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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Discurso do Método - René Descartes [parte final]

No entanto, o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por
ele, tinha certeza de usar em tudo minha razão, se não à perfeição, ao menos o
melhor que eu pudesse; ademais, sentia, ao utilizá-lo, que meu espírito se
habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente seus objetos, e
que, não o havendo sujeitado a nenhuma matéria em especial, prometia a mim
mesmo empregá-lo com a mesma utilidade a respeito das dificuldades das outras
ciências como o fizera com as da álgebra. Não que me atrevesse a empreender
primeiramente a análise de todas as que se me apresentassem, pois isso seria
contrário à ordem que ele prescreve. Porém, havendo percebido que os seus
princípios deviam ser todos tomados à filosofia, na qual até então não encontrava
sequer um que fosse correto, pensei que seria preciso, em princípio, tentar ali
estabelecê-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e em que a
pressa e a prevenção eram mais de recear, não devia pôr em execução sua realização
antes de atingir uma idade bem mais madura do que a dos 23 anos que eu
tinha naquela época e antes de ter gasto muito tempo em preparar-me para isso,
tanto extirpando de meu espírito todas as más opiniões que nele dera acolhida até
então, como reunindo numerosas experiências para servirem logo depois de matéria
aos meus processos racionais, e adestrando-me no método que me
preceituara, com o propósito de me fixar sempre mais nele.


TERCEIRA PARTE
AFINAL, COMO não é suficiente, antes de dar início à reconstrução da
casa onde residimos, demoli-la, ou munir-nos de materiais e contratar arquitetos,
ou habilitar-nos na arquitetura, nem, além disso, termos efetuado com esmero o
seu projeto, é preciso também havermos providenciado outra onde possamos nos
acomodar confortavelmente ao longo do tempo em que nela se trabalha. Da
mesma maneira, para não hesitar em minhas ações, enquanto a razão me
obrigasse a fazê-lo, em meus juízos, e a fim de continuar a viver desde então de
maneira mais feliz possível, concebi para mim mesmo uma moral provisória, que
consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos anunciar.
A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me
na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da
infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais
moderadas e as mais distantes do excesso, que fossem comumente aceitas pelos
mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver. Porquanto, começando
desde então a não me valer para nada de minhas próprias opiniões, porque eu as
queria submeter todas a análise, estava convencido de que o melhor a fazer era
seguir as dos mais sensatos. E, a despeito de que talvez existam, entre os persas e
chineses, homens tão sensatos como entre nós, afigurava-se-me que o mais útil
seria orientar-me por aqueles entre os quais teria de viver; e que, para saber quais
eram realmente as suas opiniões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam
do que daquilo que diziam; não apenas porque, na corrupção de nossos
costumes, existem poucas pessoas que queiram dizer tudo o que pensam, mas
também porque muitos o ignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do
pensamento, pela qual se acredita numa coisa, distinta daquela pela qual se sabe
que se acredita nela, repetidas vezes uma se apresenta sem a outra. E, entre
várias opiniões igualmente aceitas, escolhia somente as moderadas: tanto porque
são sempre as mais cômodas para a prática, e provavelmente as melhores, já que
todo excesso costuma ser mau, como também para me desviar menos do
verdadeiro caminho, caso eu falhasse, do que, havendo escolhido um dos
extremos, fosse o outro aquele que eu deveria ter seguido.
E, em especial, punha
entre os excessos todas as promessas pelas quais se restringe em algo a própria
liberdade. Não que desaprovasse as leis que, para corrigir a inconstância dos
espíritos fracos, permitem, quando se possui algum bom propósito, ou mesmo,
para a segurança das relações sociais, alguma intenção que seja apenas
indiferente, que se façam promessas solenes ou contratos que obriguem a
persistir nela; mas porque não via no mundo nada que continuasse sempre no
mesmo estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmo
aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de maneira alguma torná-los piores,
pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter aprovado
então alguma coisa, me sentisse na obrigação de tomá-la como boa ainda depois,
quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu parasse de considerá-la tal.
Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível
em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem
muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a
tanto. Imit ava nisso os viajantes que, estando perdidos numa floresta, não devem
ficar dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer
num local, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e
não mudá-lo por quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez haja
definido sua escolha: pois, por este método, se não vão exatamente aonde
desejam, ao menos chegarão a algum lugar onde provavelmente estarão melhor
do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às
vezes atraso algum, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso
poder o distinguir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais
prováveis; e mesmo que não percebamos em umas mais probabilidades do que
em outras, devemos, sem embargo, decidir-nos por algumas a considerá-las
depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a
prática, mas como muito verdadeiras e corretas, visto que a razão que a isso nos
induziu se apresenta como tal. E isto me consentiu, desde então, libertar-me de
todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências
desses espíritos fracos e hesitantes que se deixam levar a praticar, como boas, as
coisas que em seguida consideram más.
Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim
próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem
do mundo; e, em geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja
completamente em nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que,
após termos feito o melhor possível no que se refere às coisas que nos são
exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a nós,
absolutamente impossível. E somente isso me parecia suficiente para
impossibilitar-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse obter, e, assim,
para me tornar contente. Pois, a nossa vontade, tendendo naturalmente para
desejar apenas aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma
forma como possíveis, é certo que, se considerarmos igualmente afastados de
nosso poder todos os bens que se encontram fora de nós, não deploraremos mais
a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles
formos privados sem termos culpa, do que deploramos não possuir os remos da
China ou do México; e que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não
desejaremos mais estar sãos, estando doentes, ou estar livres, estando presos, do
que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os
diamantes, ou asas para voar como as aves. Mas confesso que é preciso um
longo adestramento e uma meditação freqüentemente repetida para nos
habituarmos a olhar todas as coisas por este ângulo; e acredito que é principalmente
nisso que consistia o segredo desses filósofos, que puderam em
outros tempos esquivar-se do império do destino e, apesar das dores e da
pobreza, pleitear felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se continuamente
em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza, convenceram-se
tão perfeitamente de que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos,
que só isso bastava para impossibilitá-los de sentir qualquer afeição por outras
coisas; e os utilizavam tão absolutamente que tinham neste caso especial certa
razão de se julgar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que
quaisquer outros homens, os quais, não tendo esta filosofia, por mais favorecidos
que sejam pela natureza e pelo destino, nunca são senhores de tudo o que
desejam.
Por fim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as
diferentes ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher
a melhor; e, sem pretender dizer nada a respeito das dos outros, achei que o
melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja,
utilizar toda a minha existência em cultivar minha razão, e progredir o máximo
que pudesse no conhecimento da verdade, de acordo com o método que me
determinara. Eu sentira tão grande felicidade, a partir do momento em que
começara a servir-me deste método, que não acreditava que, nesta vida, se
pudessem receber outros mais doces, nem mais inocentes; e, descobrindo todos
os dias, por seu intermédio, algumas verdades que me pareciam deveras
importantes e geralmente ignoradas pelos outros homens, a satisfação que isso
me proporcionava preenchia de tal forma meu espírito que tudo o mais não me
atingia. Além do que, as três máximas precedentes se baseavam apenas no meu
intento de continuar a me instruir: pois, tendo Deus concedido a cada um de nós
alguma luz para diferenciar o verdadeiro do falso, não julgaria dever satisfazer-me
um único instante com as opiniões dos outros, se não tencionasse utilizar o
meu próprio juízo em analisá-las, quando fosse tempo; e não saberia dispensar-me
de escrúpulos, ao segui-las, se não esperasse não perder com isso
oportunidade alguma de encontrar outras melhores, caso existissem. E, enfim,
não saberia cercear os meus desejos, nem estar contente, se não tivesse percorrido
um caminho pelo qual, julgando estar seguro da aquisição de todos os
conhecimentos de que fosse capaz, pensava estar também, pelo mesmo método,
seguro da aquisição de todos os verdadeiros bens que em alguma ocasião se
encontrassem ao meu alcance; tanto mais que, a nossa vontade não estando
propensa a seguir ou fugir a qualquer coisa, a não ser se o nosso entendimento a
represente como boa ou má, é suficiente bem julgar para bem agir, e julgar o
melhor possível para também agir da melhor maneira, ou seja, para adquirir
todas as virtudes e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se possam
adquirir; e, quando se tem certeza de que é assim, não se pode deixar de ficar
contente.
Depois de haver-me assim assegurado destas máximas, e de tê-las separado,
com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei
que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar
desfazer-me delas. E, como esperava chegar melhor ao fim dessa tarefa
conversando com os homens, do que prosseguindo por mais tempo fechado no
quarto aquecido onde me haviam surgido esses pensamentos, recomecei a viajar
quando o inverno ainda não terminara. E, em todos os nove anos que se
seguiram, não fiz outra coisa a não ser girar pelo mundo, daqui para ali, tentando
ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se representam;
e, refletindo particularmente, em cada matéria, sobre o que podia torná-la
suspeita e propiciar a oportunidade de nos enganarmos, ao mesmo tempo
extirpava do meu espírito todos os equívocos que até então nele se houvessem
instalado. Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam só por duvidar e
fingem ser sempre indecisos: pois, ao contrário, todo o meu propósito propendia
apenas a me certificar e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a
rocha ou a argila. O que consegui muito bem, quer me parecer, ainda mais que,
procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que analisava,
não por fracas conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não encontrava
nenhuma tão duvidosa que dela não tirasse sempre alguma conclusão bastante
correta, na pior da hipóteses a de que não continha nada de correto. E, da mesma
maneira que ocorre ao demolir uma velha casa, conservam-se comumente os
entulhos para serem utilizados na construção de outra nova, assim, ao destruir
todas as minhas opiniões que julgava mal alicerçadas, fazia diversas observações
e adquiria muitas experiências, que me serviram mais tarde para estabelecer
outras mais corretas. E, além disso, continuava a praticar no método que me
preceituara; pois não apenas tomava o cuidado de, em geral, dirigir todos os
meus pensamentos conforme as suas regras, como reservava, de tempos em
tempos, algumas horas, que utilizava especialmente em aplicá-los nas dificuldades
de matemática, ou também em algumas outras que eu podia tornar quase
parecidas às das matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras
ciências, que eu não considerava suficientemente sólidos, como vereis que
procedi com várias que são explicadas neste volume. E deste modo,
aparentemente sem viver de maneira diferente daqueles que, não tendo outra
ocupação exceto levar uma vida suave e inocente, procuram isolar os prazeres
dos vícios, e que, para usufruir seus lazeres sem se aborrecer, usam todos os
divertimentos que são honestos, não deixava de perseverar em meu intento e de
progredir no conhecimento da verdade, mais talvez do que se me restringisse a
ler livros ou frequentar homens de letras.
Ainda assim, esses nove anos decorreram antes que eu tivesse tomado
qualquer resolução no que concerne às dificuldades que costumam ser discutidas
entre os eruditos, ou começado a procurar os fundamentos de alguma filosofia
mais correta do que a trivial. E o exemplo de numerosos espíritos elevados que,
tendo se proposto anteriormente esse desígnio, não haviam conseguido, a meu
ver, realizá-lo, levava-me a imaginar tantas dificuldades que não teria talvez me
atrevido empreendê-lo tão cedo, se não tivesse conhecimento de que alguns já
faziam correr a informação de que eu já o levara a cabo. Não saberia dizer em
que baseavam esta opinião; e, se para isso contribuí em alguma coisa com meus
discursos, deve ter sido por confessar neles aquilo que eu ignorava, com mais
ingenuidade do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e, e possível,
também por mostrar os motivos que tinha de duvidar de muitas coisas que os
outros julgam corretas, do que por me vangloriar de qualquer doutrina. Porém,
tendo o coração bastante brioso para não desejar que me tomassem por alguém
que eu não era, pensei que devia esforçar-me, por todos os meios, a fim de
tornar-me merecedor da reputação que me conferiam; e faz exatamente oito anos
que esse desejo me impeliu a distanciar-me de todos os lugares em que pudesse
ter conhecidos, e a retirar-me para cá, para um país onde a longa duração da
guerra levou a estabelecer tais ordens, que os exércitos nele mantidos parecem
servir apenas para que os frutos da paz sejam usufruídos com tanto mais
segurança, e onde, em meio a um grande povo muito ativo e mais zeloso de seus
próprios assuntos, do que curioso com os dos outros, sem sentir necessidade de
nenhuma das comodidades que existem nas cidades mais desenvolvidas, pude
viver tão solitário e isolado como nos desertos mais longínquos.

QUARTA PARTE
NÃO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das primeiras
meditações que aí realizei; já que por serem tão metafísicas e tão incomuns, é
possível que não serão apreciadas por todos. Contudo, para que seja possível
julgar se os fundamentos que escolhi são suficientemente firmes, vejo-me, de
alguma forma, obrigado a falar-vos delas. Havia bastante tempo observara que,
no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos
serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito
acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei
que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo
aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois
disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável.
Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que
não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem
homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples
noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que
estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara
até então por demonstrações. E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos
que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer
enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi
fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito
não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em
seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso,
fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo,
julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da
filosofia que eu procurava.
Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia
presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar
onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao
contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras
coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que,
se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez
imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse
existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem
depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por
causa da qual sou o que sou, é completamente distinta do corpo e, também, que é
mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria
de ser tudo o que é.
Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser
verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente
assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, ao
perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a
verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir,
concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito
clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade
em notar bem quais são as que concebemos distintamente.
Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por
conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o
conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera
a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que
devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere
aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim,
como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão
difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse
torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam
dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma
perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que
existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo
com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era
evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a ideia de que o
mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do
que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la
tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido
colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e
que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma ideia, ou seja,
para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que,
admitido que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser
que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola);
mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu
dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Pois, se eu fosse
sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de
mim próprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito,
poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me,
e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e
enfim ter todas as perfeições que podia perceber existirem em Deus. 

Pois, deacordo com os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus,
tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as
coisas de que encontrava em mim qualquer ideia, se era ou não perfeição possuí-las,
e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu
notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não podiam
existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas. Ademais,
eu tinha idéias acerca de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, apesar de
presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não
podia negar, não obstante, que as idéias a respeito não existissem
verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver reconhecido em mim
com bastante clareza que a natureza inteligente é distinta da corporal,
considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a
dependência é evidentemente uma falha, julguei a partir disso que não podia ser
uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em
conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou
então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem totalmente
perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que não
pudessem subsistir sem Ele por um único instante.
Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e tendo-me
estabelecido o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo,
ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou
profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e
grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras
conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas de suas demonstrações
mais simples. E, ao perceber que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se
alicerça somente no fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra
que há pouco manifestei, notei também que nada existia nelas que me garantisse
a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu percebia muito bem que, ao
imaginar um triângulo, fazia-se necessário que seus três ângulos fossem iguais a
dois retos; porém, malgrado isso, nada via que garantisse existir no mundo
qualquer triângulo. Enquanto, ao voltar a examinar a ideia que eu tinha de um
Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que
na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na
de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou
ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que
Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de
geometria.
Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil conhecê-lo,
e também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca alçarem o espírito
além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar
exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar particular às coisas
materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E
isto é bastante evidente pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas
escolas, que nada existe no entendimento que não haja estado primeiramente nos
sentidos, onde, contudo, é certo que as idéias de Deus e da alma nunca
estiveram. E me parece que todos aqueles que querem usar a imaginação para
compreendê-las se comportam da mesma maneira que se, para ouvir os sons ou
sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos; salvo com esta diferença: que o
sentido da visão não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do
olfato ou da audição; enquanto a nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais
poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse.

Afinal, se ainda há homens que não estejam totalmente convencidos da
existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam
que todas as outras coisas, a respeito das quais se consideram talvez certificados,
como a de possuírem um corpo, existirem astros e a Terra, e coisas parecidas,
são ainda menos certas. Pois, apesar de se ter dessas coisas uma certeza moral,
que é de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante, parece impossível colocá-la
em dúvida; contudo, ao que concerne à certeza metafísica, não se pode negar, a
não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo suficiente para não
possuirmos total segurança a respeito, o fato de observarmos que podemos da
mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que temos outro corpo, que
vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja verdade. Pois, de onde sabemos
que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do
que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E,
mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não
acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa
dúvida, se não presumirem a existência de Deus. Pois, em princípio, aquilo
mesmo que há pouco tomei com qualquer promessa que eu não esteja seguro de cumprir: mas direi unicamente que decidi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa que não
seja tentar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja de tal ordem que
dele se possam extrair normas para a medicina, mais seguras do que as adotadas
até agora; e que minha tendência me afasta tanto de qualquer tipo de outras
intenções, especialmente das que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar a
outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me a eles, não
acredito que fosse capaz de obter êxito. Faço, então, aqui uma declaração que,
tenho plena consciência, não poderá servir para me tornar famoso no mundo,
mas tampouco tenho o menor desejo de sê-lo; e ficarei sempre mais agradecido
àqueles em virtude dos quais desfrutarei sem estorvo do meu tempo, do que o
seria aos que me oferecessem os mais dignificantes empregos do mundo.


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