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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O Diário de Anne Frank [parte 10]

Domingo, 17 de Outubro de 1943
Querida Kitty :
graças a Deus! Ainda está pálido,
Koophuis voltou
mas já trabalha e está a tentar vender roupas dos van Daans.
É uma coisa bem penosa, porque se lhes acabou o dinheiro.
A senhora tem muitas coisas mas não quer desfazer-se
delas e um fato do marido custa a vender, pois não querem
dar o que ele pede. Mas ainda há de haver trapalhada.
Provàvelmente é o casaco de peles da senhora que vai ser
sacrificado! Por causa disso houve grande discussão lá em
cima, depois seguiu-se um período pacífico e agora só se
ouve:
-Oh, meu querido Putti!
Eu já estou meio tonta de tantas discussões e das palavras
feias que se ouvem ùltimamente na nossa casa honrada.
O pai anda de lábios cerrados e se a gente lhe dirige
a palavra, assusta-se como se estivesse com medo de algum
acontecimento desagradável em que tivesse de intervir.
A mãe, de tanta aflição, tem manchas vermelhas na cara,
a Margot queixa-se de dores de cabeça, o Dussel não
pode dormir, a sra. van Daan lamenta-se todo o dia e
eu estou completamente desconcertada.
Para dizer a
verdade : há ocasiões em que me esqueço de quem são os que
andam zangados uns com os outros e quem são os que
já fizeram as pazes. A única distração é o trabalho, e eu
trabalho muito!
Tua Anne.

Sexta-feira, 29 de Outubro de 1943
Querida Kitty:
Houve "tempestade" lá em cima. Como eu já te contei,
eles não têm dinheiro. Um dia o Koophuis falou-lhes de
um negociante de peles de quem é amigo. O sr. van Daan,
então, sempre se resolveu a vender o casaco da mulher.
É de pele de coelho e tem dezessete anos de uso. Receberam
trezentos e setenta e cinco florins por ele. É bem pago.
A sra. van Daan quis guardar o dinheiro para comprar
coisas novas mais tarde. O marido com muito custo sempre
conseguiu convencê-la de que o dinheiro era absolutamente
necessário para o sustento. Não podes imaginar
como ela ralhou, gritou, vociferou e bateu com os pés no
chão... E nós cheios de pavor. Estávamos os quatro com
a respiração suspensa, ao pé da escada, prontos para
separar aqueles dois furiosos. Cenas assim são tão aflitivas
que me fazem chorar, de noite, quando estou na cama,
grata, no entanto, por ter uns momentos de solidão.
O sr. Koophuis já tem de ficar novamente em casa.
O estômago não o deixa em paz e ainda não se sabe se
a hemorragia acalmou por completo. Foi ao contar-nos
que se sentia mal e que ia para casa que, pela primeira
vez, o vimos deprimido. Eu, por mim, não estou doente,
só não tenho apetite. Mas estão sempre a dizer-me :
-Estás com mau aspecto.
Tenho de confessar: a minha família esforça-se muito
para que eu tenha saúde e robustez. Dão-me, alternadamente,
glucose, levedura, cálcio, óleo de fígado de bacalhau,
para me fazer aguentar. Mas nem sempre consigo
dominar os meus nervos. É aos domingos que os sinto
mais, pois nesses dias reina uma má disposição geral, uma
espécie de sonolência pesada como chumbo. Não se ouvem ruídos lá fora e qualquer coisa parece
estar para acontecer.
É como se pesos grandes me puxassem. Uma voz gritasse na
escuridão, insondável.
indiferentes, até o pai, mas
Nessa altura todos me são muito amigos, sobretudo a mãe
e a Margot. Ando por toda a casa, de um quarto
para o outro escada acima, escada abaixo. Sinto-me como
um pássaro a quem cortaram as asas e bate contra as grades da
gaiola estreita.
em mim soa como que um grito: para fora! Tenho saudades,
-Quero sair. Sair daqui, para o ar livre, quero poder rir à
vontade!Não há resposta! Mas sei que esses gritos não
têm poder, e deito-me na cama para matar estas horas tão
terrivelmente silenciosas e cheias de angústia.
Tua Anne.

Quarta-feira, 9 de Novembro de 1943
Querida Kitty :
O pai, cuja constante preocupação é a de nos distrair e,
ao mesmo tempo, de nos cultivar, mandou vir o prospecto
de um instituto que dá lições por correspondência. A Margot
já folheou o calhamaço por três vezes mas ainda não
,encontrou o que queria. Julgava ela que tinha de pagar
o curso com o seu dinheiro da semana e, por isso, achava
tudo demasiado caro. Mas o pai mandou vir uma lição
para experimentarmos : latim para principiantes. A
Margot atirou-se ao trabalho e mandou depois vir o curso
completo.
Embora eu gostasse de aprender latim, acho-o ainda
difícil de mais.
Mas para que eu também possa aprender alguma coisa
nova, o pai pediu ao sr. Koophuis que procurasse uma
bíblia para crianças. Quer que eu fique a conhecer o
Novo Testamento.
-Queres dar à Anne uma bíblia para a festa de Ghanuca?
-perguntou Margot admirada.
-Sim... enfim... acho que o S. Nicolau será a melhor
ocasião para isso. Jesus não liga lá muito bem com a festa
de Ghanuca - foi a resposta do pai.
Estragou-se o aspirador. Agora tenho eu de limpar o
tapete, todas as noites, com uma escova velha. E isto
dentro de um quarto com as janelas fechadas, com a luz
elétrica acesa, onde está um calor sufocante.
-Isto não acaba bem - pensei de mim para mim.
A mãe começou a ter dores de cabeça por causa do pó
que se fixava no quarto. O pó, ao fim e ao cabo, não
desaparecia e o pai achava que toda a sala tinha um aspecto
sujo. A ingratidão é a paga de muita gente.
Agora há menos discussões, só o Dussel é que anda
zangado com os van Daans. Quando nos fala da sra. van
Daan diz "a vaca estúpida" ou "a velha cabra.", e ela, em
contrapartida, chama-lhe a ele, que tem um curso superior
e é infalível, "a solteirona" ou "o solteirão chéché"! Um
burro a chamar burro a outro!
Tua Anne.

Segunda-feira, 8 de Novembro de 1943
Querida Kitty:
Se te desses ao trabalho de ler todas as minhas cartas
umas atrás das outras, verias que as escrevi com as mais
diversas disposições. É aborrecido ser-se dependente da
disposição de momento, aqui no anexo. Mas isto não
acontece só comigo, é o mesmo com todos os outros.
Depois de ter lido um livro e ainda estar debaixo de uma
impressão muito forte, tenho de me meter, a mim própria,
na ordem antes de aparecer a alguém, senão eram capazes
de me acharem maluquinha. Decerto já estás a perceber
que me encontro de novo num período de abatimento e
de falta de coragem. E nem posso explicar porquê, pois
não há nenhuma razão especial. Creio tratar-se de uma
certa cobardia que nem sempre consigo vencer. Hoje, à
tardinha, quando a Elli estava aqui, tocaram a campainha
permanentemente e com força. Fiquei logo pálida, tive
dores de barriga, palpitações e muito medo. De noite,
deitada na cama, tenho visões terríveis. Vejo-me na prisão,
sozinha, sem meu pai e minha mãe. Por vezes ando a
vaguear por qualquer parte, não sei onde, ou vejo o anexo
a arder, ou eles vêm, de noite, para nos buscar. Sinto tudo
isto como se fosse realidade e a ideia de que me vai acontecer alguma catástrofe não me larga.
A Miep diz, por vezes, que tem inveja de nós por
termos aqui calma e sossego. Em princípio, ela podia ter
razão, mas não se lembra de que vivemos sempre com
medo. Não consigo já imaginar que o Mundo possa voltar a
ser para nós o que era dantes. Digo muitas vezes : "Depois
da guerra". Mas digo-o como se se tratasse de um castelo
no ar e não de um tempo que se tornará, algum dia, para
mim realidade. Quando penso na nossa vida em casa, na escola, com todas as suas alegrias e
sofrimentos, em tudo
o que era "antigamente"; tenho a sensação de não ter sido
eu quem viveu essas coisas mas sim uma estranha, alguém
totalmente diferente.
Vejo-nos a nós aos oito do anexo, numa pequena,
nuvem, clara e azul, no meio de outras nuvens, pesadas e
escuras. O nosso lugar ainda é seguro, mas as nuvens estão
a ficar cada vez mais densas e o círculo que nos separa
do perigo tão próximo, vai-se apertando. Por fim ficamos
todos de tal maneira envolvidos na escuridão que, com o
desejo desesperado de encontrar uma saída, esbarramos
uns contra os outros. Olhamos para baixo onde os homens
lutam, olhamos para cima onde há felicidade e paz. Mas
estamos isolados por uma massa grossa e impenetrável que
nos barra todos os caminhos e nos encerra, como um muro
invencível, um muro que nos destruirá quando a hora
soar. E eu só posso clamar e suplicar: - Oh, círculo,
círculo, alarga-te e abre-te para nós!
Tua Anne.


Quinta-feira, 11 de Novembro de 1943
Ode à minha caneta de tinta permanente
"In memoriam"
A minha caneta foi para mim, sempre, uma coisa
preciosa. Apreciava-a imenso por ter um bico grosso e
redondo, porque só escrevo bem com bicos assim. Ela
viveu uma vida de caneta bem longa e interessante, que vou aqui descrever.
Quando fiz nove anos, chegou (embrulhada em algodão
em rama) como "amostra sem valor". Foi a avozinha que,
nessa altura, ainda vivia em Aachen, que me enviou uma
prenda tão generosa. Estava eu precisamente deitada na
cama, com gripe, e lá fora uivava o vento de Fevereiro.
A gloriosa caneta vinha num estojo de couro vermelho.
Mostrei-a, logo que pude, a todas as amigas e conhecidos.
Eu, Anne Frank, possuidora orgulhosa de uma caneta de
tinta permanente!
Quando fiz dez anos, recebi licença de a levar para a
escola, e a professora deixou-me escrever com ela.
No ano seguinte o meu tesouro teve de ficar em casa
porque a diretora de ciclo, no liceu, só permitia canetas
vulgares.
Quando aos doze anos entrei no Liceu judaico, deram-me
um estojo novo com duas divisões. Uma era para
a lapiseira. Esse estojo tinha um fecho "èclair" e era muito
vistoso.
Quando fiz treze, a caneta veio comigo para o anexo
e foi a minha companheira fiel quando te escrevia a ti ou
quando trabalhava. Agora que tenho catorze, chegou ao
fim da sua existência. Na sexta-feira saí do meu quarto para escrever junto dos outros, na mesa
da sala. Mas
afastaram-me sem piedade, pois a Margot e o pai estavam
a estudar latim. A caneta ficou em cima da mesa. A Anne
teve de contentar-se com um cantinho onde a fizeram
"dar lustro" aos feijões, quer dizer, limpar feijão vermelho
que tinha bolor.
às seis menos um quarto varri o chão e deitei o lixo
com os restos dos feijões no fogão. Ergueu-se uma chama
colossal e eu fiquei satisfeita por isso, porque o fogo tinha
estado quase apagado. "Os latinos" acabaram de estudar
e eu recebi licença para voltar à mesa e continuar o meu
trabalho. Mas a caneta não estava lá. Procurei-a por todos
os lados, a Margot ajudou-me, depois também ajudou a
mãe, o pai e o Dussel, mas a minha amiga fiel tinha
desaparecido sem deixar vestígios.
- Se calhar, deitaste-a ao fogão com os feijões - disse
a Margot.
- Não posso acreditar - disse eu.
Mas quando a hora do jantar chegou sem a caneta ter
regressado, já não tínhamos dúvidas: ardeu! E o celuloide
que arde tão bem! A triste suposição confirmou-se, quando
na manhã seguinte o pai encontrou o "clip" na cinza.
Do bico de ouro não restava nada.
-Provàvelmente derreteu com o lixo - disse o pai.
Só me resta uma consolação : a minha caneta foi
cremada, precisamente como eu queria que um dia me
fizessem!
Tua Anne.

Quarta-feira, 17 de Novembro de 1943
Querida Kitty:
Modificações tremendas. Em casa da Elli há difteria
e ela não pode vir cá durante seis semanas por causa do
contágio! Agora tudo se tornou complicado cá em casa
no que respeita aos víveres e às outras compras, não falando
no nosso desgosto pessoal. O sr. Koophuis ainda está de
cama e há três semanas que está só a leite e a papas.
O Kraler tem imenso que fazer! A Margot tinha enviado
ao professor os seus exercícios de latim que vieram devolvidos
com as devidas correções. O professor parece ser
um homem amável e também espirituoso e, com certeza,
está todo contente por ter uma aluna tão boa. A correspondência faz - se em nome da Elli.
O Dussel anda sorumbático. Ninguém sabe porquê.
Aquilo começou por ele nem falar com o sr. van Daan
nem com a senhora. Todos nós reparamos nisso. Passados
uns dias, a mãe falou a sós com ele, dizendo-lhe que não
era bom arranjar sarilhos. A sra. van Daan era capaz de
tomar a coisa muito a peito. O Dussel respondeu que o
sr. van Daan tinha começado a ignorá-lo e a deixar de
lhe falar e agora não era ele, Dussel, quem havia de romper
o silêncio. Mas.ontem, 16 de Novembro, fazia um ano que
o Dussel entrou cá no anexo. Por esse motivo ofereceu
flores à minha mãe. A sra. van Daan já tinha, ùltimamente,
dado a entender que, em tais ocasiões, as pessoas costumam
oferecer alguma coisa. E, agora, ele ignorou-a completamente.
Em vez de agradecer o altruísmo com que foi cá
recebido, calou-se.
Quando eu lhe perguntei, da parte da manhã, se lhe
devia dar os parabéns ou antes os pêsames, respondeu-me
que tanto lhe fazia. A mãe, que queria fazer o papel de
anjo da paz, não conseguiu nada e, assim, tudo ficou na
mesma.
O homem é grande de espírito
Mas mesquinho nas ações.
Tua Anne.

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