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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

DISCURSO DO MÉTODO - René Descartes [parte 1]

PRIMEIRA PARTE

INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso,
visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais
difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo
mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito;
mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir
entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou
razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de
nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que
outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e
não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o
mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores
vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar
podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito
do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a
imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta,
quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que
servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso,
posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais,
acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral
dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes,
e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.

Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a
considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que
eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco
a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve
duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já colhi dele tais frutos que,
apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o
lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um
olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não
exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr
extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da
verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações
dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e
importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi.
Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um
pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos
sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser
suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas apreciaria
muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a
minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá -la e que, informado
pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova
forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me
utilizar.
Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve
seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me
esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem
considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor
coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma
história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos
que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá
razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém,
e que todos me serão gratos por minha franqueza.


Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que,
por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de
tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Porém,
assim que terminei esses estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na
classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois me encontrava
embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido
outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais
a minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da
Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em
algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo
não havendo me contentado com ciências que nos ensinavam, lera todos os
livros que tratam daquelas que são reputadas as mais curiosas e as mais raras,
que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os
outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a
meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares
de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil
em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, O que me levava a tomar a
liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não havia doutrina
no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir.
Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se
ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias
ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o
espírito; que as realizações notáveis das histórias o fazem crescer, e que, sendo
lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons
livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos
passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual
eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloquência possui
forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras
encantadoras; que as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem
servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes
e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm
muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são muito úteis; que a
teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência de
todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a
jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas
àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até
mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o
exato valor e evitar ser por elas enganado.
Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a
leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. Pois quase a mesma
coisa que conversar com os homens de outros séculos é viajar. E bom saber
alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos
mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos
costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram.
Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos
estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos
das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito
ignorantes das que se realizam no presente. Ademais, as fábulas fazem imaginar
como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e até mesmo as histórias
mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las
mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstâncias
mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece
tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles
tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a
conceber propósitos que superam suas forças.
Eu estimava muito a eloquência e estava apaixonado pela poesia; mas
acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do
estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus
pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem
convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o
baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são
mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade
não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse
desconhecida.


Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à
evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua verdadeira aplicação, e,
julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus
fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada
de mais elevado. Da mesma forma que, ao contrário, eu comparava os escritos
dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos palácios erigidos apenas
sobre a areia e a lama. Elevam muito alto as virtudes e as apresentam como as
mais dignas de estima entre todas as coisas que existem no mundo; mas não
ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que chamam com um nome
tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um
desespero, ou de um parricídio.
Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu;
porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está
menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades
reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me
atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para
empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária
assistência do céu e ser mais do que homem.
Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos
mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso,
nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão,
e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava esperança alguma
de acertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opiniões distintas,
defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto,
sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso
tudo quanto era apenas provável.
A respeito das outras ciências, por tomarem seus princípios da filosofia,
acreditava que nada de sólido se podia construir sobre alicerces tão pouco
firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem, eram suficientes para me
exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me sentia de maneira alguma numa
condição que me obrigasse a converter a ciência num ofício, para o alívio de
minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia,
contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos
títulos. Por fim, no que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer
suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado, nem
pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem
pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que
manifestam saber mais do que realmente sabem.
Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos
meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. E, decidindo-me a
não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim
mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto de minha
juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para frequentar pessoas de
diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim
mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte,
para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu
pudesse tirar algum proveito delas. Pois acreditava poder encontrar muito mais
verdade nos raciocínios que cada um forma no que se refere aos negócios que
lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve penalizá-lo logo em seguida,
do que naqueles que um homem de letras forma em seu gabinete a respeito de
especulações que não produzem efeito algum e que não lhe acarretam outra
conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto
mais afastadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artimanha
que necessitou empregar no esforço de torná-las prováveis. E eu sempre tive um
enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver
claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.
A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens,
pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta
diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De
forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantidade de coisas
que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente
recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com
demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e
pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que
ofuscam a nossa razão e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Porém, após
dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar
adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim
próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos
que iria seguir. Isso, a meu ver,, trouxe-me muito melhor resultado do que se
nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros.
SEGUNDA PARTE
NAQUELA ÉPOCA, encontrava-me na Alemanha, para onde me sentira
atraído pelas guerras, que ainda não terminaram, e, ao regressar da coroação do
imperador para o exército, o começo do inverno me obrigou a permanecer num
quartel onde, por não encontrar convívio social algum que me distraísse, e,
também, felizmente, por não ter quaisquer desejos ou paixões que me
perturbassem, ficava o dia inteiro fechado sozinho num quarto bem aquecido,
onde dispunha de todo o tempo para me entreter com os meus pensamentos. Um
dos primeiros entre eles foi lembrar-me de considerar que, freqüentemente, não
existe tanta perfeição nas obras formadas de várias peças, e feitas pela mão de
diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Deste modo, nota-se
que os edifícios projetados e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais
belos e mais bem estruturados do que aqueles que muitos quiseram reformar,
utilizando-se de velhas paredes construídas para outras finalidades. Assim, essas
antigas cidades que, tendo sido no início pequenos burgos e havendo se
transformado, ao longo do tempo, em grandes centros, são comumente tão mal
calculadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um
engenheiro a seu bel-prazer, que, mesmo considerando seus edifícios
individualmente, se encontre neles com freqüência tanta ou mais arte que nos das
outras, contudo, a ver como estão ordenados, aqui um grande, ali um pequeno, e
como tornam as ruas curvas e desiguais, poder-se-ia afirmar que foi mais por
obra do acaso do que pela vontade de alguns homens usando da razão que assim
os dispôs. E se se considerar que, não obstante tudo, sempre existiram
funcionários com a função de fiscalizar as construções dos particulares para
torná-las úteis ao ornamento do público, reconhecer-se-á realmente que é
penoso, trabalhando apenas nas obras de outras pessoas, fazer coisas muito bem
rematadas. Portanto, considerei que os povos que outrora haviam sido semisselvagens
e só pouco a pouco foram se civilizando, elaboraram suas leis apenas à
medida que o desconforto dos crimes e das querelas a tanto os coagiu, não
poderiam ser tão bem policiados como aqueles que, desde o instante em que se
reuniram, obedeceram às leis de algum prudente legislador. Tal como é justo que
o estado da verdadeira religião, cujas ordenanças só Deus fez, deve ser
incomparavelmente melhor regulamentado do que todos os outros. E, para falar a
respeito das coisas humanas, penso que, se Esparta foi na Antigüidade muito
florescente, não o deveu à bondade de cada uma de suas leis em particular, já
que muitas eram bastante impróprias e até mesmo contrárias aos bons costumes,
mas ao fato de que, havendo sido criadas por um único homem, ten diam todas ao
mesmo fim. E assim pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas
razões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações,
pois foram compostas e avolumadas devagar com opiniões de muitas e diferentes
pessoas, não se encontram, de forma alguma, tão próximas da verdade quanto os
simples raciocínios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente
acerca das coisas que se lhe apresentam. E também pensei que, como todos nós
fomos crianças antes de sermos adultos, e como por muito tempo foi necessário
sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que eram com
freqüência contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros, nem sempre,
talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos juízos sejam
tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar totalmente a nossa
razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela.
É verdade que não vemos em lugar algum demolirem todas os edifícios de
uma cidade, com o exclusivo propósito de reconstruí-los de outra maneira, e de
tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam
suas casas para reconstruí-las, sendo ainda por vezes obrigados a fazê -lo, quando
elas correm o risco de cair por si próprias, por seus alicerces não se encontrarem
muito firmes. A exemplo disso, convenci-me de que não seria razoável que um
particular tencionasse reformar um Estado, mudando-o em tudo desde os
alicerces e derrubando-o para em seguida reerguê-lo; nem tampouco reformar o
corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las; mas que,
a respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor
a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança,
para substitui-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas,
após havê-las ajustado ao nível da razão.
E acreditei com firmeza em que, por
este meio, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse
apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão-somente sobre princípios a
respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca
analisado se eram verdadeiros. Pois, embora percebesse nesse mister várias
dificuldades, não eram contudo insuperáveis, nem comparáveis às que se
encontram na reforma das menores coisas relativas ao público. Esses grandes
corpos são demasiado difíceis de reerguer quando abatidos, ou mesmo de escorar
quando abalados, e suas quedas não podem deixar de ser muito violentas. Pois, a
respeito de suas imperfeições, se as possuem, como a simples diversidade que há
entre eles basta para assegurar que as possuem em grande número, o uso sem
dúvida as suavizou, e até mesmo evitou e corrigiu insensivelmente uma grande
quantidade às quais não se poderia tão bem remediar por prudência. E, por fim,
são quase sempre mais suportáveis do que o seria a sua mudança; da mesma
forma que os grandes caminhos, que serpenteiam entre montanhas, se tornam
pouco a pouco tão batidos e tão cômodos, a poder de serem frequentados, que é
preferível segui-los a tentar ir mais reto, escalando os rochedos e descendo até o
fundo dos precipícios.
Aqui está o motivo pelo qual eu não poderia de maneira alguma aprovar
esses temperamentos perturbadores e inquietos que, não sendo chamados, nem
pelo nascimento, nem pela fortuna, à administração dos negócios públicos, não
deixam de neles realizar sempre, em teoria, alguma nova reforma. E se eu
pensasse haver neste escrito a menor coisa que pudesse tornar-me suspeito de tal
loucura, ficaria muito pesaroso de ter concordado em publicá-lo. Jamais o meu
objetivo foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos e construir
num terreno que é todo meu. De maneira que, se, tendo minha obra me agradado
bastante, eu vos mostro aqui o seu modelo, nem por isso desejo aconselhar
alguém a imitá-lo. Aqueles a quem Deus melhor distribuiu suas graças
alimentarão talvez propósitos mais elevados; mas receio bastante que este já seja
por demais temerário para muitos. A mera decisão de se desfazer de todas as
opiniões a que se deu antes crédito não é um exemplo que cada um deva seguir;
e o mundo compõe-se quase só de duas espécies de espíritos, aos quais ele não
convém de maneira alguma. A saber, daqueles que, julgando-se mais hábeis do
que realmente são, não podem impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter
suficiente paciência para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos:
disso decorre que, se tivessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos
princípios que aceitaram e de se desviar do caminho comum, jamais poderiam
ater-se à trilha que é necessário tomar para ir mais direito, e permaneceriam
perdidos ao longo de toda a existência; depois, daqueles que, tendo bastante
razão, ou modéstia, para considerar-se menos capazes de diferenciar o
verdadeiro do falso do que alguns outros, pelos quais podem ser instruídos,
devem antes ficar satisfeitos em seguir as opiniões desses outros, do que
esforçar-se por achar por si mesmos outras melhores.
No que me diz respeito, constaria sem dúvida do número destes últimos, se
eu tivesse tido um único mestre, ou se nada soubesse das diferenças que existiram
em todos os tempos entre as opiniões dos mais eruditos. Porém, havendo
aprendido, desde a escola, que nada se poderia imaginar tão estranho e tão pouco
acreditável que algum dos filósofos já não houvesse dito; e depois, ao viajar,
tendo reconhecido que todos os que possuem sentimentos muito contrários aos
nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, mas que muitos utilizam, tanto
ou mais do que nós, a razão; e, havendo considerado quanto um mesmo homem,
com o seu mesmo espírito, sendo criado desde a infância entre franceses ou
alemães, torna-se diferente do que seria se vivesse sempre entre chineses ou
canibais; e como, até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou
há dez anos, e que talv ez nos agrade ainda antes de decorridos outros dez, nos
parece agora extravagante e ridícula, de forma que são bem mais o costume e o
exemplo que nos convencem do que qualquer conhecimento correto e que,
apesar disso, a pluralidade das vozes não é prova que valha algo para as verdades
um pouco difíceis de descobrir, por ser bastante mais provável que um único
homem as tenha encontrado do que todo um povo: eu não podia escolher
ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às de outros, e
achava-me como coagido a tentar eu próprio dirigir-me.
Porém, igual a um homem que caminha solitário e na absoluta escuridão,
decidi ir tão lentamente, e usar de tanta ponderação em todas as coisas, que,
mesmo se avançasse muito pouco, ao menos evitaria cair. Não quis de maneira
alguma começar rejeitando inteiramente qualquer uma das opiniões que por
acaso haviam se insinuado outrora em minha confiança, sem que aí fossem
introduzidas pela razão, antes de gastar bastante tempo em elaborar o projeto da
obra que iria empreender, e em procurar o verdadeiro método para chegar ao
conhecimento de todas as coisas de que meu espírito fosse capaz.
Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lógica, e, das
matemáticas, a analise dos geômetras e a álgebra, três artes ou ciências que pareciam
poder contribuir com algo para o meu propósito. No entanto, analisando-as,
percebi que, quanto à lógica, seus silogismos e a maior parte de seus outros
preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas já conhecidas, ou
mesmo, como a arte de Lúlio,1 para falar, sem formar juízo, daquelas que são
ignoradas, do que para aprendê-las. E apesar de ela conter, realmente, uma
porção de preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem contudo tantos
outros misturados no meio que são ou danosos, ou supérfluos, que é quase tão
difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de
mármore que nem ao menos está delineado. Depois, no que concerne à análise
dos antigos e à álgebra dos modernos, além de se estenderem apenas a assuntos
muito abstratos, e de não parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece
sempre tão ligada à consideração das figuras que não pode propiciar a
compreensão sem cansar muito a imaginação; e, na segunda, esteve-se de tal
maneira sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e
obscura que atrapalha o espírito, em vez de uma ciência que o cultiva. Por este
motivo, considerei ser necessário buscar algum outro método que, contendo as
vantagens desses três, estivesse desembaraçado de seus defeitos. E, como a
grande quantidade de leis fornece com freqüência justificativas aos vícios, de
forma que um Estado é mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito
poucas delas, são estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande
número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes
os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inalterável resolução de não
deixar uma só vez de observá-los.

1 Lúlio (bem -aventurado Raimundo), em catalão Ramón Llull, erudito, filósofo, teólogo e poeta catalão (Palma
de Maiorca c. 1233 - Bugia ou Palma 1315). Seu proselitismo cristão o levou aos países mediterrâneos, onde
organizou uma cruzada intelectual destinada a provocar encontros entre sábios de diferentes religiões, visando à
unificação religiosa do mundo. (N. do T.)
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O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não
conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a
prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão
clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar
dele.
O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em
tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor
solucioná-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco,
como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo
até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos
outros.
E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e
revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir.
Essas longas séries de razões, todas simples e fáceis, que os geômetras
costumam utilizar para chegar às suas mais difíceis demonstrações, tinham-me
dado a oportunidade de imaginar que todas as coisas com a possibilidade de
serem conhecidas pelos homens seguem-se umas às outras do mesmo modo e
que, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por verdadeira qualquer
uma que não o seja, e que observemos sempre a ordem necessária para deduzi-las
umas das outras, não pode existir nenhuma delas tão afastada a que não se
chegue no final, nem tão escondida que não se descubra. E não me foi muito
dificultoso procurar por quais deveria começar, pois já sabia que haveria de ser
pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer; e, considerando que, entre
todos os que anteriormente procuraram a verdade nas ciências, apenas os
matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, ou seja, algumas
razões certas e evidentes, não duvidei de modo algum que não fosse pelas mesmas
que eles analisaram; apesar de não esperar disso nenhuma outra utilidade,
salvo a de que habituariam meu espírito a se alimentar de verdades e a não se
satisfazer com falsas razões. Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar
aprender todas essas ciências particulares que habitualmente se chamam
matemáticas; e, vendo que, apesar de seus objetos serem distintos, não deixam
de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas
ações ou proporções que neles se encontram, julguei que convinha mais analisar
apenas estas proporções em geral, e presumindo-as somente nos suportes que
servissem para me tornar seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem
restringi-las de modo algum a tais suportes, a fim de poder aplicá-las tão melhor,
em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem. Depois, havendo percebido
que, a fim de conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá-las
cada qual em particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender,
várias em conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria
presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que
pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus
sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era
necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis, e
que, por esse meio, tomaria de empréstimo o melhor da análise geométrica e da
álgebra, e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra.
E já que, com efeito, atrevo-me a dizer que a exata observação desses
poucos preceitos que eu escolhera me deu tal facilidade de desenredar todas as
questões às quais se estendem essas duas ciências que, nos dois ou três meses
que levei para analisá-las, havendo iniciado pelas mais simples e mais gerais, e
compondo cada verdade que eu encontrava uma regra que me servia depois para
encontrar outras, não apenas consegui resolver muitas que antes considerava
muito difíceis, como me pareceu também, próximo ao fim, que podia determinar,
até mesmo naquelas que ignorava, por quais meios e até onde seria possível
resolvê-las. No que, talvez, não vos afigurarei muito vaidoso, se considerardes
que, existindo somente uma verdade de cada coisa, aquele que a encontrar
conhece a seu respeito tanto quanto se pode conhecer; e que, por exemplo, uma
criança instruída na aritmética, que haja realizado uma adição de acordo com as
regras, pode ter certeza de haver encontrado, no que concerne à soma que
analisava, tudo o que o espírito humano poderia encontrar. Pois, enfim, o método
que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as
circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da
aritmética.

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