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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [parte 2]

Alguns estilhaços de pedra haviam ferido Cândido, que se achava estendido no meio da rua e coberto
de destroços.
- Ai! - dizia ele a Pangloss, consegue-me um pouco de vinho e de óleo, que estou morrendo.
- Este terremoto não é novidade nenhuma - respondeu Pangloss. - A cidade de Lima experimentou os
mesmos tremores de terra no ano passado; iguais causas, iguais efeitos: há com certeza uma corrente
subterrânea de enxofre, desde Lima até Lisboa.
- Nada mais provável - respondeu Cândido, - mas, por amor de Deus, arranja-me óleo e vinho.
- Como, provável? - replicou. - Sustento que é a coisa mais demonstrada que existe.
Cândido perdeu os sentidos, e Pangloss trouxe-lhe um pouco de água de uma fonte vizinha.
No dia seguinte, havendo encontrado alguma provisão de boca em meio aos escombros, repararam um
pouco as forças. Em seguida puseram-se a trabalhar como os outros para auxiliar os habitantes escapados
à morte. Alguns cidadãos por eles socorridos deram-lhes o melhor almoço que poderiam encontrar em
tais circunstâncias. Verdade que a refeição era triste; os convivas regavam o pão com lágrimas. Mas
Pangloss consolou-os, assegurando-lhes que as coisas não poderiam ser de outra maneira: "Pois tudo isto
- dizia ele - é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, não poderia estar noutra parte. Pois é
impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem".
Um homenzinho de preto, familiar da Inquisição, que se achava a seu lado, tomou polidamente a
palavra e disse:
- Pelo visto, o senhor não crê no pecado original; pois, se tudo está o melhor possível, não houve nem
queda, nem castigo.
- Peço humildemente perdão a Vossa Excelência - disse Pangloss ainda mais polidamente, - pois a
queda do homem e a maldição entravam necessariamente no melhor dos mundos possíveis.
- O senhor não crê então na liberdade? - perguntou o familiar.
- Vossa Excelência me desculpará - disse Pangloss; - a liberdade pode subsistir com a necessidade
absoluta; pois era necessário que fôssemos livres, porque enfim a liberdade determinada...
Pangloss estava no meio da frase, quando o familiar fez um sinal de cabeça para o seu lacaio, que lhe
servia vinho do Porto.


CAPÍTULO VI
De como se fez um belo auto-de-fé para evitar os terremotos, e de como Cândido foi
açoitado.
Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do país não
encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que oferecer ao povo um belo auto-de-fé;
foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento,
em grande cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer.
Tinham, pois, prendido um biscainho que casara com a própria comadre, e dois portugueses que, ao
comer um frango, lhe haviam retirado a gordura: vieram, depois do almoço, prender o doutor Pangloss e
o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação: foram ambos
conduzidos em separado para apartamentos extremamente frescos, onde nunca se era incomodado pelo
sol; oito dias depois vestiram-lhe um sambenito e ornaram-lhe a cabeça com mitras de papel: a mitra e o
sambenito de Cândido eram pintados de chamas invertidas e diabos que não tinham cauda nem garras;
mas os diabos de Pangloss tinham cauda e garras, e as flamas eram verticais. Assim vestidos, marcharam
em procissão, e ouviram um sermão muito patético, seguido de uma bela música em fabordão. Cândido
foi açoitado em cadência, enquanto cantavam; o blacainho e os dois homens que não tinham querido
comer gordura foram queimados, e Pangloss enforcado, embora não fosse esse o costume. No mesmo dia
a terra tremeu de novo, com espantoso fragor.
Cândido, em pânico, desvairado, todo ensangüentado e palpitante, dizia consigo: "Se este é o melhor
dos mundos possíveis, como não serão os outros! Se eu apenas fosse açoitado, como entre os búlgaros,
ainda passava! Mas tu, meu querido Pangloss, o maior dos filósofos, ver-te enforcar sem saber por quê! E
tu, meu querido anabatista, o melhor dos homens, ver-te afogado à vista do porto! E tu, ó Cunegundes, ó
pérola. das donzelas, era preciso que te abrissem o ventre?!"
E assim doutrinado, açoitado, absolvido e abençoado, mal sustendo-se nas pernas, vinha ele de volta,
quando uma velha o abordou e disse-lhe: "Tem coragem, meu filho, e segue-me".

CAPÍTULO VII
De como uma velha tratou de Cândido, e como este encontrou o objeto amado.
Coragem não a tinha, mas seguiu a velha até um casebre: esta lhe deu pomada para fomentar-se,
deixou-lhe mantimentos e bebida, e indicou-lhe um leito bastante limpo, junto do qual havia um
vestuário completo.
- Come, bebe, dorme - disse-lhe ela - e que Nossa Senhora de Atocha, o senhor Santo Antônio de
Pádua e o senhor S. Jaques de Compostella te conservem na sua guarda: voltarei amanhã.
Cândido, ainda espantado de tudo o que vira, de tudo o que sofrera, e ainda mais da caridade da velha,
quis beijar-lhe a mão.
- Não é a minha mão que deves beijar - disse a velha. - Voltarei amanhã. Esfrega-te, come e dorme.
Cândido, apesar de tantas desgraças, comeu e dormiu. No dia seguinte a velha lhe traz a primeira
refeição. examina-lhe as costas, fomenta-o com outra pomada; mais tarde lhe traz almoço, e volta à noite
com a ceia. No terceiro dia fez as mesmas cerimônias.
 Quem é a senhora? - perguntava-lhe Cândido. - Quem lhe inspirou tamanha bondade? Que
agradecimentos lhe posso dar?
A boa mulher jamais respondia; no outro dia de tarde não trouxe comida.
- Vem comigo - disse ela - e não digas coisa alguma.
Ampara-o e marcha com ele pelo campo, cerca de um quarto de milha: chegam a uma casa solitária,
cercada de jardins e canais. A velha bate a uma pequena porta. Abrem; conduz Cândido, por uma escada
oculta, a um salão dourado, deixa-o num canapé de brocado, fecha a porta e retira-se. Cândido julgava
sonhar, e considerava toda a sua vida como um pesadelo, e o momento atual como um agradável sonho.
A velha voltou logo; amparava com dificuldade uma mulher trêmula; de porte majestoso, toda
resplandecente de pedrarias e coberta com um véu.
- Retira esse véu - disse a velha a Cândido.
O jovem aproxima-se; ergue-o timidamente. Que momento! que surpresa! julga ver a senhorita
Cunegundes; via-a com efeito, era ela própria. Faltam-lhe as forças, não pode dizer uma só palavra, e
tomba a seus pés. Cunegundes, essa, tomba no canapé. A velha enche-os de licores; recuperam os
sentidos, falam-se: são a princípio frases entrecortadas, perguntas e respostas que se entrecruzam,
suspiros, lágrimas, gritos. A velha lhes recomenda que façam menos bulha, e deixa-os em liberdade.
- Como! És tu? Estás viva?! E encontro-te em Portugal! Então não te violaram? Não te fenderam o
ventre, como me disse o filósofo Pangloss?
- Sim - disse a bela Cunegundes, - mas nem sempre se morre desses dois acidentes.
- Mas teu pai e tua mãe não foram mortos?
- É verdade - disse Cunegundes em pranto.
- E teu irmão?
- Meu irmão também foi morto.
- E como estás em Portugal? Corno soubeste que eu aqui estava? E por que estranha aventura me
mandaste trazer a esta casa?
- Tudo Isso direi - respondeu a dama, - mas é preciso que primeiro me contes o que te aconteceu
desde o beijo inocente que me deste e os pontapés que recebeste.
Cândido obedeceu com profundo respeito; e, embora ainda o dominasse a confusão, embora a voz lhe
estivesse fraca e trêmula, embora ainda lhe doesse um pouco a espinha, contou-lhe da maneira mais
singela tudo o que sofrera desde o momento da separação. Cunegundes erguia os olhos ao céu; chorou
pela morte do bom anabatista e de Pangloss. Depois falou nos seguintes termos a Cândido, que não
perdia uma palavra e a devorava com os olhos.

CAPÍTULO XVIII
História de Cunegundes
Estava eu no meu leito e dormia profundamente, quando aprouve aos Céus enviar os búlgaros ao
nosso lindo castelo de Thunder-ten-tronckh; degolaram meu pai e meu irmão e cortaram minha mãe em
pedaços. Um grande búlgaro de seis pés de altura, vendo que eu perdera os sentidos a esse espetáculo,
pôs-se a violar-me; isso me fez recuperar os sentidos, gritei, debati-me, mordi, arranhei, queria arrancar
os olhos do búlgaro, sem saber que tudo o que acontecia no castelo de meu pai era uma coisa costumeira:
o bruto deu-me uma facada no lado esquerdo, de que ainda guardo a cicatriz.
- Ah! quero vê-la - disse o ingênuo Cândido.
- Tu a verás - respondeu Cunegundes, - mas continuemos.
- Continua - disse Cândido.
E Cunegundes assim retomou o fio da história:
- Nisto entrou um capitão búlgaro, viu-me toda ensangüentada, e o soldado não se arredava. O capitão
ficou furioso com a falta de respeito que lhe testemunhava aquele bruto, e matou-o em cima do meu
corpo. Em seguida ordenou que me fizessem os curativos necessários e mandou-me como prisioneira
para o seu acampamento. Eu lavava as poucas camisas que ele tinha e preparava-lhe a comida. O capitão
achava-me bastante bonita, devo confessá-lo; e, quanto a mim, não negarei que ele era muito bem feito
de corpo e tinha a pele branca e suave; mas pouco espírito e pouca filosofia: bem se via que não fora
educado pelo doutor Pangloss. Ao cabo de três meses, depois de ter perdido todo o dinheiro, e já estando
aborrecido de mim, vendeu-me a um judeu chamado dom Issacar, que traficava na Holanda e em
Portugal, e que era louco por mulheres. Esse judeu sentia grande atração por mim, mas não conseguia
vencer-me; resisti-lhe melhor do que ao soldado búlgaro. Quando a gente tem honra, pode ser violada
uma vez, mas com isso ainda mais se fortalece a virtude.
O judeu, para me abrandar, mandou-me para esta casa de campo que tu vês. Até então eu julgara que
não havia nada no mundo mais bonito do que o castelo de Thunder-ten-tronckh; enganava-me.
O grande inquisidor me viu um dia na missa; não tirava os olhos de mim, e me mandou dizer que
precisava falar-me sobre assuntos secretos. Fui levada a palácio; revelei-lhe a minha origem; fez-me ver
o quanto estava abaixo da minha categoria pertencer a um israelita. Propuseram, da sua parte, a dom
Issacar que me cedesse a Monsenhor. Dom Issacar, que é banqueiro da Corte e homem de grande
influência, não se demoveu. O inquisidor ameaçou-o com um auto-de-fé. Afinal o judeu, intimidado,
chegou a um acordo. Ficou combinado que a casa e eu pertenceríamos a ambos, que o judeu disporia das
segundas, terças e sábados, e o inquisidor dos outros dias da semana. Há seis meses que dura essa
convenção. Dificuldades não faltam; pois muitas vezes há controvérsia quanto a saber se a noite de
sábado para domingo pertence à antiga ou à nova lei. Até agora tenho resistido ao judeu e ao inquisidor,
e creio que é por esse motivo que continuo amada por ambos.
Enfim, para afastar o flagelo dos terremotos e intimidar dom Issacar, aprouve a Monsenhor celebrar
um auto-de-fé. Deu-me a honra de me convidar para o espetáculo. Fiquei muito bem colocada; entre a
missa e a execução foram servidos refrescos às damas. Na verdade, estremeci de horror ao ver
queimarem aqueles dois judeus e o honrado biscainho que casara com a comadre; mas qual não foi a
minha surpresa, o meu terror, a minha perturbação quando vi, de sambenito e mitra, um vulto que. se
assemelhava a Pangloss. Esfreguei os olhos, olhei atentamente vi-o pender da forca; tombei desmaiada.

Mal recuperava os sentidos, avistei-te na liça, inteiramente nu: foi o cúmulo do horror, da consternação,
da dor, do desespero. Na verdade te direi que a tua pele é mais clara e de um colorido mais perfeito que a
do meu capitão búlgaro. Essa visão redobrou todos os sentimentos que me aniquilavam, que me
devoravam. Quis gritar: "Basta, bárbaros!", mas faltou-me a voz, e os meus gritos seriam inúteis. Depois
que foste bem açoitado: "Como pode ser - dizia eu comigo - que o amável Cândido e o sábio Pangloss
tenham vindo parar em Lisboa, um para receber cem açoites e outro para ser enforcado, por ordem do
senhor inquisidor, de quem sou amada? Pangloss enganou-me cruelmente quando me dizia que tudo está
o melhor do mundo."
Agitada, desvairada, umas vezes fora de mim, outras vezes a morrer de abatimento, tinha eu a cabeça
cheia do massacre de meu pai, de minha mãe, de meu irmão, da insolência do meu maldito soldado
búlgaro, da facada que ele me deu, da minha escravidão, do meu ofício de cozinheira, do meu maldito
dom Issacar, do meu abominável inquisidor, do enforcamento do doutor Pangloss, daquele miserere em
fabordão durante o qual te açoitavam, e principalmente do beijo que eu te dera atrás de um biombo, no
dia em que te vi pela última vez. Louvei a Deus que te reconduzia a mim depois de tantas provações.
Pedi à minha velha que te cuidasse e te trouxesse para aqui logo que fosse possível. Ela executou muito
bem o meu mandado; gozei do inexprimível prazer de tornar a ver-te, de te ouvir, de te falar. Deves estar
com uma terrível fome; eu estou com muito apetite; comecemos por cear.
Ei-los, pois, que se sentam à mesa; e, depois da ceia, vão para o belo canapé já mencionado; ali
estavam eles quando chega o senhor dom Issacar, um dos donos da casa. Era um sábado. Vinha ele gozar
de seus direitos e dar demonstrações de seu terno amor.

CAPÍTULO IX
Do que aconteceu a Cunegundes, a Cândido, ao Inquisidor e ao judeu.
Esse Issacar era o mais colérico judeu que já se viu em Israel desde o cativeiro de Babilônia.
- Cadela de Galiléia - exclama ele, - então já. não te basta o senhor inquisidor? É preciso que esse
maroto também compartilhe de ti?
Dizendo tais palavras, saca de um longo punhal que sempre trazia consigo e, não imaginando que o
adversário estivesse armado, avança para Cândido; mas o nosso bom vestfaliano recebera uma bela
espada da velha, juntamente com o vestuário completo. Puxa ele da espada, embora fosse de gênio mui
tranqüilo, e estende o israelita morto aos pés de Cunegundes.
- Virgem Santa! - exclama ela. - Que será de nós? um homem assassinado em minha casa! Se vier a
polícia, estamos perdidos.
- Se Pangloss não tivesse sido enforcado - disse Cândido, - nos daria um bom conselho em tal
emergência, pois era um grande filósofo. Na sua falta, consultemos a velha.
Era esta muito prudente e começava a dar sua opinião quando se abriu outra pequena porta. Passava
uma hora da meia-noite e principiava o domingo. Esse dia era do senhor Inquisidor, que entra e vê
Cândido de espada em punho, um cadáver no chão, Cunegundes como louca e a velha a dar conselhos.
Eis o que se passou em tal instante na alma de Cândido e como ele raciocinou: "Se esse santo homem
pede socorro, estou queimado vivo; o mesmo poderá suceder a Cunegundes; ele mandou açoitar-me
impiedosamente; é meu rival; posso matá-lo agora; não há que escolher".
Esse raciocínio foi nítido e instantâneo; e, antes que o inquisidor tivesse tempo de refazer-se da
surpresa, Cândido lhe atravessa o corpo com a espada, e abate-o por terra, ao lado do judeu.
- Mais um - disse Cunegundes, - agora não há mais salvação; estamos excomungados, chegou o nosso
derradeiro instante. Como é que tu, que tens um gênio tão bom, pudeste matar, em dois minutos, um
judeu e um prelado?
- Formosa senhorita - respondeu Cândido, - quando se está enamorado, com ciúmes, e ainda por cima
açoitado pela Inquisição, a gente não se reconhece mais.
A velha tomou então a palavra e disse:
- Há três cavalos andaluzes na estrebaria, com os arreios; que o bravo Cândido os apronte; a senhora
tem pistolas e diamantes: montemos depressa, embora eu apenas possa sentar de um lado só, e vamos
para Cádiz; está fazendo o mais belo tempo do mundo, e assim é um prazer viajar de noite.
Cândido em seguida arreia os três cavalos. Cunegundes, a velha e ele fazem três milhas de um fôlego.
Enquanto se afastavam, chega a Santa Hermandad à casa do campo: enterram Monsenhor numa bela
igreja e lançam Issacar no monturo.
Cândido, Cunegundes e a velha estavam agora na aldeia de Avicena, em meio à Sierra Morena; e
assim falavam, numa hospedaria.

CAPÍTULO X
Da situação em que chegam os três a Cadiz e do seu embarque.
- Quem me teria roubado as minhas pistolas e os meus diamantes? - soluçava Cunegundes. - De que
viveremos? Que faremos nós? Onde vou encontrar inquisidores e judeus que me dêem mais jóias e
dinheiro?
- Desconfio muito - disse a velha - de um reverendo franciscano que pousou ontem em Badajos, no
mesmo albergue em que paramos. Deus me livre de formar um juízo precipitado! Mas o fato é que ele
entrou duas vezes em nosso quarto e partiu muito antes de nós.


- E o bom Pangloss - suspirou Cândido, - que tantas vezes me provou que os bens terrenos são
comuns a todos os mortais! Segundo esses princípios, bem que o franciscano podia deixar-nos alguma
coisa para que prosseguíssemos viagem...
- Quer dizer que não te resta coisa alguma, linda Cunegundes?
- Nem um maravedi.
- É vender um dos cavalos - propôs a velha. - Irei à garupa da senhorita, embora apenas me possa
sentar de um lado só. E assim chegaremos a Cádiz.
Havia no mesmo albergue um prior beneditino, que lhes comprou o cavalo por uma ninharia.
Cândido, Cunegundes e a velha passaram por Lucena, por Chulas, por Lebrixa, e chegaram enfim a
Cádiz. Ali se equipava uma frota e reuniam-se tropas para chamar à razão os reverendos padres jesuítas
do Paraguai, aos quais acusavam de haverem revoltado uma de suas hordas, em Sacramento, contra os
reis de Espanha e Portugal. Tendo servido com os búlgaros. Cândido fez os respectivos exercícios, diante
do general do pequeno exército, com tanta graça, presteza, agilidade e garbo, que lhe deram o comando
de uma companhia de infantes. Ei-lo capitão; embarca com a senhorita Cunegundes, a velha, dois criados
e os dois cavalos andaluzes que haviam pertencido ao senhor inquisidor-mor de Portugal.
Durante toda a travessia, discutiram multo sobre a filosofia do pobre Pangloss.
Vamos para um outro universo - dizia Cândido. - É lá sem dúvida que tudo está bem. Pois cumpre
confessar que em nosso mundo não faltava o que chorar quanto ao lado físico e moral das coisas.
- Amo-te de todo o coração - dizia Cunegundes, - mas ainda sinto a alma aterrada de tudo quanto. vi e
experimentei
- Tudo irá bem - replicava Cândido. - Só o mar desse novo mundo já vale mais que os mares da nossa
Europa: é mais calmo, e os ventos mais constantes. Não há dúvida alguma de que o novo mundo é que é
o melhor dos universos possíveis
- Deus o queira! - dizia Cunegundes. - Mas fui tão horrivelmente infeliz no meu, que meu coração
está quase fechado à esperança.
- Ainda se queixam! - disse-lhes a velha. - Mas não passaram nem pela metade do que eu já sofri.
Cunegundes quase chegou a rir, pela pretensão daquela boa mulher, em ser mais infeliz do que ela.
- Ora, minha velha! A menos que tenhas sido violada por dois búlgaros, que tenhas recebido duas
facadas na barriga, que destruíssem dois de teus castelos, que hajam degolado na tua frente duas mães e
dois pais e que tenhas visto dois dos teus pretendentes açoitados num auto-de-fé, não vejo como poderás
ganhar de mim; e não te esqueças que nasci baronesa de setenta e dois quartéis e cheguei a cozinheira.
- Bem vejo - retrucou a velha - que a senhorita ignora o meu nascimento; e, se eu lhe mostrasse o meu
traseiro, não falaria assim e suspenderia o seu juízo. Tais palavras deixaram Cunegundes e Cândido
extremamente curiosos. E a velha lhes falou nos seguintes termos.

CAPÍTULO XI
História da velha
Nem sempre tive os olhos empapuçados e debruados de vermelho; nem sempre o meu nariz tocou no
queixo, e nem sempre fui criada. Sou filha do Papa Urbano X e da princesa de Palestrina. Criaram-me,
até os catorze anos, em um palácio junto do qual todo, os castelos dos barões alemães não serviriam para
estábulo; e um só de meus vestidos valia mais que todas as magnificências da Vestfália. Crescia em
beleza, em graça, em talentos, em meio dos prazeres, dos respeitos e das esperanças. Já inspirava amor,
meu seio se formava; e que seio! branco, firme, talhado como o da Vênus de Médicis; e que olhos! que
pálpebras! que negras pestanas! que flamas brilhavam nas minhas duas pupilas, que apagavam a
cintilação das estrelas, como me diziam os poetas da vizinhança. As mulheres que me vestiam e despiam
caíam em êxtase ao olhar-me por diante e por trás, e todos os homens desejariam estar no lugar delas.
Fiquei noiva de um príncipe soberano de Massa-Carrara! Que príncipe! tão belo como eu, cheio de
encantos e virtudes, brilhante de espírito e ardente de amor. Eu o amava como se ama da primeira vez,
com idolatria, com arrebatamento. Prepararam-se as núpcias. Era uma pompa, uma magnificência
inaudita; eram festas, cavalhadas, óperas-bufas contínuas; e toda a Itália me compôs sonetos, dos quais
não havia um único que fosse passável. Aproximava-se o instante da minha felicidade, quando uma velha
marquesa que fora amante de meu príncipe convidou-o a tomar chocolate com ela. Morreu em menos de
duas horas, em terríveis convulsões. Mas isso não passou de uma bagatela. Minha mãe, desesperada, e
não menos aflita do que eu, resolveu afastar-se, por algum tempo, de lugar tão funesto. Possuía uma bela
propriedade nos arredores de Gaeta. Embarcamos numa galera do Estado, dourada como o altar de S.
Pedro em Roma. Eis que um corsário de Sales nos ataca. Nossos soldados defenderam-se como soldados
do Papa: tombaram de joelho., soltando as armas, e pedindo ao corsário uma absolvição in articulo
mortis.
Em seguida os deixaram nus como macacos, e à minha mãe também, e às nossas aias, e a mim
também. E uma coisa admirável a presteza com que esses indivíduos despem a gente. Mas o que mais me
surpreendeu foi que nos meteram o dedo em um lugar onde nós, mulheres, geralmente só deixamos
introduzir cânulas. Tal cerimônia me pareceu muito estranha: eis como a gente julga as coisas quando
nunca saiu da terra natal. Soube logo que era para ver se não tínhamos ocultado ali alguns diamantes: é
um uso estabelecido, desde tempos imemoriais, entre as nações civilizadas que exercem a navegação.

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