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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte 6]


E a bela, tendo percebido dois enormes diamantes nos dedos do seu jovem estrangeiro, pôs-se a
elogiá-los com uma boa fé tão natural que insensivelmente eles passaram dos dedos de Cândido para os
dedos da marquesa.
Cândido, ao voltar com o seu padre, sentiu remorsos de haver cometido uma infidelidade para com a
senhorita Cunegundes; o padre compartilhou das suas penas; só lhe cabia uma pequena parte das
cinqüenta mil libras perdidas ao jogo por Cândido e do valor dos brilhantes meio dados, meio
extorquidos, o seu intuito era aproveitar-se, o mais possível, das vantagens que lhe poderiam trazer as
suas relações com Cândido. Falou-lhe muito de Cunegundes; e Cândido lhe disse que pediria perdão a
ela da sua infidelidade, quando a encontrasse em Veneza.
O padre redobrava de polidez e atenções, e tomava um carinhoso interesse por tudo o que Cândido
dizia, por tudo o que ele fazia, por tudo o que queria fazer.
- Com que então têm os dois um encontro em Veneza?
- Sim, senhor padre: é preciso absolutamente que eu me vá encontrar com a senhorita Cunegundes.
Então, dominado pelo prazer de falar do que amava, contou, segundo o seu costume, uma parte das
aventuras que tivera com essa ilustre vestfaliana.
Suponho - disse o padre - que a senhorita Cunegundes tem muito espírito e deve escrever cartas
encantadoras...
- Nunca recebi nenhuma carta da sua parte - confessou Cândido. - Pois imagine que, tendo sido
expulso do castelo por causa dela, não me foi possível escrever-lhe; depois soube que ela morrera, em
seguida a encontrei, e perdi-a de novo, e ultimamente lhe enviei um próprio a duas mil e quinhentas
léguas daqui, e estou esperando alguma resposta.
O padre ouvia atentamente, e parecia um pouco pensativo. Logo se despediu dos dois estrangeiros,
depois de os abraçar com todo o carinho.
No dia seguinte, ao despertar, Cândido recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
Meu querido, já faz oito dias que estou enferma nesta cidade, e acabo de saber que aqui também te
achas. Voaria logo para os teus braços, se pudesse mover-me. Soube da tua passagem em Bordéus; ah
deixei o fiel Cacambo e a velha, que devem em seguida vir a meu encontro. O governador de Buenos
Aires tudo me tomou, mas ainda me resta o teu coração. Vem, a tua presença me devolverá a vida, ou me
fará morrer de alegria.

Essa encantadora e inesperada carta transportou Cândido ao mais inexprimível júbilo, ao passo que a
doença da sua querida Cunegundes o acabrunhava de dor. Dividido entre esses dois sentimentos, toma o
seu ouro e os seus diamantes e faz-se conduzir com Martinho ao hotel onde se achava a senhorita
Cunegundes. Entra, trêmulo de emoção, com o coração palpitante, a voz embargada; procura abrir as
cortinas do leito, pede que tragam luzes.
- Cuidado - lhe diz a criada, - que a luz a mata. E fecha de súbito as cortinas.
- Como estás, minha querida Cunegundes? - diz Cândido a soluçar. - Se não me podes ver, ao menos
fala comigo.
- Ela não pode falar - diz a criada. A dama estende então para fora do leito uma mãozinha
rechonchuda que Cândido umedece longamente com as suas lágrimas, e que enche depois de diamantes,
deixando ainda uma bolsa cheia de ouro sobre a cadeira.
Em meio desses transportes, chega um esbirro acompanhado do padre do Périgord e de uma escolta.
- Com que então são estes os dois estrangeiros suspeitos? - diz aquela autoridade. Imediatamente lhes
dá ordem de prisão e manda a escolta conduzi-los.
- No Eldorado não se tratava assim aos viajantes - disse Cândido.
- Eu me sinto mais maniqueu do que nunca - tornou Martinho.
- Mas para onde nos leva, senhor? - perguntou Cândido ao esbirro.
- Para um calabouço - respondeu a autoridade.
Tendo recuperado o seu sangue frio, Martinho declarou que a dama que se dizia Cunegundes era uma
tratante, que o senhor padre do Périgord era um tratante que abusara da inocência de Cândido, e o esbirro
um outro tratante de que seria fácil desembaraçar-se.
Esclarecido pelo seu conselho, e pouco desejoso de se expor aos trâmites da justiça, e, por outro lado,
sempre impaciente por encontrar a verdadeira Cunegundes, Cândido oferece ao esbirro três pequenos
diamantes de cores de três mil pistolas cada um.
- Ah, meu senhor! - lhe diz o homem do bastão de marfim, - ainda que o senhor tenha cometido todos
os crimes imagináveis, é o mais honrado homem do mundo. Três diamantes! Cada um de três mil
pistolas! Eu me deixaria matar pelo senhor, em vez de o levar para um calabouço. Estão prendendo todos
os estrangeiros, mas deixe a coisa comigo. Tenho um irmão em Dieppe, na Normandia; vou levá-lo até
lá; e se tiver algum diamante para lhe dar, ele zelará pelo senhor como eu próprio.
- E por que prendem todos os estrangeiros? - perguntou Cândido. O padre do Périgord tomou então a
palavra e disse:
- É porque um vagabundo de Atrebácia deu ouvido a tolices, o que bastou para levá-lo a um
parricídio, não como o de maio de 1610, mas como o de dezembro de 1594, e como vários outros
cometidos em outros anos e outros meses, por outros vagabundos que também ouviram tolices.
O beleguim explicou então do que se tratava.
Que monstros! - exclamou Cândido. - Há então tais horrores entre um povo que dança e que canta?!
Não poderei sair o mais depressa possível deste país, onde os macacos provocam os tigres? Vi ursos no
meu país; mas homens, só os vi no Eldorado. Em nome de Deus, senhor esbirro, leve-me a Veneza, onde
devo esperar a senhorita Cunegundes.
- Só o posso levar à Baixa-Normandia - diz o beleguim. Em seguida manda retirar-lhe os ferros, diz
que se enganara, despacha a escolta, e conduz Cândido e Martinho a Dieppe, onde os entrega ao irmão.
Estava surto no porto um pequeno navio holandês. O normando que, por obra e graça de três outros
diamantes, se tornara o mais serviçal dos homens, embarca a Cândido e seu pessoal no navio que ia
zarpar para Portsmouth, na Inglaterra. Não era a rota de Veneza; mas Cândido julgava ter-se livrado do
inferno, e contava partir para o seu verdadeiro destino na primeira ocasião que se apresentasse.
20 de Out
CAPÍTULO XXIII
Do que viram Cândido e Martinho na costa da Inglaterra.
- Ai, Pangloss, Pangloss! Ai, Martinho, Martinho! Ai, minha querida Cunegundes! Que mundo é este?
- exclamava Cândido a bordo do navio holandês.
- Alguma coisa de louco e abominável - retrucava Martinho.
- O senhor que conhece a Inglaterra, será que por lá se é tão louco como na França?
- É outra espécie de loucura - asseverou Martinho. - Bem sabe que essas duas nações estão em guerra
por algumas braças de neve no Canadá, e que despendem nessa linda guerra muito mais do que vale todo
o Canadá. Quanto a dizer precisamente se há mais loucos varridos em um país do que no outro, é coisa
que as minhas fracas luzes não me permitem. Sei apenas que as pessoas a quem vamos ver são em geral
muito atrabiliárias.
Assim conversando, chegaram a Portsmouth; grande multidão cobria a margem, olhando atentamente
para um homem corpulento, que se achava de joelhos, com os olhos vendados, no convés de um dos
navios da frota; quatro soldados, alinhados à sua frente, meteram-lhe cada um três balas no crânio, com o
ar mais tranqüilo deste mundo; feito o que, todos se retiraram muito satisfeitos.
- Que significa tudo isso? - disse Cândido. - E que demônio exerce por toda parte o seu império?
Perguntou então quem era aquele homem que acabavam de matar com toda a cerimônia.
- É um almirante - responderam-lhe.
- E por que matar esse almirante?
- É - disseram-lhe - porque não matou bastante gente; travou combate com um almirante francês, e
acharam que não se mantivera suficientemente perto deste último.
- Mas - objetou Cândido - o almirante francês estava tão longe do almirante inglês como este daquele.
- Isso é incontestável - replicaram, - mas neste país é bom matar de vez em quando um almirante para
estimular os outros.
Cândido ficou tão atordoado e chocado com o que via e ouvia, que nem ao menos quis desembarcar, e
fechou contrato com o capitão holandês (ainda que este devesse roubá-lo como o de Surinam para que o
conduzisse sem demora a Veneza.
O patrão fez os preparativos em dois dias. Costearam a França; passaram à vista de Lisboa, e Cândido
estremeceu. Entraram no estreito e no Mediterrâneo.
- Louvado seja Deus! - disse Cândido, abraçando Martinho; é aqui que tornarei a ver a bela
Cunegundes. Tenho tanta confiança em Cacambo como em mim mesmo. Tudo está bem, tudo vai bem,
tudo está o melhor possível.

CAPÍTULO XXIV
De Paquette e do Irmão Giroflée
Logo que chegou a Veneza, mandou procurar Cacambo em todas as tavernas, em todos os cafés, em
todas as casas de mulheres alegres, e não o encontrou. Diariamente mandava gente sua ao encontro de
todos os barcos e de todos os navios que chegavam: nem sinal de Cacambo.
- Como! - dizia ele a Martinho, - tive tempo de ir de Surinam a Bordéus, de Bordéus a Paris, de Paris
a Dieppe, de Dieppe a Portsmouth, de costear Portugal e Espanha, de atravessar todo o Mediterrâneo, de
passar alguns meses em Veneza, e a bela Cunegundes ainda não chegou! Só encontrei, em vez dela, uma
aventureira e um padre do Perigord! Decerto Cunegundes morreu, e agora só me resta morrer também.
Ah! por que não fiquei no Paraíso do Eldorado, em vez de voltar para esta maldita Europa? Tens razão,
meu caro Martinho: tudo, neste mundo, nada mais é que ilusão e calamidade!
Caiu numa negra melancolia, e não tomou parte na ópera alla moda nem nos outros divertimentos do
carnaval; nenhuma dama lhe causou a mínima tentação.
- É muita ingenuidade da sua parte - lhe disse Martinho - imaginar que um criado mestiço, com cinco
ou seis milhões no bolso, lhe vá procurar a sua amante no fim do mundo para lha entregar em Veneza.
Qual nada! Ficará com ela, se a encontrar. Se não a encontrar, arranjará outra; aconselho-o que esqueça o
seu criado Cacambo e a sua amante Cunegundes.
Martinho não era nada consolador. A melancolia de Cândido aumentou, e Martinho não cessava de
lhe provar que havia pouca virtude e pouca felicidade na face da terra, exceto talvez no Eldorado, onde
ninguém podia ir.
Enquanto discutia essa importante matéria e esperava Cunegundes, Cândido avistou um jovem teatino
na praça de S. Marco, de braço dado com uma rapariga. O teatino era cheio de viço, rechonchudo e
vigoroso; tinha os olhos brilhantes, o ar seguro, o porte altivo. A rapariga era bastante linda e cantava;
olhava amorosamente para o seu teatino e de vez em quando lhe beliscava as polpudas bochechas.
- Ao menos me há de confessar - disse Cândido a Martinho - que esses dois são felizes. Até agora, em
toda a terra habitável, só encontrei infelizes, exceto no Eldorado; mas, quanto a essa rapariga e a esse
teatino, aposto que são criaturas venturosas.

- Aposto que não - disse Martinho.
- É só convidá-los para cear - respondeu Cândido - e verá se não tenho razão.
Em seguida os aborda, cumprimenta-os e convida-os para irem a seu hotel comer talharim, perdizes
da Lombardia, ovas de esturjão e beber vinho de Montepulciano, Lacryma-christi, Chipre e Samos. A
rapariga enrubesceu, o teatino aceitou o convite, e ela acompanhou, fitando Cândido com um olhar de
surpresa e confusão, empanado de algumas lágrimas. Mal entrou no quarto de Cândido, lhe disse:
- Como! Então o senhor Cândido não conhece mais a Paquette?!
A estas palavras, Cândido, que até aquele momento não lhe dera atenção, pois só pensava em
Cunegundes, exclamou:
- Ai. minha pobre menina, foi então você quem deixou o doutor Pangloss no belo estado em que o
encontrei?
- Ai de mim, fui eu mesma, e vejo que o senhor está a par de tudo. Soube das terríveis desgraças
acontecidas a toda a casa da senhora baronesa e à bela Cunegundes. Juro-lhe que o meu destino não foi
menos triste. Eu era muito inocente quando o senhor me conheceu. Um franciscano meu confessor
seduziu-me facilmente. As conseqüências foram terríveis; fui obrigada a sair do castelo algum tempo
depois que o senhor barão o expulsou a pontapés no traseiro. Se um famoso médico não se tivesse
apiedado de mim, estava morta. Por gratidão, fui algum tempo sua amante. Sua mulher, que era muito
ciumenta, batia-me impiedosamente todos os dias; era uma verdadeira fúria. Esse médico era o homem
mais frio do mundo, e eu a mais infeliz de todas as criaturas, por ser batida a toda hora por causa de um
homem a quem não amava. Bem sabe o senhor como é perigoso para uma mulher rabugenta ser esposa
de um médico. Este; farto das cenas da mulher, deu-lhe um dia, para curá-la de um resfriado, um remédio
tão eficaz que ela morreu dali a duas horas em convulsões terríveis. Os parentes da falecida processaram
o viúvo; este fugiu e eu fui para a cadeia. Minha inocência de nada me teria servido se eu não fosse um
pouco bonita, o juiz absolveu-me sob a condição de que sucederia ao médico. Fui logo suplantada por
uma rival, escorraçada sem recompensa, e obrigada a continuar nesse ofício abominável que parece tão
divertido aos homens e que para nós não passa de um abismo de misérias. Vim exercer a profissão em
Veneza. Ah! se o senhor pudesse imaginar o que é ser obrigada a acariciar indiferentemente um velho
negociante, um advogado, um monge, um gondoleiro, um frade; ser exposta a todos os insultos, a todas
as afrontas públicas; ser muitas vezes obrigada a pedir de empréstimo uma saia para que venha levantá-la
um homem asqueroso; ver-se roubada por um do que se ganhou com outro; ser extorquida por oficiais de
justiça, e não ter em perspectiva mais que uma velhice horrível, um hospital e um monturo, - logo
haveria de concluir que eu sou uma das criaturas mais infelizes do mundo.
Paquette abria assim o seu coração ao bom Cândido, em um gabinete reservado, na presença de
Martinho, que dizia ao primeiro:
- Bem vê que já ganhei metade da aposta.
O irmão Giroflée ficara no refeitório e bebia um gole enquanto esperava a ceia.
- Mas - disse Cândido a Paquette - estavas com um ar tão alegre, tão contente, quando te encontrei,
cantavas e acariciavas o teatino com um ar tão natural, que na verdade me parecias tão feliz quanto te
julgas desgraçada.
- Ah! senhor! - retrucou Paquette. - Esta é mais uma das misérias do ofício. Fui ontem roubada e
batida por um oficial e devo hoje aparentar bom humor para agradar a um monge.
Cândido não quis ouvir mais nada; confessou que Martinho estava com a razão. Sentaram-se à mesa
com Paquette e o teatino, a ceia foi bastante divertida, e afinal a conversa se tornou íntima.
- Meu padre - disse Cândido, - o senhor me parece gozar de um destino que deve causar inveja a
todos; as rosas da saúde brilham em suas faces, o seu ar anuncia felicidade; tem uma linda rapariga para
divertir-se, e parece muito satisfeito com a sua condição de teatino.
- Palavra, senhor - disse o Irmão Giroflée, - eu desejaria que todos os teatinos estivessem no fundo do
mar. Cem vezes fui tentado a atear fogo ao convento, e fazer-me turco. Meus pais me obrigaram, na
idade de quinze anos, a tomar este detestado hábito, para deixar maior fortuna a um maldito primogênito
que Deus confunda! A inveja, a discórdia, o rancor, habitam no convento. E verdade que preguei alguns
maus sermões que me valeram algum dinheiro, de que o prior me rouba metade: o resto me serve para
sustentar raparigas. Mas, quando entro à noite no mosteiro, tenho vontade de quebrar a cabeça contra as
paredes do dormitório; e todos o. meus confrades estão no mesmo caso.
E Martinho, voltando-se para Cândido, com o seu sangue frio ordinário:
- E então, não ganhei a aposta inteira?
Cândido deu duas mil piastras a Paquette e mil piastras ao Irmão Giroflée.
- Garanto-lhe - disse ele a Martinho - que com isto serão felizes.
- Duvido muito - retrucou Martinho. - Com essas piastras, talvez consiga torná-los ainda mais
infelizes.
- Será o que puder ser - disse Cândido. - Mas uma coisa me consola: vejo que muitas vezes a gente
encontra pessoas que supunha perdidas para sempre. Tendo encontrado o meu carneiro vermelho e
Paquette, é bem possível que encontre também Cunegundes.
- Desejo - disse Martinho - que um dia ela o faça feliz; mas duvido muito.
- Como o senhor é duro - queixou-se Cândido.


- É que eu tenho vivido - retrucou Martinho.
- Mas olhe esses gondoleiros - tornou Cândido. - Não vivem continuamente a cantar?
- É que não os vê no seu lar, com suas mulheres e seus pirralhos - disse Martinho. - O doge tem seus
cuidados, os gondoleiros têm os seus. Verdade é que, no total, a sorte de um gondoleiro é preferível à de
um doge; mas julgo tão medíocre a diferença, que não vale a pena ser examinada.
- Fala-se - disse Cândido - no senador Pococurante, que mora nesse belo palácio junto ao Brenta e que
recebe muito bem os estrangeiros. Dizem que é um homem que nunca teve contrariedades.
- Desejaria ver um espécime tão raro - disse Martinho.
Cândido em seguida mandou pedir permissão ao senhor Pococurante, para ir visitá-lo no dia seguinte.

CAPÍTULO XXV
Da visita que fizeram ao senhor Pococurante, nobre veneziano.
Cândido e Martinho chegaram de gôndola ao palácio do nobre Pococurante. Os jardins eram bem
desenhados, e ornado, de belas estátuas de mármore; o palácio de bela arquitetura. O dono da casa,
homem dos seus sessenta anos, muito rico, recebeu polidamente os dois curiosos, mas com pouca
solicitude, o que desconcertou a Cândido e não desagradou a Martinho. Duas lindas criadinhas, muito
asseadas, serviram chocolate bem espumado. Cândido não pode deixar de lhes louvar a beleza e
amabilidade.
- São excelentes criaturas - disse o senador Pococurante. - Levo-as às vezes para o meu leito, pois já
estou farto das damas da cidade, das suas mesquinhezas, do seu orgulho, das suas tolices, e dos sonetos
que é preciso fazer ou encomendar para elas. Mas, afinal de contas, essas duas raparigas começam a
aborrecer-me.
Quando passeava por uma comprida galeria, após o almoço, Cândido ficou extasiado com a beleza
dos quadros. Perguntou de que mestre eram os dois primeiros.
- São de Rafael - disse o senador. - Comprei-os bastante caro, há alguns anos, por pura vaidade.
Dizem que é o que existe de mais belo na Itália, mas absolutamente não me agradam: a cor é muito
escura; as figuras são pouco cheias e não têm o suficiente realce; os panejamentos não se parecem em
nada com um tecido. Numa palavra, por mais que digam, não vejo nisso uma verdadeira imitação da
natureza. Só gostarei de um quadro quando me parecer estar vendo a própria natureza: e dessa espécie,
não os há. Possuo muitos quadros; mas não olho para nenhum.
Pococurante, enquanto não chegava a hora do jantar, encomendou um concerto. Cândido achou a
música deliciosa.
- Esse barulho - disse Pococurante - pode divertir durante uma meia hora; mas, se dura mais tempo,
fatiga a todo o mundo, embora ninguém se atreva a confessá-lo. A música moderna não é mais do que a
arte de executar coisas difíceis, e o que não passa de difícil acaba não agradando. Preferiria a ópera, se
não tivessem encontrado o segredo de fazer dela um monstro que me revolta. Veja-as quem quiser, essas
péssimas tragédias em música, onde as cenas só são conduzidas para impingir, muito fora de propósito,
duas ou três árias ridículas que põem em evidência a garganta de uma atriz; delicie-se quem quiser, ou
quem puder, ao ver um castrado cantarolar o papel de César ou de Catão ou pavonear-se
desajeitadamente no palco; quanto a mim, faz muito que renunciei a essas pequices, que constituem hoje
a glória da Itália, e que os soberanos pagam tão caro.
Cândido discutiu um pouco, mas com discrição. Martinho mostrou-se inteiramente de acordo com o
senador.
Sentaram-se à mesa e, após um excelente jantar, foram para a biblioteca. Cândido, ao ver um Homero
magnificamente encadernado, elogiou o ilustríssimo quanto ao seu bom gosto.
- Eis - disse ele - um livro que fazia as delícias do grande Pangloss, o maior filósofo da Alemanha.
- Pois não faz as minhas - disse friamente Pococurante. - Fizeram-me acreditar outrora que eu sentia
prazer em lê-lo; mas essa repetição contínua de combates que todos se assemelham, esses deuses que
agem sempre para nada fazer de decisivo, essa Helena que é o motivo da guerra e que mal entra na peça;
essa Tróia que cercam e não tomam, tudo isso me causava um mortal aborrecimento. Perguntei a eruditos
se eles se aborreciam tanto quanto eu nessa leitura. Os que eram sinceros confessaram-me que o livro
lhes tombava das mãos, mas que sempre era preciso tê-lo na biblioteca, como um monumento da
Antigüidade, e como essas moedas enferrujadas que não podem circular.
- Vossa Excelência pensa o mesmo de Virgílio? - perguntou Cândido.
- Convenho que o segundo, o quarto e o sexto livro da sua Eneida são excelentes; mas quanto ao seu
pio Enéias, e o forte Cloanto, e o amigo Achates, e o pequeno Ascânio, e o imbecil rei Latinus, e a
burguesa Amata, e a insípida Lavínia, não creio que haja nada de mais frio e desagradável Prefiro o
Tasso e as histórias para dormir em pé, de Ariosto.
- É-me permitido perguntar-lhe, Senhor, se não sente um grande prazer em ler Horácio?

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