Total de visualizações de página

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 15]

Terça-feira, 13 de Março de 1944
Querida Kitty :
Quando me ponho a pensar na minha vida de 1942,
tudo me parece irreal. Essa vida era vivida por uma
outra Anne, diferente desta que tem, agora, tanto juízo.
Era uma vida boa, ai!, se era! Tantos admiradores como
os dedos das mãos, por aí vinte amigos e conhecidos,
a aluna favorita de quase todos os professores, amimalhada
pelos pais, sempre doces e guloseimas, dinheiro que
chegava - que mais queres? Talvez queiras perguntar-me
como eu conseguia que todos gostassem tanto de mim.
Se o Peter diz que tenho "charme" talvez não tenha bem
razão. Os professores gostavam mas era das minhas respostas
vivas, das minhas observações cômicas, da minha
cara sempre a sorrir e do meu olhar crítico, divertido e
ameno, não era mais nada. Eu gostava do "flirt", era
brincalhona e alegre. Mas tinha também algumas boas
qualidades que me davam a garantia de não cair em
desgraça com ninguém : era trabalhadora, franca e sincera.
Nunca impedia que alguém, fosse quem fosse, copiasse
os meus exercícios, não era vaidosa e repartia sempre os
meus doces com os outros.
Quem sabe se a admiração de
que gozava não faria de mim uma pessoa petulante? Talvez
não tenha sido nada mau que eu, de repente- no auge
da festa, digamos - fosse bruscamente atirada para a
realidade; mas sempre me levou mais de um ano a habituar-me
a não ser admirada.
Como é que me chamavam na escola, onde eu estava
sempre à frente em todas as partidas e brincadeiras? "A cabecilha". E eu nunca tinha mau gênio
ou má disposição.
Por isso não era de admirar que todos gostassem de
me acompanhar e fossem simpáticos e atenciosos.
Agora vejo essa Anne como uma rapariguita simpática
mas superficial, que nada tem de comum comigo. O Peter
disse, e muito bem:
-Quando eu te encontrava, via-te sempre com dois
ou três rapazes e com um bando de raparigas, sempre a
rir e divertida. Eras o centro.
O que resta dessa rapariga? Ainda não me esqueci
de rir e de dar respostas. Ainda sei criticar as pessoas e, talvez até melhor do que antes, sei
namoriscar se... me apetecer. Gostava de voltar a viver assim, só por uma tarde, uns dias, ou uma
semana, despreocupada, mas no fim da semana
estaria saturada e ficaria grata à primeira pessoa que me
aparecesse a falar em coisas sérias. Não preciso de
admiradores mas sim de amigos; não preciso de adoradores
em troca de um sorriso mas sim de alguém que dê valor à
minha maneira de ser e ao meu caráter. Sei que assim
terei menos gente à minha volta. Mas não importa, o
principal é que me fiquem algumas pessoas de caráter.
E, vistas bem as coisas, eu não era inteiramente feliz
naquele tempo. Sentia-me muitas vezes só, mas como
andava sempre atarefada, não refletia nisso e divertia-me
o mais que podia. Consciente ou inconscientemente, tentava
com as brincadeiras encher o vazio. Agora prefiro
trabalhar. Aquele período findou irrevogàvelmente: o
tempo da escola, despreocupado e descuidado, não volta
mais. Também não quero que volte, ultrapassei-o. Agora,
até quando estou alegre, uma parte de mim mesma conserva
sempre a sua seriedade.
Vejo a minha vida até ao princípio deste ano como
que através de uma lente impiedosa. Em casa, uma vida
cheia de sol; 1942, a vinda para aqui, a transição brusca,
as discussões, as acusações. Não tinha capacidade para
digerir tanta coisa, apanhei um choque e só consegui
manter-me mais ou menos firme manifestando atitudes
de rebeldia.
Primeira parte de 1943 : a minha constante vontade
de chorar, a solidão, o lento reconhecimento de todos os
meus defeitos e de todas as minhas faltas, que eram grandes,
sem dúvida, mas que os outros é que queriam fazer muito
maiores ainda.
Falava a torto e a direito e fiz tentativas para conquistar
o Pim só para mim, mas não o consegui. Então
vi-me perante o difícil problema de me modificar para não
ouvir mais censuras, para não me sentir esmagada, sob o
seu peso, até ao desespero.
A segunda parte do ano já foi melhor. Como me ia
tornando uma adolescente, já viam em mim uma pessoa
mais ajuizada. Comecei a refletir e a escrever histórias.
Concluí que já ninguém tinha o direito de me empurrar
como se fosse uma bola. Queria formar-me segundo a
minha própria vontade. Reconheci também que o pai
não podia ser o meu confidente em todas as coisas. Só
queria confiar inteiramente em mim própria.
Depois do Ano Novo, a segunda transformação... o
meu sonho. Foi através dele que descobri o meu desejo
de um rapaz e não de uma rapariga, o desejo de um amigo.
Descobri também a felicidade no meu íntimo e a minha
armadura exterior feita de superficialidade e de alegria.
Pouco a pouco acalmei e comecei a sentir uma ânsia sem
limites de tudo o que é bom e belo.
Quando, à noite, estou na cama e remato a oração
com estas palavras: "Agradeço-te o bem, o amor e a
beleza", então todo o meu ser rejubila. Ponho-me a pensar
em tudo o que foi "o bem": a nossa fuga para aqui, a
minha saúde; e no "amor": o Peter e tudo aquilo que é
tão delicado e sensível que ambos ainda não ousamos
tocar-lhe, mas que um dia virá-o futuro, a felicidade.
E penso na "beleza" que envolve o Mundo: a natureza,
a arte, a grandeza e tudo o que a isto está ligado.
Não penso na miséria mas em tudo o que é terno e maravilhoso.
É nisto que reside em grande parte a diferença
entre a mãe e eu. Quando alguém está triste, ela aconselha:
"lembra-te da miséria que vai pelo Mundo e sê
grata por tu não a sofreres". Eu digo: "vai e procura os
campos, a natureza e o Sol: vai, procura a felicidade em
ti e em Deus. Pensa no que é belo e que se realiza em ti
e à tua volta, sempre e sempre de novo".
Acho o conselho da mãe errado, pois, o que pode fazer
alguém que se sente infeliz? Perder-se na miséria? Acho que alguma coisa de belo resta aos
próprios. ter-se-á
perdido a liberdade e alguma coisa de nós. Mas devemos
agarrar-nos e reencontrar-nos-emos a ti e a Deus,
de novo. Aquele que é feliz, espalha felicidade.
Aquele que teima na infelicidade, que perde o equilíbrio
e a confiança, perde-se na vida.
Tua Anne.

Domingo, 18 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ultimamente não tenho tido paciência para estar
sentada à minha mesa. Gosto de conversar com o Peter
e só tenho receio de que ele se mace com isso. Já me contou
muitas coisas da sua vida, dos seus pais e de si próprio.
Mas eu ainda queria que ele me contasse mais.
Depois pergunto a mim mesma porque é que espero
tanto dele. Antigamente ele achava-me insuportável e eu
pagava-lhe na mesma moeda. Mas as coisas mudaram.
Se com ele, no entanto, ainda nos
pudermos tornar amigos íntimos, suportaria muito melhor esta vida de isolamento. Não
quero excitar-me mais. Estou a pensar de mais nele e não
tenho o direito de te vir importunar a ti, só por me sentir
tão obcecada. Sábado, à tarde, fiquei, depois de uma série de notícias
tristes, tão mal disposta e confusa que me deitei na cama.
Só Queria dormir e não pensar em nada. Dormi até às
quatro horas depois tive de ir ao quarto do Pai.
foi fácil responder às perguntas da mãe porque fora
que me tinha deitado. Disse que tinha dores de cabeça
e não menti. É que eu tinha dores de cabeça... na alma.
Suponho que gente normal, raparigas normais, adolescentes
da minha idade, me achariam provàvelmente
absurda por eu me lamentar tanto. Mas a ti digo tudo o
que me preocupa, e depois, durante o dia, sou atrevida,
para não precisar de responder às perguntas e para
evitar aborrecimentos.
A Margot é carinhosa comigo e talvez gostasse de
ser a minha confidente, mas não lhe posso dizer tudo.
É simpática e boa e bomita, mas um bocadinho acadêmica quando conversamos sobre coisas
profundas. Ela procura
compreender-me, não há dúvida nenhuma, reflete mesmo
sobre a sua irmã maluquinha, fixa-me com os olhos de
examinadora quando digo isto ou aquilo e, provàvelmente,
pensa com os seus botões :
-Estará ela a representar ou será sincera?
Estamos sempre juntas e eu não queria ter a minha
confidente sempre tão próximo.
Quando sairei eu deste labirinto de pensamentos?
Quando haverá calma e paz no meu coração?
Tua Anne.

Terça-feira, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Talvez te entretenha a ti - a mim isto já não me
interessa - se te contar o que hoje vamos comer. Neste
momento estou (a mulher da limpeza encontra-se lá em baixo nos
escritórios) à mesa dos van Daans, coberta com um oleado.
Aperto o nariz e a boca com um lenço perfumado-o
perfume ainda é do tempo de antes do "mergulho". Esta
maneira de contar deve parecer-te aborrecida. Vou
começar outra vez. Como os nossos fornecedores foram
apanhados por causa dos cartões "negros" do racionamento
e outras coisas no gênero, já não temos cartões e, portanto,
nenhumas gorduras. A Miep e o Koophuis estão doentes,
a Elli não pode sair para fazer as compras e, por consequência, a nossa disposição é
desconsoladora e a comida
também. Para amanhã já não temos um pedacinho de
pingue, para já não falar de manteiga ou de margarina.
Acabaram-se as batatas fritas ao pequeno almoço (para
substituir o pão). Agora comemos papinhas. A sra. van Daan
tem medo de que morramos de fome e, felizmente, conseguiu
arranjar um bocadinho de leite "negro". O nosso almoço:
feijão de conserva de barrica! Daí as minhas providências
que tomei com o lenço. É incrível como o feijão cheira
mal depois de ter estado guardado durante um ano. Todo
o quarto cheira a uma mistura de ameixas podres, desinfetante
e ovos podres. Brrr! Só de pensar que tenho de
comer aquilo, já fico enjoada. Ainda por cima as nossas
batatas têm uma doença esquisita e de cada balde cheio
de "pommes de terre" metade é atirada para o lixo. Ao
descascá-las entretemo-nos a diagnosticar as mais variadas
doenças e já vimos casos de cancro, varíola e sarampo.
Podes crer que não é fácil viver-se "mergulhado" no quarto ano de guerra. Quem nos dera que
esta miséria acabasse!
Com franqueza, eu ainda aguentava a má comida, se o
resto fosse mais agradável. Mas o mal está em que todos
nós, com a vida monótona que levamos, ficamos nervosos.
Aqui tens as opiniões de cinco "mergulhados" sobre a
nossa vida:
Sra. van Daan:-Estou farta de fazer de criada de
cozinha. Mas quando não tenho nada que fazer aborreço-me.
Portanto, ponho-me a cozinhar. Mas cozinhar sem
gorduras é inconcebível, só o cheiro põe-me doente. Ainda
por cima todos me agradecem o trabalho com má cara
e a resmungar. Sou o carneiro preto do rebanho e tenho
culpa de todo o mal que acontece. Além disso, penso que
a guerra está a caminhar mal e se calhar os alemães ainda
vão vencer. Tenho medo de que morramos todos de fome.
E ainda querem que eu esteja bem disposta.
Sr. van Daan:-Preciso de fumar, de fumar, de fumar.
Assim suporto tudo: a política, a comida e o mau gênio
da minha Kerli. Masjá que não tenho cigarros, apetecia-me,
ao menos, um bocado de carne. Estou sempre a dizer que
vivemos miseràvelmente, nada me serve, há discussões por
tudo e por nada e acho a Kerli estúpida.
A sra. Frank:-Mas a comida não é assim coisa tão
importante. Só queria uma fatia de pão de centeio. Estou
com fome. Se eu fosse a sra. van Daan já tinha desabituado
o meu marido de fumar tanto. Faz o favor, dê-me um cigarro
para acalmar os nervos. Os ingleses têm os seus defeitos
mas a guerra está a caminhar bem. Ainda bem que posso
falar à vontade e que não estou presa na Polônia.
Sr. Frank:-Acho que tudo vai bem, não preciso de
nada. Do que necessitamos é de calma, de paciência. Logo
que me não faltem as batatas estou satisfeito, mas não se
esqueçam de guardar algumas da minha ração para a Elli.
O sr. Dussel:-Tenho de concluir a tese antes de mais
nada. A política? Essa vai às mil maravilhas! Acho impossível
que nos descubram aqui. Eu...
Eu, eu, eu...
Tua Anne.

Quarta-feira, 15 de Março de 1944
Querida Kitty:
Todo o santo dia ouço : se acontecer isto ou aquilo
teremos as maiores dificuldades... e se aquela rapariga
ficar doente, já não temos mais ninguém no Mundo... e se...
Já sabes a lenga-lenga. Pelo menos já deves conhecer
bastante esta gente do anexo para poderes adivinhar o
que andam a dizer.
A causa desses "se, se..." é a seguinte: o sr. Kraler
foi convocado para um "campo de trabalho", a Elli está
terrivelmente constipada, a Miep ainda se não levantou
da gripe e o sr. Koophuis teve outra vez uma hemorragia
e desmaiou! Um chorrilho de desgraças.
O pessoal do armazém tem feriado amanhã. Se a Elli
tiver de ficar em casa, a porta ficará fechada e temos de
fazer muito pouco ruído para que os vizinhos não desconfiem.
O Henk deve vir à uma hora para olhar pelos
"abandonados" e para representar o papel de guarda de
jardim zoológico. Hoje, à hora do almoço, contou-nos,
pela primeira vez desde há bastante tempo, coisas do grande
mundo lá de fora. Devias ter visto como o ouvimos todos
com o máximo interesse. Há um quadro que se chama
"Avózinha conta histórias". O nosso grupo deve ter tido
o mesmo aspecto. Falou, falou, com muitos pormenores
e pormenorinhos, e não se esqueceu de contar-nos coisas
sobre comidas e do médico da Miep por quem perguntamos.
-Médico? Não me falem desse médico! Hoje de manhã
telefonei-lhe, mas só consegui que um assistentezinho viesse
ao telefone. Pedi-lhe uma receita contra a gripe. Disse-me
que, entre as oito e as nove, podia ir buscá-la. Quando se
trata de uma gripe mais grave, suponho que o médico vem pessoalmente ao telefone para dizer:
"Mostre a língua...
diga aaahhh... sim, senhor, ouço bem, tem a garganta
inflamada. Vou transmitir a receita à farmácia. Depois
pode ir lá buscar o remédio. Bom dia!" Lindo serviço, não
há dúvida. Consultas exclusivamente pelo telefone!
Mas podemos acusar os médicos? Ao fim e ao cabo
cada pessoa só tem duas mãos e, infelizmente, existem
agora muitos doentes e muito poucos médicos. Mas não
pudemos deixar de nos rir, quando o FIenk representou
aquela conversa ao telefone. Imagino como é diferente,
agora, a sala de espera de um médico. Decerto já não
desprezam só os doentes da "caixa", como era costume.
Agora devem desprezar-se as pessoas que não sofrem de
nada a sério mas que gostam de se queixar. Provàvelmente
falam-lhes assim:
-Que é que queres? Vai para o fim da bicha, que
temos agora de tratar primeiro os autênticos doentes.
Tua Anne.

Quinta-feira, 16 de Março de 1944
Querida Kitty:
O tempo está maravilhoso, indescritivelmente maravilhoso. Hei de ir ao sótão.
Agora sei por que sou mais irriquieta do que o Peter.
Ele tem um quarto só para ele, onde pode sonhar, pensar,
dormir. Eu sou empurrada de um quarto para o outro.
Raras vezes estou sozinha no quarto que partilho com o
Dussel, e tenho sempre tanto desejo de estar só! Por isso
fujo a cada passo lá para cima. Uma vez ali e contigo,
Kitty, posso, por pouco tempo, ser eu mesma. Mas não
me vou queixar, pelo contrário, vou ser corajosa. Os
outros, felizmente, nada percebem do que se passa comigo,
porque é que sou mais fria para com a mãe, menos meiga
com o pai. Falo muito pouco com a Margot sobre as minhas
coisas. Tenho de conservar a minha segurança exterior.
Não é preciso que os outros fiquem a conhecer a confusão
do meu íntimo, uma espécie de luta entre o desejo e a
razão. Até agora a razão tem sido sempre vencedora, mas
não chegará o dia em que sucumba? às vezes tenho medo
disso, outras vezes desejo que assim aconteça.
É pena não poder falar sobre estas coisas com o Peter,
mas eu sei que é a ele que compete começar. Entristece-me
não poder continuar as minhas conversas dos sonhos
durante o dia e que as aventuras sonhadas não se tornem
realidade. Sim, Kitty, é verdade, a Anne não regula bem.
Mas não te esqueças : vivo numa época louca e em circunstâncias loucas. Que sorte a minha
poder escrever o
que penso e sinto. Se não fosse isto, sufocava, de certeza.
O que pensará o Peter de tudo isto? Oxalá possa
dizer-me em breve! Deve ter adivinhado alguma coisa, porque aquela Anne que ele conhecia até
há pouco não
lhe agradava com certeza. Pode ele, que tanto aprecia a
calma e a paz, simpatizar com a minha vivacidade e inquietação?
Será ele o único no Mundo que conseguiu ver o
que está por detrás da minha máscara de pedra? Não é
velha regra o amor nascer muitas vezes da compaixão
e as duas coisas confundirem-se? Será o meu caso? É que
tenho tanta pena dele como de mim própria.
Não sei, palavra que não sei, como hei de começar a
falar nisto! E se eu não sei muito menos ele, a quem tanto
custa exprimir-se. Se lhe pudesse escrever! Então ficaria
a saber o que lhe queria dizer. Mas falar é muito difícil!
Tua Anne.

Sexta-feira, 17 de Março de 1944
Querida Kitty:
Uff! Pelo anexo passa uma onda de alívio. O Kraler
está livre, a Elli não consentiu que a sua constipação
piorasse e a impedisse de cumprir os seus deveres. Tudo
voltou à velha ordem. Só a Margot e eu estamos um tanto cansadas dos nossos pais. Não me
compreendas mal, por favor.
Bem sabes que não me entendo, neste momento, muito
bem com a mãe, mas do pai gosto sempre na mesma, e
a Margot gosta de ambos. Mas a gente na nossa idade
queria, por vezes, decidir sozinha sobre as suas coisas e
a sua vida, e não depender sempre dos outros. Se vou para
cima, perguntam o que vou lá fazer; não me deixam comer
sal às refeições; todas as noites, é garantido, a mãe pergunta-me se ainda não me quero despir.
Cada livro que me apetece ler tem de ser primeiro apreciado por eles. Bem
sei que a censura não é rigorosa e posso ler quase tudo,
mas o que nos aborrece é o controle constante e também
as observações e as anotações. Pelo que me respeita, já
não sou a criancinha "beijinho aqui, beijinho ali", e acho
todos os diminutivos de carinho bastante artificiais. Em
poucas palavras: durante algum tempo aguentar-me-ia
bem sem os pais, sempre cheios de cuidados carinhosos.
Ontem a Margot disse :
- É quase ridículo! A gente já nem pode apoiar a
cabeça na mão sem que perguntem logo se temos dores
de cabeça ou se não nos sentimos bem!
É uma desilusão para nós duas verificarmos que muito
pouco resta do nosso convívio familiar tão íntimo. A causa
disto é haver entre nós relações um pouco erradas. Com
isto quero dizer que eles nos tratam como crianças e não
se lembram de que estamos mentalmente mais desenvolvidas do que as outras raparigas da nossa
idade. Embora eu só tenha catorze anos, sei muito bem o que quero e
sei também quem tem razão. Tenho a minha opinião, as
minhas concepções, os meus princípios. Talvez isto soe a
vaidade, mas já não me sinto criança, sinto-me despegada
seja de quem for. Sei que discuto melhor do que a mãe,
que sou mais objetiva e não tão exagerada, sei que tenho
mais ordem nas minhas coisas e que sou mais habilidosa e,
por isso-, se quiseres, ri-te de mim!-em muitas coisas
superior a ela. Para amar alguém, a primeira condição é
poder admirar-admirar e respeitar. Tudo seria melhor
se o Peter fosse meu. A ele posso admirá-lo em muitas
coisas. É bom rapaz, um rapaz às direitas!
Tua Anne.

Domingo, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ontem foi um dia importante para mim. Tinha resolvido
falar abertamente com o Peter. Antes de nos sentarmos
à mesa, perguntei-lhe baixinho:
-Estudas estenografia logo à tarde, Peter?
-Não, senhora - disse ele.
-Gostava de falar contigo.
-Está bem.
Por atenção, ainda fiquei, depois de termos lavado a
louça, um bocado com os pais dele. Depois fui ter com
o Peter. Ele estava do lado esquerdo da janela, eu pus-me
à direita. Fala-se melhor na penumbra do que em plena
luz. Creio que o Peter é da mesma opinião.
Falamos sobre tantas coisas que não me é possível
escrever tudo, mas foi maravilhoso, nunca vivi nada tão
maravilhoso desde que entrei nesta casa. Alguma coisa
vou reproduzir-te. Falamos dos eternos conflitos cá em
casa, que eu agora vejo com olhos diferentes, e do afastamento
íntimo dos nossos pais. Contei-lhe coisas do meu pai,
da minha mãe, da Margot e de mim. De repente, ele
perguntou-me :
- Vocês beijam-se quando dizem "boa-noite" uns aos
outros?
- Pois claro, beijamo-nos muitas vezes. Vocês não?
-Nós não. Poucas vezes tenho dado beijos a alguém.
- E no dia dos teus anos?
- Ah sim, nesse dia beijamo-nos.
Dissemos que era impossível falar sobre os nossos problemas
aos pais, e ele confessou que os dele queriam muito
ser os seus confidentes mas que não podiam sê-lo. Contei-lhe
que chorava de noite, na cama, quando tinha desgostos e ele disse-me que ia para o sótão
praguejar. Também lhe
contei que a Margot e eu só agora nos chegamos a conhecer
bem, mas que não podemos confiar tudo uma à outra
por estarmos próximas de mais. E falamos de muito mais
coisas e ele era exatamente como eu tinha imaginado.
Depois voltamos a falar de 1942, de como tínhamos
sido tão diferentes e que, ao princípio, não gostávamos um
do outro. Nessa altura ele achava-me espevitada e desagradável
e eu não encontrava nada nele que me interessasse.
Parecia-me incompreensível que ele nem sequer procurasse
namoriscar mas agora estou contente por isso mesmo.
Disse-me que procurava isolar-se, e eu expliquei-lhe que
entre a minha vivacidade e a sua calma quase não havia
diferença porque eu desejava tanto o sossego como ele e
só encontrava um bocado de paz junto do meu diário.
Ele ainda disse ter sido uma felicidade os meus pais virem
com as filhas para o anexo, e eu disse-lhe que me sentia
feliz por ele estar cá e que o compreendo na sua solidão e
nas suas relações com os pais e que gostaria de o ajudar.
- Mas tu estás constantemente a ajudar-me.
- Eu ajudar-te, em quê?-perguntei espantada.
- Com a tua alegria.
Foi a coisa mais bonita que me podia ter dito. Foi
mesmo maravilhoso. Sei agora que me aprecia como boa
camarada e, para já, sinto-me satisfeita. É-me difícil
explicar em palavras a minha felicidade e gratidão. E
tenho de te pedir desculpa, Kitty, por o meu estilo não
estar hoje à altura.
Escrevi tudo conforme me vinha à cabeça. Tenho a
sensação de partilhar com o Peter um segredo. Todas as
vezes que olha para mim, ri-se ou pisca os olhos, e é como
se tudo se iluminasse à minha volta. Oxalá que nada se
modifique e que ainda possamos passar juntos muitas horas
felizes.
Da tua grata e feliz
Anne



Nenhum comentário: