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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte final]

23 de Out

Tem ele máximas de que um homem discreto pode tirar proveito e que, estando condensadas em
versos enérgicos, se gravam mais facilmente na memória. Mas pouco se me dá da sua viagem a Brindes,
e da sua descrição de um mau jantar, e da discussão de carregadores entre um tal Pupilus, cujas palavras,
diz ele, eram cheias de pus, e outro cujas palavras eram vinagre. Foi com repugnância que li seus
grosseiros versos contra velhas e feiticeiras; e não sei que mérito possa haver em dizer a seu amigo
Mecenas que, se for posto por este no rol dos poetas líricos, tocará os astros com a sua fronte sublime. Os
tolos admiram tudo em um autor estimado. Leio apenas para mim; só gosto do que está na minha medida.
Cândido, que fora educado de modo a nada julgar por conta própria, estava muito admirado do que
ouvia; e Martinho achava muito razoável o ponto de vista de Pococurante.
- Oh! eis aqui um Cícero - disse Cândido. - Quanto a esse grande homem, penso que Vossa
Excelência jamais se cansa de o ler.
- Nunca o leio - respondeu o veneziano. - Que me importa que ele haja pleiteado a favor de Rabirio ou
de Cluêncio? Bastam-me os processos que tenho de julgar. Dar-me-ia melhor com as suas obras
filosóficas; mas, quando vi que Cícero duvidava de tudo, cheguei à conclusão de que sabia tanto quanto
ele, e que não tinha necessidade de ninguém para ser ignorante.
- Ah! - exclamou Martinho. - Eis aqui oitenta volumes dos anais de uma academia de ciências; deve
haver nisso tudo alguma coisa de bom.
- Haveria - disse Pococurante - se um só dos autores dessa moxinifada tivesse inventado ao menos a
arte de fabricar alfinetes; mas em todos esses volumes não há mais que inócuos sistemas e nenhuma
coisa útil.
- Quantas peças de teatro vejo aqui! - disse Cândido, - em italiano, em espanhol, em francês!
- São três mil ao todo - disse o senador, - mas não há três dúzias que prestem. Quanto a essas
coletâneas de sermões, que não valem em conjunto uma página de Sêneca, e todos esses grossos volumes
de teologia, bem compreende o senhor que não os abro nunca, nem eu nem ninguém.
Martinho divisou prateleiras cheias de livros ingleses.
- Creio - disse ele. - que um republicano deve comprazer-se na leitura dessas obras escritas com tanta
liberdade.

- Sim - respondeu Pococurante, - é belo escrever-se o que se pensa; é o privilégio do homem. Por toda
a nossa Itália, só se escreve o que não se pensa; aqueles que habitam a pátria dos Césares e dos
Antoninos não buscam ter uma idéia sem a permissão de um jacobino. Muito me alegraria com a
liberdade que inspira os gênios ingleses se a paixão e o espírito faccioso não corrompessem tudo o que
tem de estimável essa preciosa liberdade.
Cândido, descobrindo um Milton, perguntou-lhe se não considerava esse autor como um grande
homem.
- Quem? - explodiu Pococurante. - Esse bárbaro que faz um longo comentário do primeiro capítulo do
Gênesis em dez livros de versos duros? Esse grosseiro imitador dos gregos, que desfigura a Criação, e
que, enquanto Moisés representa o Ser Eterno criando o mundo com o verbo, faz com que o Messias
retire um grande compasso de um armário do céu, para traçar a sua obra? Eu, estimar aquele que estragou
o inferno e o diabo do Tasso; que disfarça Lúcifer ora de sapo, ora de pigmeu; que o faz repetir cem
vezes as mesmas tiradas; que o faz discutir teologia; que, imitando seriamente a invenção cômica das
armas de fogo em Ariosto, obriga os diabos a disparar canhões pelo céu?! Nem eu, nem ninguém na
Itália, jamais pôde apreciar essas tristes extravagâncias. O casamento do pecado e da morte, e as cobras
que o pecado deita à luz, fazem vomitar qualquer homem que tenha o gosto um pouco delicado, e a sua
longa descrição de um hospital só é boa para coveiros. Esse poema obscuro, extravagante e enfadonho,
foi desprezado ao aparecer; eu o trato agora como foi tratado na sua pátria pelos contemporâneos. De
resto, digo o que penso; e pouco me importa se os outros pensam ou não como eu.
Cândido sentia-se aflito com tais palavras; respeitava Homero, gostava um pouco de Milton.
- Ai! - dizia ele em voz baixa a Martinho, - tenho muito medo de que esse homem dedique um
soberano desprezo aos nossos poetas alemães.
- Não haveria grande mal nisso - retrucou Martinho.
- Oh, que homem superior! - continuava Cândido a murmurar. - Que gênio esse Pococurante! Não lhe
agrada coisa alguma.
Depois de terem assim passado em revista todos os livros, desceram para o jardim. Cândido
louvou-lhe todas as belezas.
Nunca vi nada de tão mau gosto - disse o proprietário - É uma bagatela; mas já amanhã vou mandar
construir outro de um traçado mais nobre.
Depois que os dois curiosos se despediram de Sua Excelência, disse Cândido a Martinho:
- Não pode negar que é esse o mais feliz dos homens, pois está acima de tudo o que possui.
- Mas não vê o senhor que ele está é enfarado de tudo o que possui? Disse Platão, há muito, que os
melhores estômagos não são aqueles que repelem todos os alimentos.
- Não há então prazer em tudo criticar - disse Cândido, em sentir defeitos onde os outros julgam ver
belezas?
- Há, pois, prazer em não sentir prazer? - tornou Martinho.
- Bem, quer então dizer que, feliz, só eu mesmo, quando encontrar a senhorita Cunegundes!
- Sempre é bom esperar - disse Martinho.
Entrementes, passavam-se os dias e semanas; Cacambo não voltava, e tão abismado se achava
Cândido nos seus pesares, que nem mesmo notou que Paquette e o Irmão Giroflée não tinham vindo ao
menos agradecer-lhe.
CAPÍTULO XXVI
De uma ceia que Cândido e Martinho fizeram com seis estrangeiros, quem eram estes.
Uma noite em que Cândido, em companhia de Martinho, ia sentar-se à mesa com os estrangeiros que
paravam na mesma hospedaria, aborda-o pelas costas um homem de rosto bronzeado que, tomando-o
pelo braço, lhe diz: "Apronte-se para partir conosco, sem falta." Cândido se volta e dá de rosto com
Cacambo. Só a vista de Cunegundes lhe poderia causar maior espanto e alegria. Abraça o seu caro
amigo.
- E Cunegundes está aqui, não é? Leva-me a sua presença, para que eu morra de alegria com ela.
- Cunegundes não está aqui; está em Constantinopla.
- Meus Deus! Em Constantinopla?! Mesmo que esteja: na China, corramos, sem demora!
- Partiremos depois da ceia - tornou Cacambo. - Não lhe posso dizer mais nada; sou escravo, o meu
senhor me espera; tenho de ir servi-lo à mesa; não diga nada, coma e apronte-se.
Cândido, dividido entre a alegria e a dor, encantado de rever seu fiel agente, atônito de o ver escravo,
cheio da preocupação de encontrar a sua amada, com o coração palpitante, o espirito agitado, sentou-se à
mesa com Martinho que considerava de sangue frio todas aquelas aventuras, e com seis estrangeiros que
tinham vindo passar o carnaval em Veneza. Cacambo, que servia bebida a um desses estrangeiros,
achegou-se ao ouvido de seu amo, ao fim da ceia, e disse-lhe:
- Sire, Vossa Majestade pode partir quando quiser, o navio está pronto.
Dito isto, retirou-se. Os convivas, atônitos, se entreolharam em silêncio, quando outro criado.
aproximando-se de seu amo, lhe diz:
- Sire, a liteira de Vossa Majestade o espera em Pádua, e o barco está pronto.
O amo fez um gesto, e o criado partiu. Todos os convivas se entreolharam de novo, e a surpresa
comum redobrou. Um terceiro criado, aproximando-se também de um terceiro viajante, disse-lhe:
- Sire, Vossa Majestade não pode demorar-se mais aqui: vou preparar tudo. - E retirou-se.
Cândido e Martinho não duvidaram mais de que se tratava de uma mascarada do carnaval. Um quarto
criado disse ao quarto amo:
- Vossa Majestade poderá partir quando quiser. - E retirou-se como os outros. O quinto criado disse o
mesmo ao quinto amo. Mas o sexto falou diferentemente ao sexto estrangeiro, que se achava ao lado de
Cândido; disse-lhe:
- Sire, não querem conceder mais crédito a Vossa Majestade, nem a mim tampouco. Estamos em
perigo de ser presos esta noite, Vossa Majestade e eu. Adeus, vou tratar dos meus assuntos.
Tendo desaparecido todos os criados, os seis forasteiros, Cândido e Martinho permaneceram em
profundo silêncio, até que afinal Cândido o rompeu:
- Que singular brincadeira, meus senhores! Com que então são todos reis aqui? Quanto a mim,
confesso que nem eu nem Martinho o somos.
O amo de Cacambo tomou então a palavra e disse gravemente em italiano:
Não estou brincando, chamo-me Achmet III. Fui sultão durante vários anos; destronei meu irmão;
meu sobrinho me destronou; cortaram a cabeça a meus vizires; termino os meus dias no velho serralho;
meu sobrinho, o sultão Mahmoud.
- me permite viajar algumas vezes, por motivos de saúde, e eu vim passar o carnaval em Veneza.
Falou depois um jovem que estava ao lado de Achmet:
- Chamo-me Ivan; fui imperador de todas as Rússias; destronaram-me ainda no berço; meu pai e
minha mãe foram presos e eu criei-me numa prisão; tenho às vezes permissão de viajar, acompanhado de
meus guardas, e vim passar o carnaval em Veneza.
Disse o terceiro:
- Sou Carlos Eduardo, rei da Inglaterra; meu pai cedeu-me seus direitos ao reino; lutei para
sustentá-los; arrancaram o coração a oitocentos de meus partidários, com o qual lhes bateram as faces.
Fui aprisionado; vou a Roma fazer uma visita ao rei meu pai, destronado como eu e meu avô, e vim
passar o carnaval em Veneza.
O quarto tomou então a palavra e disse:
- Sou rei da Polônia; a sorte da guerra privou-me de meus Estados hereditários; meu pai sofreu os
mesmos reveses; resigno-me à Providência, como o sultão Achmet, o imperador Ivan e o rei Carlos
Eduardo, a quem Deus conceda longa vida, e vim passar o carnaval em Veneza.
Falou então o quinto:
- Também sou rei da Polônia. Por duas vezes perdi meu reino, mas a Providência deu-me outro
Estado, onde fiz mais benefícios do que todos os reis dos sármatas, reunidos, jamais o puderam fazer às
margens do Vistula. Resigno-me também à Providência, e vim passar o carnaval em Veneza.
Faltava falar o sexto soberano:
- Não sou tão grande monarca como Vossas Majestades - disse ele. - Mas afinal fui rei como qualquer
outro. Sou Teodoro; elegeram-me rei da Córsega; chamaram-me de Vossa Majestade e agora apenas me
chamam de Senhor. Mandei cunhar moedas, e não possuo uma única; tive dois secretários de Estado, e
tenho apenas um criado; já me vi sobre um trono, e estive preso muito tempo em Londres, sobre umas
palhas. Receio muito ser tratado do mesmo modo aqui, embora tenha vindo, como Vossas Majestades,
passar o carnaval em Veneza.
Os cinco outros reis ouviram tais palavras cheios de nobre compaixão. Cada um deles deu vinte
sequins ao rei Teodoro, para comprar vestuários e camisas. Cândido presenteou-o com um diamante de
dois mil sequins. "Quem será esse simples particular - diziam os cinco reis - que pode dar (e dá) cem
vezes mais que cada um de nós?"
No instante em que se levantavam da mesa, chegaram à mesma hospedaria quatro altezas sereníssimas
que também haviam perdido seus Estados pela sorte das armas e que vinham passar o resto do carnaval
em Veneza. Mas Cândido não deu a mínima atenção aos recém-chegados. Só se preocupava em ir ter
com a sua querida Cunegundes em Constantinopla.
CAPÍTULO XXVII
Da viagem de Cândido a Constantinopla.
O fiel Cacambo já conseguira, com o capitão turco que deveria levar o sultão Achmet a
Constantinopla, que recebesse a bordo Cândido e Martinho. Ambos se dirigiram para o navio, depois de
se haverem prosternado perante Sua Miserável Alteza. Cândido, em caminho, dizia ao companheiro:
- Vimos, pois, seis reis destronados, e com eles jantamos, e dentre esses, ainda houve um a quem dei
esmola. Talvez haja muitos outros príncipes mais desgraçados. Quanto a mim, só perdi cem carneiros, e
vou para os braços de Cunegundes. Mais uma vez Pangloss teve razão, meu caro Martinho: tudo está
bem.
- Assim o desejo - disse Martinho.
- Mas - tornou Cândido, - em todo caso foi uma aventura muito pouco verossímil a que nos aconteceu.
Jamais se ouviu contar que seis reis destronados jantassem juntos numa estalagem.
- Isso não é mais extraordinário - respondeu Martinho - que a maior parte das nossas aventuras. E,
quanto à honra que tivemos de jantar com eles, é isso uma bagatela que não merece a nossa atenção.
Mal se viu a bordo, Cândido saltou ao pescoço de seu antigo criado e amigo Cacambo:
- E então? Que faz Cunegundes? Continua um prodígio de beleza? Ainda me ama? Como está ela?
Não lhe compraste um palácio em Constantinopla?
- Cunegundes, meu caro patrão, é quem lava a louça, na Propôntida, em casa de um príncipe que tem
muito pouca louça; é escrava da casa de um antigo soberano chamado Ragotski, a quem o Grão Turco dá
três escudos por dia para o sustentar no exílio, mas o mais triste é que ela perdeu a. beleza e se tornou
horrivelmente feia.
-.Ah! bela ou feia - disse Cândido, eu sou um homem honrado, e meu dever é amá-la toda a vida. Mas
como pode estar ela reduzida a tão miserável estado, com os cinco ou seis milhões que levava?
- Pois não tive de dar dois milhões ao senhor Dom Fernando de Ibarra y Figueroa y Mascareñas y
Lampurdos y Sousa, governador de Buenos Aires, para que me fosse permitido levar comigo a senhorita
Cunegundes? E depois - continuou Cacambo - um pirata não nos despojou de todo o resto? E esse pirata
não nos levou ao cabo de Matapan, a Milo, a Nicária, a Samos, a Petra, aos Dardanelos, a Mármora, a
Sentari? Cunegundes e a velha servem na casa do príncipe de que lhe falei, e eu sou escravo do sultão
destronado.
- Que espantosas calamidades encadeadas umas às outras! - exclamou Cândido. - Mas afinal ainda
tenho alguns diamantes; libertarei facilmente a senhorita Cunegundes. É pena que ela se haja tornado tão
feia. Depois, voltando-se para Martinho:
- A quem acha mais digno de lástima - perguntou-lhe, - o sultão Achmet, o imperador Ivan, o rei
Carlos Eduardo, ou a mim?
- Não sei - disse Martinho, - era preciso que eu conhecesse o íntimo de cada um.
- Ah! se aqui estivesse, Pangloss o saberia dizer.
- Não sei com que balança - disse Martinho - poderia o seu Pangloss pesar os infortúnios dos homens
e avaliar os seus sofrimentos. Só o que eu presumo é que deve haver milhões de homens no mundo cem
vezes mais dignos de lástima que o rei Carlos Eduardo, o imperador Ivan e o sultão Achmet.
- Pode ser - disse Cândido.
Dentro em poucos dias se achavam no canal do Mar Negro. A primeira coisa que fez Cândido foi
resgatar Cacambo bastante caro e, sem perda de tempo, meteu-se numa galera, com os companheiros,
para ir à Propôntida procurar Cunegundes, por mais feia que pudesse estar.
Havia nas galés dois forçados que remavam muito mal e a quem o patrão levantino aplicava de vez
em quando alguns golpes de nervo de boi sobre as espáduas nuas. Cândido, por um natural sentimento,
olhou-os mais atentamente do que aos outros, e aproximou-se deles com piedade. Alguns traços de suas
fisionomias desfiguradas pareceram-lhe apresentar um quê de semelhança com Pangloss e com aquele
infeliz jesuíta, o barão, irmão da senhorita Cunegundes. Essa idéia o encheu de comoção e tristeza.
Considerou-os mais atentamente.
- Na verdade - disse ele a Cacambo, - se eu não tivesse visto enforcar mestre Pangloss e se não me
houvesse acontecido a infelicidade de matar o barão, julgaria que são eles que estão remando nesta
galera.
Ao nome do barão e de Pangloss, os dois forçados soltaram um grito, estacaram e deixaram cair os
remos. O levantino acorreu, e redobraram os golpes de nervo de boi.
Basta! basta! - exclamou Cândido. - Eu lhe darei todo o dinheiro que quiser.
- Como! É Cândido! - bradava um dos forçados.
- É Cândido! - bradava o outro.
- Estarei sonhando? Estarei acordado? Estou mesmo nesta galera? - indagava Cândido. - É este o
senhor barão que eu matei? É este Mestre Pangloss que eu vi enforcar?
- Somos nós mesmos, somos nós mesmos - respondiam eles.
- Como! É esse o grande filósofo? - dizia Martinho.
- Escute, senhor patrão levantino -- disse Cândido, - quanto quer pelo resgate do senhor de
Thunder-ten-tronckh, um dos primeiros barões do Império, e do senhor Pangloss, o mais profundo
metafísico da Alemanha?
- Já que esses dois cães de forçados cristãos - respondeu o levantino - são barões e metafísicos, o que
é sem dúvida uma grande dignidade na sua terra, tu, cão de cristão, me pagarás por eles cinqüenta mil
sequins.
 São seus. Leve-me como um relâmpago a Constantinopla, e será pago imediatamente. Não, não;
leve-me à senhorita Cunegundes.
À primeira oferta de Cândido, já o levantino virara a proa para a cidade, e fazia remar mais depressa
do que um pássaro fende os ares.
Cândido abraçou cem vezes o barão e Pangloss. Como foi que eu não te matei, meu caro barão? E
tu, meu Pangloss, como é que estás vivo depois de ter sido enforcado? E por que estão os dois em galés
na Turquia?
- É verdade que a minha querida irmã está nesse país? - indagava o barão.
- Sim - respondia Cacambo.
- Com que então torno a ver o meu querido Cândido! - exclamava Pangloss.
- Cândido lhes apresentava Martinho e Cacambo. Todos se abraçavam, todos falavam ao mesmo
tempo.
A galera voava, estava já no porto. Mandaram chamar um judeu, a quem Cândido vendeu por
cinqüenta mil sequins um diamante do valor de cem mil, e que jurou por Abraão que não lhe poderia
oferecer mais. Cândido pagou incontinenti o resgate do barão e de Pangloss. Este lançou-se aos pés de
seu libertador e banhou-os de lágrimas; o barão agradeceu-lhe com um sinal de cabeça e prometeu
devolver-lhe a quantia na primeira oportunidade.
- Mas será possível que minha irmã esteja na Turquia? - dizia ele.
- Nada mais possível - respondeu Cacambo, - pois lava pratos na cozinha de um príncipe da
Transilvânia.
Mandaram em seguida chamar dois judeus; Cândido vendeu mais diamantes; e partiram todos em
outra galera, para ir libertar Cunegundes.

CAPÍTULO XXVIII
Do que aconteceu a Cândido, a Cunegundes, a Pangloss, a Martinho etc.
Mais uma vez perdão, meu reverendo, por lhe haver atravessado o corpo com a espada - disse
Cândido ao barão.
- Bem, não falemos mais nisso; confesso que fui um pouco exaltado. Já que pretendes saber por que
acaso me viste nas galés, eu te direi que, depois de ter sido curado pelo irmão boticário do Colégio, fui
atacado e feito prisioneiro por uma facção espanhola, e nessas condições cheguei em Buenos Aires
quando minha irmã acabava de partir. Pedi que me enviassem a Roma, para junto do vigário geral. Fui
nomeado esmoler em Constantinopla, adido ao senhor embaixador da França. Não fazia oito dias que
assumira o meu cargo, quando numa tarde encontrei um jovem icoglã muito simpático. O calor estava
terrível: o jovem quis banhar-se; aproveitei a ocasião para também tomar um banho. Não sabia que
constituísse crime capital, para um cristão, ser encontrado nu com um jovem muçulmano. Um cadi
mandou-me dar cem bastonadas na sola dos pés e condenou-me às galés perpétuas. Não creio que jamais
se haja cometido tão horrível injustiça. Mas eu só desejaria saber por que é que minha irmã se acha na
cozinha de um soberano da Transilvânia asilado na Turquia.
- Mas tu, meu caro Pangloss - perguntou Cândido, - como é possível que eu te torne a ver?
- É verdade - disse Pangloss - que me viste enforcar. Eu deveria ser queimado; mas deves lembrar-te
que chovia a cântaros quando me iam assar: a tempestade era tão violenta que desesperaram de acender o
fogo; fui enforcado porque não acharam melhor solução: Um cirurgião comprou meu corpo, levou-me
para casa e dissecou-me. Fez-me primeiro uma incisão crucial, do umbigo à clavícula. Impossível ser tão
mal enforcado como eu o fora. O carrasco da Santa Inquisição, que era subdiácono, sabia queimar a
gente às mil maravilhas, mas não estava acostumado a enforcar: a corda, muito molhada, deslizou mal e
enroscou-se; em suma, eu respirava ainda: a incisão crucial me fez lançar tamanho grito, que meu
cirurgião tombou de costas, e, julgando que dissecava o diabo, fugiu morto de medo, rolando outra vez,
escada abaixo. Ao ruído, acorreu a mulher do cirurgião; viu-me estendido na mesa com a minha incisão
crucial; teve ainda mais medo que o marido, abalou a correr e caiu sobre ele. Depois que se refizeram um
pouco, ouvi a cirurgiã dizer ao cirurgião:
- Também, que idéia essa tua de dissecar um herético? Não sabes que o diabo está sempre no corpo
dessa gente? Vou já procurar um padre para exorcismá-lo.
Estremeci ao ouvir tal coisa, e reuni o pouco de forças que me restavam para gritar:
- Tenham piedade de mim!
Afinal o barbeiro português criou coragem; costurou minha pele; também a mulher cuidou de mim;
fiquei bom ao cabo de quinze dias. O barbeiro conseguiu empregar-me como lacaio de um cavaleiro de
Malta que ia a Veneza; mas, como o meu patrão não tinha com que me pagar, pus-me a serviço de um
mercador veneziano e acompanhei-o até Constantinopla.
Deu-me um dia a fantasia de entrar numa mesquita. Só se encontrava ali um velho imame e uma
jovem devota muito bonita que dizia as suas orações e estava com o colo inteiramente nu. Tinha ela entre
os dois seios um belo ramalhete de tulipas, rosas, anêmonas, ranúnculos, jacintos e orelhas-de-urso;
deixou cair o ramalhete; eu logo o apanhei, colocando-o no seu lugar com respeitosa solicitude. Levei
tanto tempo para o arrumar bem direitinho, que o imame se encolerizou e, vendo que eu era cristão,
gritou por socorro. Levaram-me ao cádi, que me mandou dar cem varadas nas plantas dos pés e
condenou-me às galeras. Fui encadeado precisamente na mesma galera e no mesmo banco que o senhor
barão. Havia, entre os condenados, quatro jovens de Marselha, cinco padres napolitanos e dois monges
de Corfu, que nos disseram que tais aventuras aconteciam todos os dias. O senhor barão alegava que
sofrera maior injustiça do que eu; da minha parte, achava eu que era muito mais permissível ajeitar umas
flores no seio de uma mulher do que estar nu com um icoglã. Discutíamos sem cessar e recebíamos vinte
golpes de nervo-de-boi por dia, quando o encadeamento dos sucessos deste universo te conduziu à nossa
galera e fez com que nos resgatasses.
- Pois bem! meu caro Pangloss - disse Cândido, - enquanto eras enforcado, dissecado, espancado e
remavas nas galeras, sempre achavas que tudo ia o melhor possível?
Mantenho a minha primitiva opinião - respondeu Pangloss, - pois afinal sou filósofo: não me convém
desfazer-me, visto que Leibnitz não pode incorrer em erro, e a harmonia preestabelecida é a mais bela
coisa do mundo, bem como o todo e a matéria sutil.
CAPÍTULO XXIX
De como Cândido encontrou Cunegundes e a velha.
Enquanto Cândido, o barão, Pangloss, Martinho e Cacambo contavam as suas aventuras, filosofando
sobre os acontecimentos contingentes ou não contingentes deste universo, e discutindo sobre os efeitos e
as causas, o mal moral ,e o mal físico, a liberdade e a necessidade, e o consolo que se pode ter depois de
haver remado numa galera turca, chegaram à costa da Propôntida. onde se achava a casa do príncipe da
Transilvânia. O primeiro espetáculo que se apresentou a seus olhos, foi Cunegundes e a velha, a estender
toalhas no coradouro.
O barão empalideceu. E o enamorado Cândido, ao ver a sua bela Cunegundes com a pele tisnada, os
olhos empapuçados, os seios murchos, as faces enrugadas, os braços vermelhos e pelancudos, recuou três
passos, horrorizado, mas em seguida avançou, por delicadeza. Ela abraçou Cândido e o irmão; abraçaram
a velha; Cândido resgatou as duas.
Havia na vizinhança uma pequena granja; a velha propôs a Cândido que ali se acomodassem todos,
enquanto esperavam melhor destino. Cunegundes não sabia que tinha ficado feia, pois ninguém lho
dissera: lembrou a Cândido a sua promessa, com um ar tão positivo, que o bondoso Cândido não se
atreveu a desenganá-la. Disse, pois, ao barão, que ia desposar a sua irmã.
- Jamais consentirei - disse o barão - tal baixeza da parte dela e tal insolência da tua parte; essa
infâmia nunca me será exprobrada: os filhos de minha irmã não poderiam entrar nos cabidos da
Alemanha. Não, a minha irmã só se casará com um barão do Império.
Cunegundes lançou-se-lhe aos pés e banhou-os de lágrimas; ele foi inflexível.
- Louco varrido - disse-lhe Cândido, - eu te salvei das galés, eu paguei o teu resgate, eu paguei o
resgate da tua irmã; ela aqui lavava pratos, ela está feia, tenho a bondade de desposá-la, e tu ainda queres
opor-te! Por minha vontade, eu te mataria de novo.
- Podes matar-me outra vez - disse o barão, - mas, enquanto eu for vivo, não desposarás minha irmã.

CAPÍTULO XXX
Conclusão
Cândido, no fundo do coração; não tinha o mínimo desejo de casar com Cunegundes. Mas a inaudita
insolência do barão o decidiu a efetuar o casamento, e Cunegundes instava tão vivamente que ele não
podia desdizer-se. Consultou Pangloss, Martinho e o fiel Cacambo. Pangloss apresentou um belo
memorial em que provava que o barão não tinha o mínimo direito sobre a sua irmã, e que esta podia,
segundo todas as leis do Império, desposar Cândido com a mão esquerda. Martinho propôs lançar o barão
ao mar. Cacambo opinou que deveriam devolvê-lo ao capitão levantino e às galés, enquanto não o
mandavam para Roma, ao vigário geral. A proposta foi considerada excelente; a velha aprovou-a; nada
disseram à sua irmã; a coisa foi efetuada com algum dinheiro, e tiveram o prazer de enganar um jesuíta e
punir o orgulho de um barão germânico.
Nada mais natural do que imaginar-se que, após tantos desastres, Cândido, casado com a sua amada, e
na companhia do filósofo Pangloss, do filósofo Martinho, do prudente Cacambo e da velha, e ainda com
os diamantes que trouxera da pátria dos antigos incas, levava agora a vida mais agradável deste mundo.
Mas foi tão explorado pelos judeus, que afinal só lhe restou a pequena granja. A mulher, cada dia mais
feia, ficara rabugenta e insuportável. A velha estava inválida e tornou-se ainda pior de gênio que
Cunegundes. Cacambo, que trabalhava na horta e ia vender legumes em Constantinopla, andava exausto
de trabalho e amaldiçoava o seu destino. Pangloss desesperava-se por não poder brilhar nalguma
universidade da Alemanha. Quanto a Martinho, achava-se firmemente persuadido de que se está
igualmente mal em toda parte, e encarava tudo com paciência. Cândido, Martinho e Pangloss discutiam
às vezes metafísica e moral. Muitas vezes avistavam, pelas janelas da granja, barcos carregados de
efêndis, de paxás, de cádis, a quem mandavam para o exílio em Lemmas, em Mitilene, em Erzerum.
Viam chegar outros cádis, outros paxis, outros efêndis, que tomavam o lugar dos depostos e eram, por
sua vez expulsos. Viam também cabeças muito bem empalhadas, para serem apresentadas ante a Sublime
Porta. Tais espetáculos faziam redobrar as dissertações. E, quando não discutiam, tamanho era o
aborrecimento, que a velha ousou dizer-lhes um dia:
- Desejaria saber qual é o pior: ser violada cem vezes por piratas negros, perder uma nádega, receber
açoites dos búlgaros, ser batido e enforcado num auto-de-fé, ser dissecado, remar numa galera,
experimentar enfim todas as misérias por que já passamos, ou ficar aqui sem. fazer nada?


Eis uma grande questão - disse Cândido.
Tais palavras provocaram novas discussões; e Martinho concluiu que o homem nascera ou para viver
nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio. Cândido não concordava, mas também não
afirmava coisa alguma. Pangloss confessava que sempre sofrera horrivelmente; mas, tendo uma vez
afirmado que tudo ia às mil maravilhas, continuava a sustentá-lo, mas não o cria.
Uma última coisa veio firmar a Martinho nos seus detestáveis princípios, fazer com que Cândido
hesitasse mais do que nunca, e embaraçar a Pangloss. É que viram chegar um dia à granja, e na mais
extrema miséria., a nossa Paquette e o Irmão Giroflée. Tinham em três tempos devorado as suas três mil
piastras; separaram-se, juntaram-se, brigaram, foram para a cadeia, fugiram, e afinal o Irmão Giroflée
tinha virado turco. Paquette continuava, por toda. parte, a exercer o seu ofício, que não lhe rendia mais
nada.
- Bem dizia eu - observou Martinho - que os presentes logo haviam de sumir-se e só os tornariam
mais miseráveis. Quanto a Cândido e Cacambo, abarrotaram-se de milhões de piastras, e não são mais
felizes do que o Irmão Glroflée e Paquette.
- Ai, minha pobre menina - dizia Pangloss a Paquette, - com que então o Destino te trouxe para junto
de nós? E não sabes que me custaste a ponta do nariz, um olho e uma orelha? Como estás agora! E como
é este mundo!
Essa nova aventura fê-los filosofar mais do que nunca. Havia na vizinhança um derviche muito
famoso, que passava pelo maior filósofo da Turquia; foram consultá-lo; Pangloss tomou a palavra:
- Mestre, vimos pedir-lhe que nos esclareça por que foi criado um animal tão estranho como o
homem.
- Em que te vens meter? - disse o derviche. - Acaso é isso da tua conta?
- Mas reverendo Mestre - aventurou Cândido, - é verdadeiramente terrível todo esse mal que há na
terra.
Que importa que haja mal ou bem' - tornou o derviche. - Quando Sua Alteza envia um navio ao Egito,
acaso se importa que os ratos de bordo se sintam bem ou não?
- Que fazer então? - perguntou Pangloss.
Calar-te - respondeu o derviche.
- Eu muito desejava - disse Pangloss - discutir um pouco com o reverendo Mestre acerca dos efeitos e
das causas, do melhor dos mundos possíveis, da origem do mal, da natureza da alma e da harmonia
preestabelecida.
O derviche, a estas palavras, bateu-lhe com a porta no nariz.
Durante essa conversação, espalhara-se a noticia de que acabavam de estrangular em Constantinopla
dois vizires do banco e o mufti, e que haviam empalado vários de seus amigos. Essa catástrofe causava
por toda parte enorme sensação durante algumas horas. Pangloss, Cândido e Martinho, de volta à granja,
encontraram um bom velho que tomava a fresca à sua porta, debaixo de um laranjal. Pangloss, que era
tão curioso como discutidor, perguntou-lhe como se chamava o mufti que acabavam de estrangular.
- Nada sei - respondeu o bom do velho, - eu nunca soube o nome de nenhum mufti nem de nenhum
vizir ignoro absolutamente a aventura de que me falam; presumo que em geral aqueles que se metem nos
negócios públicos acabam miseravelmente, e bem o merecem; mas nunca me informo do que se faz em
Constantinopla; contento-me em mandar vender por lá os frutos que cultivo.
Dito isto, convidou os estrangeiros a entrar: seus dois filhos e suas duas filhas lhes ofereceram
diversas espécies de refrescos que eles próprios fabricavam, kalmac temperado com casca de cidra, e
laranjas, limas, abacaxis, pistaches e um bom moca não misturado com o mau café de Batávia e das ilhas.
Após o que, as duas filhas daquele bom muçulmano perfumaram as barbas de Cândido, de Pangloss e de
Martinho.
- O senhor com certeza possui uma vasta e magnífica terra... - disse Cândido ao turco.
- Tenho apenas vinte jeiras, que cultivo com os meus filhos; o trabalho afasta de nós três grandes
males: o tédio, o vício e a necessidade.
De volta à sua granja, Cândido pôs-se a refletir profundamente sobre as palavras do turco. Disse a
Pangloss e a Martinho:
- Esse bom velho me parece ter conseguido um estado bastante preferível ao dos seis monarcas com
quem tivemos a honra de cear.
- As grandezas - disse Pangloss, são muito perigosas, conforme o testemunho de todos os filósofos:
pois, afinal, Eglon, rei dos moabitas, foi assassinado por Aod; Absalão, suspenso pelos cabelos, foi
varado com três dardos; o rei Nadab, filho de Jeroboão, foi morto por Baasa; o rei Ela, por Zambri;
Ochosias, por Jeú; Atalia, por Joiada; os reis Joaquim, Jecofias, Sedécias foram escravizados. Bem
sabem como morreram Creso, Astíages, Dario, Dionísio de Siracusa, Pirro, Perseu, Anibal, Jugurta,
Ariovisto, César, Pompeu, Nero, Otão, Vitélio, Domiciano, Ricardo II da Inglaterra, Eduardo II,
Henrique VI, Ricardo III, Maria Stuart, Carlos I, os três Henriques da França, o imperador Henrique IV.
Bem sabem que...,
- Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim.
- Tens razão - disse Pangloss, - pois quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut
operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.
- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho, - é a única maneira de tornar a vida suportável.
Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante.
Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A
velha costurava. Nem mesmo o Irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e
até se tornou honesto.
- Todos os acontecimentos - dizia às vezes Pangloss a Cândido - estão devidamente encadeados no
melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés
no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses
percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos
os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.
- Tudo isso está muito bem dito - respondeu Cândido, - mas devemos cultivar nosso jardim.

FIM

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