Total de visualizações de página

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Cândidio - Voltaire [parte 4]

- Ah! - disse Cândido, - lembro-me de ter ouvido a Pangloss que outrora aconteciam tais acidentes, e
que tal mescla produzira egipãs, faunos, sátiros; que várias personagens da antiguidade os haviam visto;
mas eu tomava tudo isso por fábulas.
- Agora deve estar convencido de que é verdade - disse Cacambo, - e bem vê como se comportam
nesse ponto as pessoas que não receberam certa educação. O que eu temo é que essas damas nos metam
em maus lençóis.
Essas reflexões induziram Cândido a deixar o prado e meter-se no bosque, onde jantaram. E, depois
de terem amaldiçoado o inquisidor de Portugal, o governador de Buenos Aires e o barão, adormeceram
sobre a relva. Ao despertar, sentiram que não podiam mover-se; era que, durante a noite, os orelhões,
habitantes da região, a quem as duas damas os denunciaram, os haviam amarrado com cipós. Estavam
cercados de uns cinqüenta orelhões nus, armados de flechas, maças e machados de pedra. Uns punham
ao fogo uma grande caldeira; outros preparavam espetos. E todos gritavam:
- É um jesuíta, é um jesuíta! Estamos vingados! Agora sim! Vamos comer jesuíta! Vamos comer
jesuíta!
- Bem que eu lhe dizia, patrão - exclamou tristemente Cacambo, - que aquelas duas nos iam pregar
uma boa!
Cândido, atentando na caldeira e nos espetos, lamentou-se:
Com toda a certeza vamos ser assados ou fervidos. Ah! o que não diria Mestre Pangloss, se visse
como é a pura natureza! Tudo está bem; seja, mas confesso que é muito cruel perder a senhorita
Cunegundes e ser assado ao espeto pelos orelhões.
Cacambo, esse, nunca perdia a cabeça.
- Não desespere de nada - disse ele ao desolado Cândido. - Entendo um pouco o jargão dessa gente;
vou falar-lhes.
- Não te esqueças - recomendou Cândido - de lhes significar o quanto é desumano cozinhar pessoas, e
como esse procedimento é pouco cristão.

- Senhores - disse-lhes Cacambo, - pretendeis comer hoje um jesuíta: muito bem; nada mais justo do
que tratar assim aos inimigos. O direito natural nos autoriza, com efeito, a matar o próximo, e é assim
que se faz em toda a terra. Se não usamos do direito de o comer, é que temos com que passar bem de
outra maneira; mas vós não tendes os mesmos recursos que nós; e sem dúvida mais vale comer o
inimigos que abandonar ao corvos e gralhas o fruto da vitória. Acreditais pôr um jesuíta no espeto, e no
entanto é ao vosso defensor, ao inimigo de vossos inimigos que ides assar. Quanto a mim, nasci em vossa
terra; e o cavalheiro que vede. é meu patrão e, longe de ser um jesuíta, acaba exatamente de matar um
deles e apoderar-se de seus despojos: daí o vosso engano. Para verificar o que vos digo, tomai a sua
batina e levai-a à primeira barreira do reino dos Padres; informai-vos se o meu patrão não matou um
oficial jesuíta. Isso demandará pouco tempo; e podereis comer-nos depois, se descobrirdes que estou
mentindo. Mas eu vos disse a verdade, e muito bem conheceis os princípios do direito público, os
costumes e as leis, para que não deixeis de nos poupar a vida.
Os orelhões acharam muito razoável tal discurso; deputaram dois notáveis para irem em comissão
Informar-se da verdade; os dois emissários desempenharam-se a contento e voltaram logo com a boa
notícia. Os orelhões soltaram os dois prisioneiros, fizeram-lhes toda sorte de gentilezas, ofereceram-lhes
moças, serviram-lhes refrescos e os conduziram até as fronteiras de seus Estados, gritando alegremente:
"Ele não é jesuíta! Ele não é jesuíta!"
Cândido não se cansava de admirar-se do motivo da libertação. "Que povo! - dizia ele. - Que homens!
Que costumes! Se eu não tivesse tido a ventura de atravessar a espada o irmão da senhorita Cunegundes,
seria comido sem remissão. Afinal de contas, a pura natureza é boa mesmo, pois essa gente, em vez de
me devorar, cumulou-me de gentilezas ao saber que eu não era jesuíta!

CAPÍTULO XVII
Da chegada de Cândido e Cacambo à terra do Eldorado, e do que ali presenciaram.
Chegados que foram à fronteira, dos orelhões, disse Cacambo a Cândido:
- Bem vê o patrão que este hemisfério não vale mais que o outro: voltemos à Europa pelo caminho
mais curto.
- Como voltar? E para onde ir? Se vou para a minha terra, lá andam os búlgaros e abaros a degolar a
torto e a direito; se volto a Portugal, me queimam vivo; se ficamos por aqui, arriscamo-nos a todo
momento a ir para o espeto. Mas como me resolver a deixar a parte do mundo em que reside a senhorita
Cunegundes?
- Vamos para Caiena - propõe Cacambo. - Lá encontraremos franceses, que andam por toda parte;
poderão ajudar-nos. Deus talvez se amerceie de nós.
Não era fácil irem a Caiena; sabiam mais ou menos em que rumo deveriam marchar, mas rios,
montanhas, precipícios, bandoleiros, selvagens, constituíam por toda parte terríveis obstáculos.
Os cavalos morreram de fadiga; as provisões findaram; alimentaram-se um mês inteiro de frutos
silvestres e foram dar enfim a um rio marginado de coqueiros, que lhes sustentaram a vida e as
esperanças. Cacambo, que dava sempre tão bons conselhos como a velha, disse a Cândido:
- Não podemos agüentar mais, já caminhamos demasiado. Vejo uma canoa abandonada à margem.
Vamos enchê-la de coco e deixemo-nos vogar na correnteza: um rio leva sempre a algum lugar habitado.
Se não encontrarmos coisas agradáveis, encontraremos pelo menos coisas novas.
Vamos - disse Cândido, - e recomendemo-nos à Providência.
Vogaram algumas léguas entre margens ora luxuriantes, ora desertas, ora planas, ora escarpadas. O rio
cada vez se alargava mais, até perder-se debaixo de uma abóbada de rochedos temerosos que se erguiam
até as nuvens. O rio, apertado naquele local, arrastou-os com uma rapidez e fragor terríveis. Ao cabo de
vinte e quatro horas tornaram a ver a luz do dia; mas a canoa se espatifou contra os recifes; foi preciso
arrastarem-se de rochedo em rochedo durante uma légua inteira; afinal descobriram um horizonte
imenso, bordado de montanhas inacessíveis.

Toda aquela região era cultivada tanto para o prazer como para a necessidade; por toda parte o útil era
agradável. Os caminhos eram transitados, ou antes, ornados de viaturas de forma original e de um
material esplêndido, que conduziam homens e mulheres de singular beleza. Puxavam-nas grandes
carneiros vermelhos que ultrapassavam, em rapidez, os mais belos cavalos da Andaluzia, de Tetuan e de
Mequinez.
- Cá está - um país - disse Cândido - que vale mais do que a Vestfália.
Parou com Cacambo na primeira aldeia que encontraram. Alguns meninos, vestidos de brocados de
ouro bastante rasgados, jogavam patela à entrada do burgo; os nossos dois homens do outro mundo se
distraíram a olhá-los: as pedras com que jogavam eram redondas, bastante volumosas, amarelas,
vermelhas, verdes, e lançavam um brilho singular. Os viajantes sentiram desejos de as apanhar; eram
pepitas de ouro e esmeraldas e rubis, a menor das quais seria o maior ornamento do trono do Grão
Mogol.
- Sem dúvida - disse Cacambo, - são os filhos do rei que estão jogando patela.
Nesse instante apareceu o mestre-escola, para os fazer regressarem à. aulas.
Eis - disse Cândido - o preceptor da família real. Os pequenos maltrapilhos abandonaram
imediatamente o jogo, deixando no chão as suas pedras e tudo o que lhes servira para o brinquedo.
Cândido apanha-as, corre ao preceptor, e lhas apresenta humildemente, dando-lhe a entender, por sinais,
que suas Altezas haviam esquecido o seu ouro e pedrarias. O mestre-escola, sorrindo, jogou fora tudo
aquilo, olhou muito surpreendido para o rosto de Cândido, e continuou seu caminho.
Os viajantes não deixaram de apanhar o ouro, os rubis e as esmeraldas.
- Onde estamos? - exclamou Cândido. - Os príncipes deste país devem ser multo bem educados, pois
lhes ensinam a desprezar o ouro e as pedrarias.
Cacambo estava tão surpreso como Cândido. Aproximaram-se enfim da primeira casa da aldeia; era
construída como um palácio da Europa. Grande multidão se acotovelava à porta, e mais ainda no interior
da casa, ouvia-se agradável música e vinha lá de dentro um delicioso cheiro de cozinha. Cacambo
aproximou-se da porta e percebeu que falavam peruviano; era a sua língua materna: pois todo o mundo
sabe que Cacambo nascera em Tucuman, em uma aldeia onde só conheciam essa língua.
- Isto aqui é uma estalagem - disse ele a Cândido, - entremos, que eu lhe servirei de intérprete.
Em seguida, dois rapazes e duas raparigas da casa, com roupas de tecido de ouro e os cabelos atados
com fitas, os convidam a sentar-se à mesa comum. Serviram quatro qualidades de sopa, acompanhadas
cada uma de dois papagaios, um condor ensopado que pesava duzentas libras, dois macacos grelhados de
excelente gosto, uma travessa com trezentos colibris, massas deliciosas; e tudo em pratos de uma espécie
de cristal de rocha, os criados e criadas da estalagem serviam várias bebidas feitas da cana de açúcar.
Os convivas eram na maior parte comerciantes e cocheiros, todos de extrema polidez; fizeram
algumas perguntas a Cacambo com a discrição mais circunspecta, e responderam às suas de maneira
satisfatória.
Terminada a refeição, Cacambo achou, assim como Cândido, que pagaria muito bem a sua parte
deixando sobre a mesa duas grandes pepitas de ouro que apanhara, o que provocou no estalajadeiro e sua
mulher uma explosão de riso, que não acabava mais. Afinal se dominaram: - Senhores - disse o patrão, -
bem vemos que são estrangeiros; não estamos acostumados a vê-los todos os dias. Perdoem se
começamos a rir quando nos deram em pagamento as pedras da rua. Com certeza não possuem os
senhores moeda nacional, mas não é preciso dinheiro para almoçar aqui. Todas as estalagens
estabelecidas para comodidade do comércio são pagas pelo governo. Os senhores não passaram muito
bem aqui porque esta é uma aldeia muito pobre, mas noutras localidades hão de ser recebidos como
merecem. Cacambo explica a Cândido as palavras do estalajadeiro, e Cândido as escutava com a mesma
admiração e espanto com que seu amigo Cacambo lhas transmitia.
- Que pais é este - pensavam eles, - desconhecido do resto do mundo, e onde toda a natureza é de uma
espécie tão diferente da nossa? Provavelmente é o país onde tudo está bem - considerava Cândido, - pois
é preciso absolutamente que haja um dessa espécie. E, apesar do que dizia mestre Pangloss, muitas vezes
desconfiei que tudo estava mal em Vestfália.

CAPÍTULO XVIII
Das coisas que presenciaram na terra do Eldorado.
Cacambo manifestou ao hospedeiro toda a sua curiosidade; e este lhe disse: - Sou muito ignorante, e
aliás me dou bem assim; mas temos aqui um velho retirado da Corte, que é o homem mais sábio do reino,
e muito comunicativo. Em seguida conduz Cacambo à residência do velho. Cândido não desempenhava
mais que o papel de segunda personagem, e acompanhava a seu criado. Entraram numa casa muito
simples, pois a porta era apenas de prata e as salas modestamente revestidas de ouro, mas tudo trabalhado
com tanto gosto que nada ficavam a dever aos mais ricos lambris. A antecâmara, na verdade, era
incrustada somente de esmeraldas e rubis; mas a harmonia do conjunto compensava de sobra essa
extrema simplicidade.
O velho recebeu os dois estrangeiros num sofá forrado de penas de colibri, e lhes mandou servir
licores em taças de diamante. Depois disso, satisfez-lhes a curiosidade nos seguintes termos:
- Tenho cento e setenta e dois anos e ouvi de meu falecido pai, escudeiro do Rei, as espantosas
revoluções do Peru, de que ele foi testemunha. O reino onde estamos é a antiga pátria dos incas, que
daqui saíram imprudentemente para ir subjugar uma parte do mundo, e que foram afinal reduzidos ao
aniquilamento pelos espanhóis. Mais sábios se mostraram os príncipes que permaneceram em seu país
natal; ordenaram, com o consentimento da nação, que nenhum habitante jamais saísse do nosso pequeno
reino; e foi isso que nos conservou a nossa inocência e felicidade. Os espanhóis tiveram um confuso
conhecimento deste país, a que chamaram Eldorado, e um inglês, o cavaleiro Raleigh. chegou até a
aproximar-se daqui há cerca de cem anos; mas, como estamos cercados de rochedos inacessíveis e de
precipícios, conservamo-nos até agora ao abrigo da rapacidade dos europeus, que têm uma inconcebível
loucura pelas pedras e a lama da nossa terra, e que, para as conseguir, são capazes de nos matar a todos,
até o último.

A conversação foi longa; versou sobre a forma de governo, os costumes, as mulheres, os espetáculos
públicos, as artes. Afinal Cândido, que sempre tivera gosto pela metafísica, indagou, por intermédio de
Cacambo, se no país não havia uma religião.
O velho enrubesceu um pouco.
- Como pode o senhor duvidar de tal coisa? - perguntou ele. - Será que nos toma por ingratos?
Cacambo perguntou humildemente qual era a religião do Eldorado.
O velho corou de novo.
- Acaso pode haver duas religiões? - disse ele. - Temos, creio eu, a religião de todo o mundo:
adoramos a Deus dia e noite.
- Não adoram senão a um único Deus? - interrogou Cacambo, sempre servindo de intérprete às
dúvidas de Cândido.
- Quer-me parecer - tornou o velho, formalizado, - que não há nem dois, nem três, nem quatro deuses.
Francamente, fazem cada pergunta!
Cândido não se cansava de interrogar o bom do velho; quis saber como rezavam a Deus no Eldorado.
Não lhe rezamos - disse o bom e respeitável sábio. - Nada temos que lhe pedir; ele nos deu tudo o que
precisamos; nós lhe agradecemos sem cessar.
Cândido teve curiosidade de ver os sacerdotes; e perguntou onde estavam.
O bom do velho sorriu.
- Meus amigos - disse ele, - nos todos somos sacerdotes; cada manhã, o rei e todos os chefes de
família entoam, solenemente, cânticos de ações de graça; e cinco ou seis mil músicos os acompanham.
- Como, os senhores não têm padres que ensinam, que disputam, que governam, que cabalam, e que
mandam queimar as pessoas que não são da sua opinião?
- Só se fôssemos loucos- disse o velho. - Aqui somos todos da mesma opinião, e não entendemos o
que quer o senhor dizer com os seus padres.
Cândido, a cada uma dessas palavras, cala em êxtase e dizia consigo: "Como tudo isto é diferente da
Vestfália e do castelo do senhor barão! Se o nosso amigo Pangloss visse o Eldorado, não diria mais que o
castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor sobre a face da terra; não há dúvida de que é
preciso viajar".
Depois dessa longa conversação, o velho mandou atrelar uma carruagem de seis carneiros e cedeu,
aos dois viajantes, doze de seus criados, para os conduzirem à Corte.
- Desculpem-me - lhes disse ele, - se a minha idade me priva da honra de os acompanhar, o Rei os
receberá de maneira que não fiquem descontentes; e sem dúvida hão de perdoar aos costumes do país, se
houver alguns que lhes desagradem.
Cândido e Cacambo sobem na carruagem; os seis carneiros voavam, e em menos de duas horas
chegaram os visitantes ao palácio do rei, situado num extremo da capital. O pórtico media duzentos e
vinte pés de altura por cem de largura; impossível dizer de que material era construído. Mas bem se
imagina que superioridade prodigiosa não deveria ter sobre esses calhaus a que chamamos ouro e
pedrarias.
Vinte belas moças da guarda real receberam Cândido e Cacambo à entrada, conduziram-nos aos
banhos, vestiram-nos com uma roupa de um tecido de penugem de colibri, Depois disso, os altos
dignitários e as altas dignitárias da Coroa os levaram ao apartamento de Sua Majestade, em meio de duas
filas de mil músicos cada uma, segundo o costume ordinário. Quando se aproximavam da sala do trono,
perguntou Cacambo a um alto dignitário como se deveria fazer para saudar a Sua Majestade; se a gente
se lançava de joelhos ou de bruços; se devia pôr as mãos na cabeça ou às costas; se era preciso lamber a
poeira da sala; numa palavra, qual era o cerimonial. "O uso - disse o alto dignitário - é abraçar o rei e
beijá-lo nas duas faces", Cândido e Cacambo saltaram ao pescoço de Sua Majestade, que os recebeu com
toda a graça imaginável e os convidou polidamente para cear.
Enquanto esperavam, mostraram-lhes a cidade, os edifícios públicos que iam até as nuvens, os
mercados de mil colunas, as fontes de água pura, as fontes de água de rosas, as de licor de cana de açúcar
que corriam continuamente nas grandes praças, pavimentadas de uma espécie de pedraria que exalava
um cheiro semelhante ao do cravo e da canela. Cândido pediu para ver o palácio da justiça; disseram-lhe
que era coisa que não havia e que não pleiteavam nunca. Informou-se se havia prisões, e disseram-lhe
que não, o que mais o surpreendeu, e maior prazer lhe causou, foi o palácio das ciências, no qual viu uma
galeria de dois mil passos, cheia de instrumentos de matemática e física.
Depois de haverem percorrido, toda a tarde, mais ou menos a milésima parte da cidade,
reconduziram-nos a palácio. Cândido sentou-se à mesa entre Sua Majestade, seu criado, Cacambo e
várias damas. Jamais houve melhor passadio, e nunca se demonstrou tanto espírito à mesa como Sua
Majestade. Cacambo explicava as frases do rei a Cândido, as quais, embora traduzidas, pareciam sempre
boas frases. De tudo quanto espantava Cândido, não foi isso o que menos o espantou.
Passaram um mês de hóspedes. Cândido não cessava de confessar a Cacambo:
- Mais uma vez te digo que o castelo onde nasci não vale, na verdade, o país em que nos achamos;
mas, afinal de contas, aqui não está a senhorita Cunegundes, e tu, sem dúvida, amas alguém na Europa.
Se ficarmos aqui, não seremos mais que os outros; ao passo que, se voltarmos para o nosso mundo
apenas com doze carneiros carregados com o cascalho do Eldorado, seremos mais ricos que todos os reis
em conjunto, não mais teremos que temer a inquisidores e poderemos facilmente recuperar a senhorita
Cunegundes.


Tais palavras agradaram a Cacambo. O fato é que a gente gosta tanto de fazer-se valer entre os seus,
de paradear o que viu pelo mundo, que os dois felizardos resolveram não mais o ser, e pediram a Sua
Majestade licença para deixar o país.
- Cometeis uma tolice - lhes disse o rei. - Bem sei que o meu país pouco vale; mas, quando se está
passavelmente nalguma parte, o mais acertado é não mudar de ares. Não me assiste o direito de reter a
estrangeiros; seria uma tirania que não está nem nos nossos costumes nem nas nossas leis: todos os
homens são livres; podeis partir quando bem quiserdes; a saída, porém, é muito difícil. É impossível
remontar a rápida torrente sobre a qual chegastes por milagre e que corre sob as abóbadas dos rochedos.
As montanhas, que circundam todo o meu reino, têm dez mil pés de altura e são verticais como muralhas;
ocupam cada uma, em largura, um espaço de mais de dez léguas; e, depois de galgadas, só é possível
desce-las por perigosos precipícios. No entanto, se quereis absolutamente partir, vou ordenar aos
intendentes das máquinas que construam uma que vos possa transportar comodamente. Depois de vos
conduzirem ao alto das montanhas, ninguém vos poderá acompanhar; pois os meus súditos fizeram o
juramento de nunca sair desse recinto, e são bastante sensatos para que possam faltar à palavra. Podeis,
em todo caso, pedir-me tudo o que quiserdes.
- Apenas pedimos a Vossa Majestade - disse Cacambo - alguns carneiros carregados de víveres e
dessas pedras e da lama do Eldorado.
O rei pôs-se a rir.
- Não posso conceber - disse ele - que gosto têm os europeus pela nossa lama amarela, mas levai
quanta quiserdes e bom proveito vos faça.
Ordenou imediatamente que seus engenheiros construíssem uma poderosa máquina para guindar além
do reino aqueles dois homens extraordinários. Três mil bons físicos puseram mãos à obra; ficou pronta
ao cabo de quinze dias, e não custou mais de vinte milhões de libras esterlinas, na moeda do país.
Puseram Cândido e Cacambo sobre a máquina; havia dois grandes carneiros vermelhos para lhes
servirem de montaria quando houvessem franqueado as montanhas, - vinte -, outros carregados de
viveres, trinta com presentes do que o país possuía de mais curioso, e cinqüenta carregados de ouro, de
pedrarias e diamantes, o rei beijou afavelmente os dois vagabundos.
Foi um belo espetáculo a sua partida, e a engenhosa maneira como foram içados, eles e os carneiros,
ao alto das montanhas. Os físicos se despediram depois de os ter deixado em segurança. E Cândido não
teve mais outro desejo e objeto que ir apresentar seus carneiros à senhorita Cunegundes.
- Temos - disse ele - com que pagar ao governador de Buenos Aires, se a senhorita Cunegundes
pudesse ser posta a prêmio. Marchemos para Caiena, embarquemos, e veremos depois que reino se
poderá comprar.

CAPÍTULO XIX
Do que lhes sucedeu no Surinam e de como Cândido travou conhecimento com
Martinho.
O primeiro dia dos nossos dois viajantes foi bastante agradável. Animava-os a idéia de se saberem
donos de mais tesouros do que poderiam reunir a Ásia, a Europa e a África. Cândido, transportado, ia
gravando nas árvores o nome de Cunegundes. No dia seguinte, dois dos carneiros tombaram num
pântano, desaparecendo com a carga; dois outros morreram de fadiga alguns dias depois; sete ou oito
pereceram em seguida de fome num deserto; outros, ao fim de alguns dias, tombaram em precipícios.
Afinal, após cem dias de marcha, só lhes restavam dois carneiros.
- Vê, meu amigo - disse Cândido a Cacambo, - como são perecíveis as riquezas do mundo; só há de
sólido a virtude, e a ventura de tornar a ver a senhorita Cunegundes.
- Confesso-o - disse Cacambo, - mas restam-nos ainda dois carneiros com maiores riquezas do que
jamais as poderá ter o rei da Espanha, e vejo ao longe uma cidade que suponho ser Surinam, pertencente
aos holandeses. Estamos no fim de nossas penas e o começo de nossa felicidade. Quando se
aproximavam da cidade, encontraram um negro caído no chão, não tendo mais que metade do vestuário,
isto é, umas calças de pano azul; faltava àquele pobre homem a perna esquerda e a mão direita. - Meu
Deus! - lhe disse Cândido em holandês. - Que fazes aí, meu amigo, no horrível estado em que te vejo?
- Espero meu patrão, o famoso negociante senhor Vanderdendur.
- E foi o senhor Vanderdendur quem te deixou nesse estado?
- Sim, é o costume - disse o negro. - Por todo vestuário, dão-nos umas calças duas vezes por ano.
Quando trabalhamos nas usinas de açúcar e o rebolo nos apanha o dedo, cortam-nos a mão; quando
tentamos fugir, cortam-nos a perna: incorri em ambos os casos. É por esse preço que os senhores comem
açúcar na Europa. No entanto, quando me vendeu por dois escudos patagônicos na Costa da Guiné,
minha mãe me dizia: "Bendiz a nossos fetiches, meu querido filho, adora-os sempre, eles farão com que
vivas feliz; tens a honra de ser escravo dos nossos senhores brancos, e com isso fazes a fortuna de teu pai
e de tua mãe". Ai! se fiz a fortuna deles é coisa que eu não sei, mas eles não fizeram a minha. Os
cachorros, macacos. e papagaios são mil vezes menos infelizes que nós. Todos os domingos, os fetiches
holandeses que me converteram me dizem que nós, brancos e negros, somos todos filhos de Adão Não
sou genealogista mas se esses pregadores dizem a verdade, somos todos primos-irmãos. Ora, hão de
confessar-me que é impossível tratar os parentes de modo mais horrível.

Nenhum comentário: