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quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte 3]

Soube que os reverendos cavaleiros de Malta nunca deixam de o fazer quando aprisionam turcos e turcas;
é uma lei do direito das gentes, que jamais foi infringida. Não direi o quanto é duro para uma jovem
princesa ser 235 conduzida como escrava a Marrocos, juntamente com sua mãe. Imaginem o que não
sofremos no navio corsário! Minha mãe era ainda muito bonita; e nossas aias, nossas simples criadas,
tinham mais encantos do que se poderiam encontrar por toda a África. Quanto a mim, era encantadora,
era a beleza, a graça em pessoa, e era virgem; não o fui por muito tempo: essa flor que eu reservara para
o belo príncipe de Massa-Carrara me foi arrebatada pelo capitão corsário; era um negro abominável que
ainda por cima estava crente de que me fazia uma grande honra. A senhora princesa de Palestrina e eu
tínhamos de ser mesmo muito fortes para resistir a tudo o que experimentamos até a nossa chegada a
Marrocos. Mas passemos adiante; são coisas comuns, em que não vale a pena insistir.
Marrocos nadava em sangue quando ali chegamos. Os cinqüenta filhos do imperador Muley-Ismael
tinham cada um o seu partido: o que constituía de fato cinqüenta guerras civis, de negro. contra negro, de
negros contra trigueiro, de trigueiros contra trigueiros, de mulatos contra mulatos. Era uma carnagem
contínua em toda a extensão do Império.
Apenas desembarcamos, os negros de uma facção contrária à do nosso corsário vieram arrebatar-lhe a
presa. Depois dos diamantes e do ouro, éramos nós o que ele tinha de mais precioso. Fui testemunha de
um combate como não se vê igual em climas europeus, Os povos setentrionais não têm sangue bastante
ardente. Não tem esse furor pelas mulheres que se vê na África. Parece que o. europeus têm leite nas
veias; pois é vitríolo, é fogo que corre nas veias dos habitantes do monte Atlas e dos países vizinhos.
Combateram com a sanha dos leões, dos tigres e das serpentes da região para ver quem nos possuiria.
Um mouro agarrou minha mãe pelo braço direito, um lugar-tenente de meu capitão segurou-a pelo
esquerdo; um soldado mouro pegou-a por uma perna, um dos nossos piratas pela outra. Em um instante,
quase todas as nossas mulheres se viram assim puxadas por quatro soldados. Meu capitão me conservava
oculta atrás de si. Empunhava. a cimitarra e matava quem quer que se lhe opusesse. Vi afinal todas as
nossas italianas e a minha mãe despedaçadas, retalhadas, massacradas pelos monstros que as disputavam.
Os meus companheiros cativos, os que os haviam aprisionado, soldados, marinheiros, negros, trigueiros,
brancos, mulatos, e o meu capitão, foi tudo assassinado, e eu ali fiquei, agonizante, sobre um montão de
cadáveres. Cenas tais ocorriam numa extensão de trezentas léguas, sem que ninguém faltasse às cinco
preces diárias ordenadas por Maomé. 

Com muita dificuldade desembaracei-me daquela multidão de corpos sangrentos e arrastei-me para
debaixo de uma laranjeira à margem de um arroio próximo; tombei por terra, de medo, de cansaço, de
desespero e de fome. Em breve meus sentidos exaustos se entregaram a um sono que mais se aproximava
do desmaio que do repouso. Estava naquele estado de fraqueza e de insensibilidade, entre a morte e a
vida, quando senti alguma coisa que se agitava sobre o meu corpo. Abri os olhos e vi um homem branco
e de fisionomia simpática que suspirava e dizia entre dentes: O che sciagura d'essere senza coglioni!

CAPÍTULO XII
Continuação das desgraças da velha.
Atônita e encantada de ouvir a língua da minha pátria, e não menos surpresa das palavras que proferia
aquele homem, respondi-lhe que havia maiores, desgraças do que aquela de que ele se queixava.
Informei-o em poucas palavras dos horrores por que passara, e desmaiei de novo. Levou-me para uma
casa vizinha, fez com que me dessem leite e comida, atendeu-me, consolou-me, lisonjeou-me, disse-me
que nada vira de tão lindo como eu e que nunca lamentara tanto aquilo que ninguém lhe poderia
devolver.
- Nasci em Nápoles - me disse ele. É sabido que ali costumam castrar de dois a três mil meninos por
ano; uns morrem da operação, outros adquirem uma voz mais bela que a das mulheres, outros vão
governar Estados. Fizeram-me a intervenção com grande. sucesso, e fui músico da capela da senhora
princesa da Palestrina.
- Da minha mãe! - exclamei.
- Da sua mãe! - bradou ele, chorando. - Como! Então a senhora é aquela jovem princesa que eu criei
até a idade de seis anos e que já prometia ser tão linda assim?
- Sou eu mesma; minha mão se acha a quatrocentos passos daqui, esquartejada sob um montão de
mortos...
Contei-lhe tudo o que me sucedera e ele contou-me as suas aventuras. Naquela época fora enviado em
missão junto ao rei de Marrocos, da parte de uma potência cristã, a fim de concluir um tratado com nosso
monarca. Mediante esse tratado, se forneceria ao maometano pólvora, canhões e navios, a fim de auxiliar
a parte contratante a exterminar o comércio dos outros cristãos.
- Minha missão está cumprida - disse aquele honrado eunuco. - Vou embarcar em Ceuta e a levarei
comigo para a Itália. Ma che sciagura d'essere senza coglioni!
Agradeci-lhe com lágrimas de enternecimento; e, em vez de conduzir-me à Itália, levou-me para a
Argélia e vendeu-me ao bei dessa província. Mal fora vendida, quando essa peste que deu volta à África,
à Ásia e à Europa, se alastrou na Algéria com furor. Meus amigos já viram terremoto. Mas e a peste? A
senhorita nunca apanhou peste?

- Nunca - respondeu a baronesa.
- Ah! se a tivesse apanhado - tornou a velha, - confessaria que é muito pior que um terremoto. E muito
comum na África; fui atacada. Imaginem que situação para a filha de um papa, que tinha apenas quinze
anos de idade, e que, no espaço de três meses, conhecera a pobreza, a escravidão, fora violada quase
todos os dias, vira esquartejarem a sua mãe, sofrera a fome e a guerra, e estava para morrer de peste na
Argélia. No entanto não morri. Mas o meu eunuco e o bei pereceram, juntamente com quase todo o
serralho da Argélia.
Passadas as primeiras devastações dessa horrível peste, foram postas em leilão as escravas do bei. Um
mercador arrematou-me, levando-me para Túnis; vendeu-me a outro mercador, que me revendeu em
Trípoli; de Trípoli fui revendida em Alexandria, de Alexandria em Esmirna, de Esmirna em
Constantinopla. Fiquei enfim pertencendo a um agá dos janízaros, que em breve foi incumbido de
defender Azof contra os russos que a cercavam.
O agá, homem muito galante, levou consigo todo o seu serralho, e nos alojou em um fortim sobre os
Pauis-Meótides, guarnecido por dois eunucos negros e vinte soldados. Mataram um número prodigioso
de russos, mas estes nos pagaram na mesma moeda. Azof foi posto a ferro e fogo, e não poupavam nem
sexo nem idade; afinal só restou nosso pequeno forte; os inimigos resolveram vencer-nos pela fome. Os
vinte janízaros tinham jurado não render-se nunca. A fome extrema a que se viram reduzidos os obrigou
a comer as nossos dois eunucos, por modo de quebrarem o juramento. Passados alguns dias, decidiram
comer as mulheres.
Tínhamos um imame muito devoto e compassivo, que lhes pregou um belo sermão, persuadindo-os a
que não nos matassem.
- Cortai - disse ele - apenas uma nádega a cada uma dessas damas, e com isso vos regalareis. Se for
necessário mais, tereis outro tanto daqui a alguns dias. Deus recompensará tão caridosa ação, e sereis
socorridos.
Tinha bastante eloquência, e convenceu-os. Fizeram-nos essa horrível operação. O imame nos aplicou
o mesmo bálsamo que se põe no menino. que acabam de circuncidar. Estávamos todas pela hora da
morte. Mal haviam os janízaros terminado a refeição que lhes fornecêramos, quando chegam os russos
em chatas; não sobrou um único janízaro. Os russos não deram a mínima atenção ao estado em que nos
achávamos. Há por toda parte cirurgiões franceses: um deles, que era muito hábil, nos socorreu;
curou-nos satisfatoriamente, e toda a minha vida hei de lembrar-me que, quando as minhas feridas
ficaram bem cicatrizadas, ele me fez propostas. De resto, nos disse a todas que nos consolássemos,
assegurando-nos que em vários cercos sucedera a mesma coisa, e que essa era a lei da guerra.
Logo que pudemos caminhar, mandaram-no para Moscou. Quanto a mim, coube em partilha a um
boiardo que me fez trabalhar na sua horta e me dava vinte laçaços por dia. Mas, dois anos depois, tendo
sido esse cavaleiro mandado a suplício, por alguma intriga de Corte, em companhia de trinta colegas
seus, aproveitei a emergência e fugi: atravessei toda a Rússia; fui por muito tempo criada de taverna em
Riga, depois em Rostock, em Vismar, em Leipzig, em Camel, em Utrecht, em Leyde, em Haya, em
Rotterdam. Envelheci na miséria e no opróbrio, não tendo mais que a metade do traseiro, e sempre a
lembrar-me de que era filha de um papa; cem vezes quis matar-me, mas ainda amava a vida. Essa
ridícula fraqueza é talvez um dos nossos pendores mais funestos: pois haverá coisa mais tola do que
carregar continuamente um fardo que sempre se quer lançar por terra? Ter horror à própria existência e
apegar-se a ela. Acariciar, enfim, a serpente que nos devora, até que nos haja engolido o coração?
Vi, nos países que a sorte me fez percorrer e nas estalagens onde servi, um número prodigioso de
pessoas que execravam a sua vida; mas apenas encontrei doze que acabaram voluntariamente com a
própria miséria: três negros, quatro ingleses, quatro genebrinos e um professor alemão chamado Robeck.
Terminei como criada do judeu dom Issacar, que me encarregou de a servir, minha linda senhorita;
liguei-me a seu destino, e tenho-me ocupado mais das suas aventuras que das minhas. E jamais falaria de
minhas desgraças se a senhorita não me houvesse melindrado e se não fosse costume a bordo contar
histórias para enganar o aborrecimento. Enfim, senhorita, tenho experiência, conheço o mundo. Quer
distrair-se? Convide cada passageiro a contar a sua história; e, se encontrar um só que não haja
amaldiçoado a vida muitas vezes e que muitas vezes não tenha dito consigo que era o mais infeliz dos
homens, pode então lançar-me de cabeça ao mar.

CAPÍTULO XIII
De como Cândido se viu obrigado a separar-se da bela Cunegundes e da velha
Tendo ouvido a história da velha, a bela Cunegundes dispensou-lhe todas as atenções que se deviam a
uma pessoa da sua posição e do seu mérito. Aceitou a proposta; induziu todos os passageiros a contarem
um após outro as suas aventuras.
Cândido e ela confessaram que a velha tinha razão.
- É uma pena - dizia Cândido - que o sábio Pangloss tenha sido enforcado, contra o costume, em um
auto-de-fé; ele nos diria coisas admiráveis sobre o mal físico e o mal moral que cobrem a terra e o mar, e
eu me sentiria com bastante ânimo para me atrever a fazer-lhe respeitosamente algumas objeções.

A medida que cada um contava a sua história, o navio avançava. Aportaram em Buenos Aires.
Cunegundes, o capitão Cândido e a velha foram ter com o governador Dom Fernando de Ibarra y
Figueroa y Mascareñas y Lampurdos y Sousa. Esse senhor tinha uma altivez adequada a um homem que
usava tantos nomes. Falava aos homens com o mais nobre desdém, erguendo tão alto o nariz, elevando
tão implacavelmente a voz, assumindo um ar tão imponente, afetando um andar tão altaneiro, que todos
os que o cumprimentavam sentiam ganas de bater-lhe. Amava as mulheres com loucura. Cunegundes lhe
pareceu a criatura mais linda que já vira no mundo. A primeira coisa que fez foi perguntar se não era
esposa do capitão. O tom da pergunta alarmou Cândido: não ousou dizer-lhe que era sua esposa porque
de fato não o era; não ousava dizer que era sua irmã, porque tampouco o era; e, embora essa mentira
oficiosa estivesse outrora muito em moda entre os antigos e pudesse ser útil aos modernos, a sua alma era
demasiado pura para trair a verdade.
- A senhorita Cunegundes - disse ele - deve conceder-me a honra de casar comigo, e suplicamos a
Vossa Excelência que se digne mandar celebrar as nossas núpcias.
Dom Fernando de Ibarra y Figueroa y Mascareñas y Lampurdos y Sousa, cofiando o bigode, sorriu
amargamente e ordenou ao capitão Cândido que fosse passar em revista a sua companhia. Cândido
obedeceu; o governador ficou com a senhorita Cunegundes. Declarou-lhe a sua paixão, protestou que no
dia seguinte a desposaria em face da Igreja, ou de qualquer outra maneira, conforme aprouvesse a seus
encantos. Cunegundes pediu um quarto de hora para refletir, para consultar a velha e tomar uma decisão.
Disse a velha a Cunegundes:
- A senhorita tem setenta e dois quartéis e nem um óbulo; só depende de si ser esposa do maior senhor
da América do Sul e que tem tão belos bigodes; e acaso está em condições de ostentar uma fidelidade a
toda prova? Pois não foi violada pelos búlgaros? Um judeu e um inquisidor não gozaram da sua boa
vontade? As desgraças outorgam direitos. Confesso que, se estivesse em seu lugar, não teria nenhum
escrúpulo em desposar o senhor governador e fazer a fortuna do senhor capitão Cândido.
Enquanto a velha falava com toda a prudência que dão a experiência e a idade, viram entrar no porto
um pequeno navio; trazia um alcaide e alguazis, e eis o que sucedera.
Bem adivinhara a velha que fora um franciscano que havia roubado o dinheiro e as jóias de
Cunegundes, na cidade de Badajoz. O monge procurou vender algumas das pedras a um joalheiro. O
negociante reconheceu-as como pertencentes ao inquisidor-mor. Antes de ser enforcado, o franciscano
confessou de quem as roubara; indicou as pessoas e o rumo que tomavam. A fuga de Cunegundes e
Cândido era já conhecida. Seguiram-lhes o rastro até Cádiz; sem perda de tempo, despacharam um navio
em sua perseguição. Esse navio já estava agora no porto de Buenos Aires. Logo se espalhou que um
alcaide ia desembarcar e que perseguiam os assassinos do inquisidor-mor. A prudente velha viu num
instante tudo o que se devia fazer.
- A senhorita não pode fugir - disse ela a Cunegundes, e nada tem a temer; não foi a senhorita quem
matou Monsenhor; e aliás o governador que a ama, não permitirá que a maltratem; fique onde está.
Corre imediatamente a Cândido: - Fuja - lhe diz ela, - ou dentro em uma hora será queimado.
Não havia um momento a perder. Mas como separar-se de Cunegundes? E onde refugiar-se?

CAPÍTULO XIV
De como Cândido e Cacambo foram acolhidos pelos jesuítas do Paraguai
Cândido trouxera de Cádiz um criado como os há em quantidade nas costas da Espanha e nas
colônias. Tinha um quarto de espanhol, pois nascera de um mestiço, em Tucuman; fora menino de coro,
sacristão, marinheiro, monge, carregador, soldado, lacaio. Chamava-se Cacambo e estimava muito a seu
patrão, porque o seu patrão era um excelente homem. Selou às pressas os dois cavalos andaluzes.
- Vamos, patrão. Siga o conselho da velha, e corramos sem olhar para trás.
Cândido põe-se a chorar:
- Ai minha querida Cunegundes! Devo eu abandonar-te quando o senhor governador vai preparar as
tuas núpcias? Eu que te trouxe de tão longe! Que vai ser de ti?
- Será o que puder - disse Cacambo, - as mulheres nunca se embaraçam; Deus as ajuda; corramos.
- Aonde me levas? Aonde vamos? Que faremos sem Cunegundes? - dizia Cândido.
- Por S. Jaques de Compostella - disse Cacambo. - O patrão não ia combater contra os jesuítas? Pois
combata agora pelos jesuítas. Conheço bem os caminhos; vou levá-lo até o reino deles; ficarão
encantados de ter um capitão que saiba fazer exercícios à moda búlgara. O senhor fará uma fortuna
prodigiosa. Quando a gente não se ajeita num mundo, procura arranjar-se noutro. É um prazer
extraordinário ver e fazer coisas novas.
- Já estiveste então no Paraguai? - indagou Cândido.
- É verdade. Servi de fâmulo no colégio de Assunção, e conheço o governo dos Padres como conheço
as ruas de Cádiz. É uma coisa admirável esse governo. O reino já tem mais de trezentas léguas de
diâmetro; é dividido em trinta províncias. Os padres ali têm tudo, e o povo nada; é a obra prima da razão
e da justiça. Quanto a mim, não conheço nada mais divino do que os Padres, que aqui fazem guerra ao rei
de Espanha e ao rei de Portugal, e que na Europa confessam esses reis; que aqui matam espanhóis e em
Madrid os mandam para o céu: isto me encanta. Avancemos. O. patrão vai ser o mais feliz de todos os
homens. Que prazer não terão os Padres quando souberem que lhes chega um capitão que conhece
manobras búlgaras!


Partimos, um tirolês, um polaco e eu. Honraram-me, de chegada, com um subdiaconato e uma
lugar-tenência; hoje sou coronel e padre. Recebemos à altura as tropas do rei de Espanha; garanto-te que
serão devidamente excomungadas e batidas. A Providência te mandou aqui para nos secundares. Mas é
verdade mesmo que a minha querida irmã Cunegundes se acha nas vizinhanças, em poder do governador
de Buenos Aires?
Cândido jurou que nada era mais verdadeiro. E puseram-se ambos a chorar.
O barão não se cansava de abraçar Cândido; chamava-lhe de seu irmão e salvador.
- Ah, meu querido Cândido, talvez possamos os dois entrar vencedores na cidade e arrebatar a minha
irmã Cunegundes.
- É o que mais desejo neste mundo - disse Cândido, - pois tencionava desposá-la, e espero fazê-lo
ainda.
- Tu, insolente! - exclamou o barão. - Tens então a imprudência de querer desposar a minha irmã, que
possui setenta e dois quartéis?! O que me admira é o teu descaramento em ousar falar-me de um desejo
tão atrevido!
Cândido, estarrecido, retrucou-lhe:
- Todos os quartéis do mundo, meu Reverendo Padre, agora nada significam; tirei a sua irmã dos
braços de um judeu e de um inquisidor; ela me deve muitas obrigações, e quer casar comigo. Mestre
Pangloss sempre me disse que os homens são iguais, e eu hei de casar com Cunegundes.
- É o que veremos, patife! - bradou o jesuíta barão de Thunder-ten-tronckh, ao mesmo tempo que lhe
desfecha no rosto um violento golpe com a folha da espada. Cândido no mesmo instante puxa da sua e
mergulha-a até a guarda no ventre do barão jesuíta; mas, ao retirá-la úmida de sangue quente, põe-se a
chorar: "Oh! Meu Deus! Matei o meu antigo senhor, o meu amigo, o meu cunhado; sou o melhor homem
do mundo e já são três homens que mato; e, desses três, dois são padres !"
Cacambo, que montava guarda à entrada do caramanchão, acorreu em seguida.
- Só nos resta vender caro a nossa vida - lhe disse Cândido. - Não tardarão a chegar; deveremos
morrer de arma em punho.
Cacambo, que já passara por outras, não perdeu a cabeça. Despiu a batina do barão, vestiu-a sem
demora em Cândido, deu-lhe o chapéu de três bicos e o fez montar a cavalo. Tudo isto se passou
enquanto o diabo esfrega um olho.
- Corramos, patrão; todos o vão tomar por um jesuíta que anda a serviço; e teremos passado as
fronteiras antes que possam sair em nosso encalço.
Já voava ao dizer Isto, e gritava em espanhol:
- Alas! alas! para o reverendo padre coronel!

CAPÍTULO XVI
Do que aconteceu aos dois viajantes com duas raparigas, dois macacos e os selvagens
chamados orelhões.
Já haviam os dois atravessado a fronteira, e no acampamento ainda ninguém sabia da morte do jesuíta
alemão. O diligente Cacambo teve cuidado de encher o alforje de pão, chocolate, presunto, frutas, e
algumas medidas de vinho. Adentraram-se numa região desconhecida, onde não descobriram estrada
alguma. Afinal deparou-se-lhes à vista um belo prado cortado de arroios. Os nossos dois viajantes
puseram os cavalos a pastar. Cacambo propõe uma refeição, e dá o exemplo, principiando a comer com
apetite.
- Como queres tu - dizia Cândido - que eu coma presunto, quando matei o filho do senhor barão e me
vejo condenado a nunca mais rever a bela Cunegundes? De que me servirá prolongar meus miseráveis
dias, se deve arrastá-los longe dela, no remorso e no desespero? E que dirá o jornal de Trévoux?
Enquanto assim falava, não cessava de comer. O sol ia tombando. Os dois extraviados ouviram alguns
gritos agudos, que pareciam de mulheres. Não sabiam se esses gritos eram de dor ou de alegria; mas
ergueram-se precipitadamente com essa inquietação e alarma que tudo inspira em uma região
desconhecida. Partiam os clamores de duas raparigas nuas que corriam pela orla do bosque, enquanto
dois macacos as perseguiam, mordendo-lhes as nádegas. Cândido encheu-se de piedade; tinha aprendido
a atirar com os búlgaros, e seria capaz de abater uma noz sem tocar nas folhas. Toma do seu fuzil
espanhol de dois tiros, faz pontaria e mata os dois macacos.
- Louvado seja Deus, meu caro Cacambo! Livrei de um grande perigo essas duas pobres criaturas; e
se cai em pecado matando um inquisidor e um jesuíta, já o remi agora, salvando a vida de duas mulheres.
Devem ser damas de boa condição, e esta aventura nos pode trazer grandes vantagens no país.
Ia continuar, mas o espanto lhe paralisou a língua ao ver aquelas duas raparigas beijarem ternamente
os dois macacos, desatando em pranto sobre os seus corpos e enchendo o ar com os gritos mais
pungentes.
- Eu não esperava tanta bondade de alma - disse afinal a Cacambo, o qual replicou:
- Bela coisa fez o patrão! Acaba de matar os amantes dessas moças.
- Seus amantes! Será possível? Estás zombando de mim, Cacambo. Como vou acreditar numa coisa
dessas?
- O senhor, meu caro patrão, anda sempre a espantar-se de tudo; por que acha tão estranho que
nalguns países haja macacos que obtém favores femininos? Eles têm um quarto de homens, como eu
tenho um quarto de espanhol.

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