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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte 5]


A sessão durou até as quatro da madrugada. Cândido, escutando todas aquelas aventuras, lembrava-se
do que lhe dissera a velha na viagem para Buenos Aires, e da aposta que fizera, de que não havia
ninguém a bordo a quem não houvessem acontecido as maiores desgraças. "Esse Pangloss - pensava ele -
deveria ficar muito embaraçado para demonstrar o seu sistema. Queria que ele estivesse aqui.
Certamente, se tudo vai bem, é no Eldorado, e não no resto da terra". Decidiu-se afinal per um pobre
sábio que trabalhara dez anos para os livreiros de Amsterdã. Julgou que não havia ofício no mundo de
que se pudesse ficar mais desgostado.
O referido sábio, que era aliás um excelente homem, for a roubado pela mulher, batido pelo filho e
abandonado pela filha, que se fizera raptar por um português. Acabava de ser privado de um modesto
emprego de que vivia, e os pregadores de Surinam o perseguiam porque o tomavam por sociniano.
Cumpre confessar que os outros eram pelo menos tão infelizes quanto ele; mas Cândido esperava que o
sábio o distraísse durante a viagem. Os rivais acharam que Cândido lhes fazia uma grande injustiça, mas
este os sossegou, dando cem piastras a cada um.

CAPÍTULO XX
Do que aconteceu a Cândido e Martinho durante a viagem.
O velho sábio, que se chamava Martinho, embarcou pois para Bordéus em companhia de Cândido.
Um e outro já tinham muito visto e sofrido; e, mesmo que o navio zarpasse de Surinam para o Japão,
pelo cabo da Boa Esperança, teriam eles com que discorrer sobre o mal moral e o mal físico durante toda
a viagem.
Cândido, no entanto, levava grande vantagem sobre Martinho: esperava rever a senhorita
Cunegundes, e Martinho não esperava coisa alguma; de mais a mais, possuía ouro e diamantes; e,
embora houvesse perdido cem grandes carneiros vermelhos carregados dos maiores tesouros da terra,
embora continuasse a doer-lhe a velhacaria do capitão holandês, quando pensava no que lhe restava nos
bolsos, e quando falava de Cunegundes, sobretudo ao fim do jantar, sentia-se então inclinado para o
sistema de Pangloss.
- Mas e o senhor - perguntou ele a Martinho, - que pensa de tudo isso? Qual é a sua idéia sobre o mal
moral e o mal físico?

- Senhor - respondeu Martinho, - os sacerdotes me acusaram de sociniano; mas a verdade é que eu sou
maniqueu.
- O senhor está troçando - observou Cândido, - pois não existem mais maniqueus no mundo.
- Existo eu - protestou Martinho, - não sei o que fazer, mas não posso pensar de outra maneira.
- O senhor deve estar com o diabo no corpo - disse Cândido.
- Tanto se mete ele nas coisas deste mundo - respondeu Martinho, - que bem poderia estar no meu
corpo, como em toda parte aliás. Mas confesso-lhe que, lançando o olhar sobre este globo, ou antes,
sobre este glóbulo, penso que Deus o abandonou a algum ser maléfico; excetuo contudo o Eldorado.
Nunca vi cidade que não desejasse a ruína da cidade vizinha, nem família que não quisesse exterminar
alguma outra família. Por toda parte, os fracos abominam os poderosos perante os quais rastejam, e os
poderosos os tratam como rebanhos de que vendem a lã e a carne. Um milhão de assassinos
arregimentados, correndo de um a outro extremo da Europa, exercem o morticínio e a pilhagem com toda
a disciplina, porque não têm ofício mais honrado; e, nas cidades que parecem desfrutar da paz e onde
florescem as artes, os homens são devorados de mais inveja, de mais cuidados e inquietações do que
experimenta de flagelos uma cidade cercada pelo inimigo. Os pesares secretos são ainda mais cruéis do
que as misérias públicas. Numa palavra, tanto vi e tanto sofri, que sou maniqueu.
- No entanto, algo existe de bom - replicava Cândido.
- Pode ser - dizia Martinho, - mas não o conheço. Em meio a essa disputa, ouve-se um ruído de
canhão. O fragor redobra de instante a instante. Cada qual empunha a sua luneta. Avistam-se dois navios
que combatiam a uma distância de cerca de três milhas; o vento os arrastou para tão próximo do navio
francês, que todos tiveram o prazer de assistir comodamente ao combate. Afinal um dos navios mandou
ao outro um tiro tão baixo e tão certeiro, que o pôs a pique. Cândido e Martinho avistaram nitidamente
uma centena de homens sobre o convés do navio que afundava; erguiam todos as mãos ao céu e
lançavam terríveis clamores; em um momento, tudo desapareceu.
- Bem! Eis como se tratam os homens uns aos outros - disse Martinho.
- É bem verdade - assentiu Cândido - que há nisso alguma coisa de diabólico.
Enquanto assim falava, percebeu um vulto de um vermelho vivo, que nadava perto do navio.
Baixaram uma chalupa para ver o que seria: era um de seus carneiros. Maior foi a alegra de Cândido ao
encontrar aquele carneiro do que a sua aflição ao perder cem deles com os diamantes do Eldorado.
O capitão francês viu logo que o capitão do navio vencedor era espanhol, e o do navio afundado um
pirata holandês, exatamente o mesmo que roubara a Cândido. As riquezas imensas de que se apoderara o
celerado foram sepultadas com ele no fundo do mar, e, do que vinha a bordo, só se salvou um carneiro.

- Bem vê - disse Cândido a Martinho - que o crime é às vezes punido; esse patife do capitão holandês
teve a sorte que merecia.
- Sim - disse Martinho, - mas era preciso que os passageiros que estavam a bordo também
perecessem? Deus puniu esse patife, o diabo afogou os outros.
Entrementes, o navio francês e o espanhol continuaram viagem, e Cândido continuou suas
conversações com Martinho. Discutiram quinze dias seguidos, e, ao fim de quinze dias, estavam tão
adiantados como no primeiro. Mas afinal falavam, trocavam idéias, consolavam-se Cândido acariciava o
seu carneiro. "Já que eu te encontrei - dizia ele, -, bem poderei encontrar Cunegundes".

CAPÍTULO XXI
De como filosofam Cândido e Martinho ao avistar a costa francesa.
Avistaram enfim o litoral da França.
- Nunca esteve na França? - indagou Cândido.
- Sim, percorri várias províncias. Algumas há de que metade dos habitantes são loucos, algumas onde
são demasiado espertos, outras onde são geralmente pacíficos e simplórios, outras onde afetam espírito;
e, em todas, a principal ocupação é o amor, a segunda a maledicência, e a terceira dizer tolices.
-.Mas já esteve em Paris, senhor Martinho?
- Sim, já estive; Paris possui todas essas espécies; é um caos, uma aglomeração onde todos buscam o
prazer e onde quase ninguém o encontra, pelo que me pareceu. Aliás, demorei-me pouco em Paris; na
feira de Saint-Germain roubaram-me tudo o que tinha; eu próprio fui tomado por ladrão e estive preso
durante oito dias; depois me fiz revisor para ganhar com que voltar a pé para a Holanda. Conheci a
canalha escrevente, a canalha cabalante e a canalha convulsionária. Dizem que há gente muito polida em
Paris; quero crer que assim seja.
- Quanto a mim - disse Cândido, - não tenho a mínima curiosidade de conhecer a França. Bem
compreende o senhor que, depois que se passou um mês no Eldorado, a gente só se preocupa de ver a
senhorita Cunegundes; vou esperá-la em Veneza; atingirei a Itália através da França. O senhor não me
acompanha?
- Com muito gosto - respondeu Martinho. - Dizem que Veneza só é boa para os nobres venezianos,
mas que no entanto recebem muito bem aos estrangeiros que têm bastante dinheiro. Não o tenho, o
senhor o tem, seguí-lo-ei por toda a parte.
- A propósito - disse Cândido, - acha que a terra foi primitivamente um mar como se afirma nesse
cartapácio que pertence ao capitão?
- Não creio absolutamente nisso - respondeu Martinho, - nem tampouco em nenhuma dessas fantasias
que nos têm impingido ultimamente.
- Mas para que fim foi então formado este mundo? - indagou Cândido.
- Para nos enraivecer - respondeu Martinho.
- Não se admira o senhor do caso que lhe contei, daquelas raparigas do país dos orelhões, que
amavam a uns macacos?
- Absolutamente. Nada vejo de estranho em tal paixão. Vi tantas coisas extraordinárias, que para mim
não há mais nada de extraordinário.
- Acredita - perguntou Cândido - que os homens se hajam sempre massacrado, como o fazem hoje? -
Que sempre tenham sido mentirosos, trapaceiros, pérfidos, ingratos, ladrões, fracos, inconstantes,
covardes, invejosos, glutões, bêbedos, avarentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, debochados,
fanáticos, hipócritas e tolos?
- E o senhor acredita - indagou por sua vez Martinho - que os gaviões tenham sempre devorado os
pombos quando se lhes apresentava ocasião?
- Sim, certamente.
- E então - tornou Martinho, - se os gaviões sempre tiveram o mesmo caráter, como quer que os
homens hajam mudado o seu?
- Oh! há alguma diferença - objetou Cândido - pois o livre arbítrio...
Enquanto assim filosofavam, chegaram a Bordéus.

CAPÍTULO XXII
Do que aconteceu na França a Cândido e Martinho.
Cândido só se demorou em Bordéus o necessário para vender algum cascalho do Eldorado e adquirir
uma boa liteira de dois lugares, pois não mais podia passar sem o seu filósofo Martinho. Sentiu apenas
separar-se de seu carneiro, que doou à Academia de Ciências de Bordéus, a qual propôs para tese do
concurso daquele ano a explicação do estranho pelo do referido animal; e o prêmio foi adjudicado a um
sábio do Norte, que demonstrou por A mais B, menos C, dividido por Z, que o carneiro devia ser
vermelho e morrer gafento.
Ora, sucedeu que todos os viajantes que Cândido encontrava nas estalagens do caminho lhe diziam:
"Nós vamos a Paris". Pelo que também lhe deu vontade de ir a essa capital: não seria afastar-se muito do
caminho de Veneza.
Entrou pelo Faubourg Saint-Marceau e julgou achar-se na pior aldeia da Vestfália.
Mal chegou ao seu albergue, foi Cândido acometido de uma leve indisposição proveniente da fadiga.
Como trazia ao dedo um enorme diamante, e como haviam notado na sua bagagem um cofre
extraordinariamente pesado, teve em seguida junto a si dois médicos que não mandara chamar, alguns
amigos íntimos que não o deixavam, e duas devotas que lhe preparavam os caldos. "Lembro-me - dizia
Martinho de que também adoeci em Paris durante a minha primeira viagem; era muito pobre: de modo
que não tive nem amigos, nem devotas, nem médicos, e sarei."
No entanto, a força de remédios e sangrias, a doença de Cândido se tornou grave. Um padre da
freguesia veio com todo o jeito pedir-lhe uma promissória pagável ao portador no outro mundo. Cândido
não quis saber de conversas. As devotas lhe garantiram que era uma nova moda. Cândido respondeu que
não era homem de modas. Martinho quis atirar o padre pela janela. O clérigo jurou que não enterrariam
Cândido. Martinho jurou que enterraria o clérigo se este continuasse a importuná-los. A disputa
acalorou-se; Martinho pegou-o pelos ombros e escorraçou-o rudemente; o que causou enorme escândalo,
tendo-se lavrado um auto.


Cândido sarou e, durante a convalescença, nunca lhe faltou companhia à mesa. Jogavam à grande.
Cândido muito se espantava de que nunca lhe viesse um ás; Martinho não se espantava nada.
Entre os que lhe faziam as honras da cidade, havia um padre do Périgord, um desses sujeitinhos
expeditos, sempre alerta, sempre serviçais, descarados, aduladores, complacentes, que espiam a chegada
dos forasteiros, contam-lhes o escândalo do dia e oferecem-lhes prazeres de todos os preços. Este levou
primeiro Cândido e Martinho ao teatro. Cândido ficou colocado junto de alguns belos espíritos. O que
não o impediu de chorar nas cenas perfeitamente representadas. Um dos críticos que estavam a seu lado
lhe disse num entreato:
- O senhor faz muito mal em chorar: essa atriz é péssima; o ator que contracena com ela ainda é pior;
a peça é pior que os atores; o autor não sabe uma palavra de árabe, e no entanto a cena se passa na
Arábia; e, de resto, é um homem que não acredita nas idéias inatas: amanhã lhe trarei vinte brochuras
contra ele.
- Quantas peças de teatro há. em França? - perguntou Cândido ao padre.
- Cinco ou seis mil.
- É muito - disse Cândido. - E quantas peças boas existem entre estas?
- Quinze ou dezesseis - replicou o outro.
- É muito - disse Martinho.
Cândido muito se agradou de uma atriz que fazia o papel de rainha Elizabeth em uma tragédia
bastante insulsa que se representa algumas vezes.
- Aprecio muito essa atriz - disse ele a Martinho. - Parece-se com a senhorita Cunegundes. Gostaria de
ir cumprimentá-la.
O padre ofereceu-se para fazer as apresentações. Cândido, educado na Alemanha, perguntou qual era
a etiqueta e como se tratavam na França as rainhas da Inglaterra.
- Cumpre distinguir - disse o padre. - Na província, levam-nas à estalagem; em Paris, respeitam-nas
quando são belas, e lançam-nas ao lixo depois de mortas.
- Rainhas no lixo! - exclamou Cândido.
- É verdade - confirmou Martinho. - o senhor padre tem razão: estava eu em Paris quando
Mademoiselle Monime passou, como se diz, desta para melhor; recusaram-lhe o que chamam, aqui, as
honras da sepultura, isto é, de apodrecer com todos os mendigos do bairro em um mau cemitério, foi
enterrada, inteiramente só, ao fim da. rua de Borgonha; o que lhe deve causar uma pena extrema, pois
pensava muito nobremente.
- Isto não é nada polido - observou Cândido.
- Que mais quer? - retrucou Martinho. - Esta gente é assim. Imagine todas as contradições, todas as
incompatibilidades possíveis, que as há de encontrar no governo, nos tribunais, nas igrejas, nos teatros
desta divertida nação.
- E verdade que riem sempre em Paris? - indagou Cândido.
- Sim - disse o padre, - mas riem de raiva; pois aqui se queixam de tudo às gargalhadas; até praticam,
a rir, as mais detestáveis ações.
- E quem é - perguntou Cândido - esse animal que arrasava de tal maneira a peça que tanto me fez
chorar e os atores que me causaram tanto prazer?
- É um pobre diabo - respondeu o padre - que ganha a vida falando mal de todas as peças e de todos os
livros; odeia a todos os que triunfam, como os eunucos odeiam os que estão no gozo de seus atributos: é
uma dessas serpentes da literatura que se alimentam de lama e veneno: é um foliculário.
- A que chama o senhor de foliculário?
- É - respondeu o padre - um escrevinhador de panfletos, um Fréror.
Era assim que Cândido, Martinho e o padre conversavam na escadaria do teatro, vendo desfilar o
público.
- Embora esteja ansioso por tornar a ver a senhorita Cunegundes - disse Cândido, - gostaria de cear
com a senhorita Clairon, pois ela me pareceu admirável.
O padre não era homem que se aproximasse de Mademoiselle Clairon, que tinha somente boas
relações.
- Ela está comprometida para esta noite - disse ele, - mas terei a honra de levá-lo ao salão de uma
dama de qualidade, onde o senhor ficará conhecendo Paris como se aqui passasse quatro anos.
Cândido, que era naturalmente curioso, deixou-se conduzir à casa da dama, no Faubourg
Saint-Honoré. Ali se achavam entretidos num voltarete doze míseros parceiros, cada qual segurando um
pequeno leque de cartas, desparelho registo dos seus infortúnios. Reinava profundo silêncio;
estampava-se a palidez na face dos jogadores, e a inquietação na do banqueiro. A dona da casa, sentada
junto ao implacável banqueiro, observava com olhos de lince todas as manobras com que os jogadores
marcavam as cartas. Obrigava-os a desmarcarem, com a sua fiscalização severa mas polida, e sem nunca
zangar-se, por medo de perder os clientes. A dama fazia-se tratar por marquesa de Parolignac. Sua filha,
de quinze anos, também jogava, e denunciava, com um piscar de olhos, as trapaças daquela pobre gente,
que procurava assim compensar as crueldades da sorte.
O padre, Cândido e Martinho entraram no salão; ninguém se ergueu, não os cumprimentou nem os
olhou, tão absortos estavam no jogo.
- A senhora baronesa de Thunder-ten-tronckh era mais polida - observou Cândido.
O padre achegou-se ao ouvido da marquesa, que se ergueu a meio, honrando a Cândido com um
gracioso sorriso e a Martinho com um nobre aceno de cabeça. Mandou dar uma cadeira e um baralho a
Cândido, que perdeu cinqüenta mil francos em duas paradas; depois do que, cearam alegremente, e todos
se admiravam de que Cândido não se houvesse impressionado com as suas perdas; os lacaios
murmuravam entre si, na sua linguagem de lacaios; "Deve ser algum milorde inglês".

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