
fim sobre invasão, bombardeamentos, discursos de ministros,
etc. etc. ouvem-se opiniões e exclamações
"Impossível!... Por amor de Deus quem me dera que já
começassem. Quando acabará isto?... Formidável, magnífico,
não podia correr melhor..."
Otimistas, pessimistas, e não esqueçamos os realistas...
todos querem impingir as suas opiniões e, como é velha
regra, todos estão convencidos de ter razão. Uma determinada senhora aborrece-se por o marido
ter tanta confiança nos ingleses. Por sua vez o marido ataca a dita senhora por causa das suas
expressões trocistas e desdenhosas
acerca da nação que ele mais admira. Nunca se
cansam de falar neste assunto. Descobri como a coisa
funciona: é exatamente como quando se pica uma pessoa
com um alfinete e ela dá um pulo. Uso, por vezes,
este processo. Atiro uma palavra sobre política e toda a
gente perde logo a cabeça.
Como se as emissões da "Wehrmacht" alemã e as da
B. B. C. ainda não fossem suficientes, apareceu agora
mais outra estação: a "Luftlagemeldung", por vezes fascinante,
por vezes uma desilusão. Os ingleses dão notícias
da sua força aérea sem interrupção, durante o dia e a noite;
os alemães procedem do mesmo modo para espalharem
as suas mentiras. Aqui ouve-se rádio logo pela manhã cedo
e depois, de hora em hora, até às dez da noite, por vezes
até às onze, prova evidente de que os adultos têm uma
santa paciência mas que, ao mesmo tempo, são lentos de
compreensão. (há exceções, não quero ofender ninguém).
Acho que devia bastar uma pessoa ouvir uma ou, quando
muito, duas vezes, rádio por dia. O programa dos operários,
as emissões de rádio Orange, Frank Philips, ou Sua Majestade
a Rainha-ouve-se tudo. Se não estão a comer ou a
dormir, estão sentados junto da rádio falando de comer
e de dormir e, claro está, de política. Que maçada.
Palavra, é preciso muita arte para não se ficar, desta
maneira, uma velha seca e sem interesse.
Um exemplo eloquente é um discurso de Winston Churchill,
a quem todos igualmente admiramos: Domingo, nove horas. O chá já está pronto debaixo
do abafador. Os hóspedes aparecem. O Dussel fica à
esquerda do rádio, o sr. van Daan em frente, o Peter ao
lado, a mãe junto do sr. van Daan, a sra. van Daan atrás
deles, o Pim à mesa, a Margot e eu também. Os homens
fumam, o Peter quase adormece de tanto esforço que
faz para ouvir tudo. A mãe, num roupão comprido e
escuro e a sra. van Daan tremem por causa dos aviões
que, não fazendo caso do discurso, voam sobre a nossa
casa a caminho do Ruhr. O pai sorve o seu chá, a Margot
e eu estamos irmãmente unidas pelo Mouchi, que dorme
estendido sobre os nossos regaços. A Margot tem "bigoudis"
no cabelo, eu trago um pijama demasiado curto e apertado. Assim encontramo-nos numa
intimidade agradável,
pacífica. Mas já estou a ver o que se vai seguir. Eles
começam a ficar impacientes, querem que aquilo acabe,
já estão a bater com os pés, ansiosos por discutir sobre o
discurso. Kss, Kss, Kss... é assim que se provocam uns
aos outros até que tudo acaba em barulho e desarmonia.
Tua Anne.

Terça-feira, 28 de Março de 1944.
Querida Kitty:
Podia falar mais ainda sobre a política mas hoje tenho
de contar-te uma série de outras coisas. A mãe proibiu-me
de ir tantas vezes lá para cima porque acha que a sra.
van Daan está com ciúmes. O Peter convidou a Margot
para ir também, não sei se o fez por delicadeza ou se foi
sincero. Perguntei ao pai se devo importar-me com os
ciúmes da sra. van Daan. Ele acha que não. E agora?
Minha mãe está aborrecida. Ou talvez ciumenta também,
quem sabe? O pai não tem inveja dos meus encontros
com o Peter, está contente por nos darmos tão bem. A
Margot acha o Peter simpático, mas compreende que não
se pode falar a três sobre aquilo que é apenas assunto de
dois.
A mãe supõe que o Peter anda apaixonado por mim.
Quem me dera que isso fosse verdade. Nesse caso estaríamos
quites e podíamos falar ainda mais abertamente.
A mãe diz que ele não me larga com os olhos. E tem razão.
É que nós, de vez em quando, piscamos os olhos e as
minhas covinhas agradam muito ao Peter. Mas não há
nada a fazer, não é verdade?
Uma situação difícil. A mãe contra mim, eu contra
a mãe, e o pai a fechar os olhos perante a luta silenciosa
que nós duas travamos. A mãe está triste porque, ao fim
e ao cabo, gosta de mim, e eu não estou nada triste porque
sinto que ela não me compreende. E o Peter... Não quero
renunciar ao Peter. É bom rapaz e eu admiro-o. Tudo
pode vir a ser belo entre nós. Porque é que os adultos querem
meter o nariz nisto? Felizmente que me habituei a esconder
os meus sentimentos, pois assim consigo não deixar
transparecer quanto gosto dele. Ele falará um dia? Virá a sentir a minha face contra a sua como
aconteceu no
meu sonho com o outro Peter? Ai! O Peter e o Peter são
um só, agora.
Os outros não nos compreendem, não concebem que
nos basta estarmos juntos sem dizer nada. Não sabem o
que nos atrai um para o outro. Quando acabarão estas dificuldades?
Mas, pensando bem, talvez seja melhor haver
obstáculos a vencer, porque o final será mais belo ainda!
Quando ele deita a cabeça sobre os braços e fecha os
olhos, parece uma criança; quando brinca com o Mouchi, é
meigo; quando carrega com os sacos de batatas ou com
outros pesos, é forte; quando observa os bombardeamentos
ou segue o rasto dos ladrões na escuridão, é corajoso;
mas quando é desajeitado e se sente desamparado, é simplesmente um amor. Gosto mais dele
quando me explica
coisas do que quando quer aprender comigo. Achava bem
que ele fosse sempre superior a mim.
As mães não me importam. Se, ao menos, ele falasse!
Tua Anne.


Quarta-feira, 29 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ontem o ministro Bolkestein disse na emissora de Orange
que, depois da guerra, se havia de publicar uma série de
diários e de cartas desta época. Aqui começaram logo
a falar no meu diário. E se eu publicasse um romance
sobre o anexo?. Não te parece interessante? Mas, com
este título, toda a gente era capaz de imaginar que se
tratava de um romance policial.
Basta de brincadeira, deixa-me falar a sério. Não parecerá
inconcebível ao Mundo, depois da guerra-digamos
dez anos depois-, o que nós, os judeus, contarmos sobre
a nossa vida aqui, as nossas conversas e as nossas refeições?
Pois embora te tenha contado muita coisa, tu ainda
só ficaste a saber uma pequena parcela desta vida.
O medo das senhoras, quando há bombardeamentos
como os do Domingo passado, em que trezentos e cinquenta
aviões ingleses lançaram meio milhão de quilos
de dinamite sobre Ijmuiden e as casas estremeceram como

as folhas com o vento. E o terror das epidemias que grassam
no país! Disto ainda sabes pouco, e seria preciso que
eu escrevesse todo o dia se quisesse fazer um relatório
completo. A população forma bichas para comprar hortaliça
ou seja o que for. Os médicos não podem visitar
os seus doentes, porque lhes roubaram o automóvel ou
a bicicleta. Ouve-se falar de pequenos furtos e de roubos
em grande escala, e eu prgunto a cada passo o que foi
feito da honestidade dos holandeses, quase proverbial?
Crianças dos oito aos onze anos partem os vidros das habitações alheias e tiram tudo o que lhes
vem parar ás mãos.
Nimguém tem coragem de deixar ficar a sua casa abandonada
durante cinco minutos, pois, ao voltar, pode muito bem encontrá-la vazia. Todos os dias se lêem
nos jornais
anúncios em que se prometem gratificações pela entrega
de coisas roubadas, máquinas de escrever, tapetes persas,
relógios elétricos, tecidos, etc., etc. Os relógios das ruas
são desmontados, e até se tiram os telefones das cabinas
sem deixar ficar um pedaço de fio sequer.
Evidentemente não pode haver bom ambiente entre a
população. O racionamento não chega. A invasão faz-se
esperar, os homens têm de ir para a Alemanha. As crianças
estão subalimentadas e doentes. Quase toda a gente usa
roupa e calçado de má qualidade. Umas solas "negras"
custam cinquenta florins. Mas os sapateiros raras vezes
aceitam freguesia ou então levam quatro meses a compor
os sapatos se estes, entretanto, não forem roubados.
Uma coisa boa: as sabotagens contra a ocupação
aumentam à medida que a alimentação piora e as condições
se tornam mais severas. Os funcionários da distribuição
de víveres e de outras repartições ajudam, em grande
parte, a população, mas também há traidores que levam
gente às prisões. Contudo, felizmente, são poucos os holandeses que estão do lado mau.
Tua Anne.

Sexta-feira, 31 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ainda está muito frio, mas a maioria das famílias já não
tem carvão. Coisa divertida, não te parece? Há um grande
e geral otimismo porque tudo vai às mil maravilhas na
frente russa. Não quero escrever muito sobre política mas
não posso deixar de informar-te de que os russos se encontram em frente do G. Q. G. alemão e
que se estão a
aproximar da Roménia pelo Pruth; estão perto de Odessa.
Espera-se um comunicado especial de Estaline numa das
noites mais próximas.
Moscovo atroa os ares com salvas. Não sei se eles
acham bonito imitar assim o barulho da guerra ou se não
conseguem expandir a sua alegria de outra maneira.
A Hungria está ocupada pelos alemães. Vive nesse
país um milhão de judeus que, decerto, hão de sofrer as
consequências.
Aqui não aconteceu nada de especial. O sr. van Daan
faz hoje anos. Recebeu dois maços de tabaco, café para
uma chávena (foi a esposa que lho guardou desde há muito),
um ponche de limão do Kraler, sardinhas da Miep, e de
nós, água de Colônia, lilases e tulipas e ainda uma torta com
framboezas e groselhas quase a desfazer-se, por causa de
a farinha e a manteiga serem de péssima qualidade, mas
de sabor estupendo.
As más-línguas já não se preocupam tanto com o Peter
e comigo. Nós dois somos bons amigos, estamos muitas
vezes juntos e conversamos sobre os mais variados assuntos.
Embora falemos também de coisas delicadas, não preciso guardar certas reservas como,
decerto, teria de fazer com outros rapazes. Quando, por exemplo, um destes dias,
veio à baila o tema sangue, falamos também na menstruação.
O Peter acha que nós, as mulheres, somos resistentes.
Ah! Ah! Ah! E porquê?
A minha vida aqui melhorou muito. Deus não me
abandonou e não me há de abandonar.
Tua Anne.

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