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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Cândido - Voltaire [PARTE 1]


CAPÍTULO I

De como foi Cândido criado em um lindo castelo, e como dali o escorraçaram
Havia em Vestfália, no castelo do senhor barão de Thunder-ten-tronckh, um jovem a quem a natureza
dotara da índole mais suave. Sua fisionomia lhe anunciava a alma. Era reto de juízo e simples de espírito,
razão pela qual, creio eu, o chamavam de Cândido. Suspeitavam os velhos criados que fosse filho da
irmã do senhor barão e de um bom e honrado gentil-homem da vizinhança, com quem esta jamais
consentira em casar-se, porque ele só pudera alegar setenta e uma gerações, havendo as injúrias do tempo
destruído o resto da sua arvore genealógica.
Era o senhor barão um dos mais poderosos senhores de Vestfália. Sua sala de honra ostentava, até,
uma tapeçaria. Todos os seus cães, reunidos, formavam, em caso de precisão, uma boa matilha; o vigário
da aldeia era o seu esmoler-mor. Tratavam-no todos por Monsenhor e riam quando ele contava histórias.
A senhora baronesa, que pesava cerca de trezentas e cinqüenta libras, granjeava com isso enorme
consideração, e fazia as honras da casa com uma dignidade que a tornava ainda mais respeitável. Sua
filha Cunegundes, que contava dezessete anos, era corada, fresca, rechonchuda, apetitosa. O filho do
barão parecia em tudo digno do pai. o preceptor Pangloss era o oráculo da casa, e o pequeno Cândido
escutava as suas lições com toda a boa fé da sua idade e do seu caráter.
Pangloss ensinava metafísico - teólogo - cosmolonigologia. Provava admiravelmente que não há
efeito sem causa e que, neste que é o melhor possível dos mundos, o castelo do senhor barão era o mais
belo possível dos castelos e a senhora a melhor das baronesas possíveis.
Está demonstrado, dizia ele, que as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito
para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim. Queiram notar que os narizes foram
feitos para usar óculos, e por isso nós temos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para as
calças, e por isso temos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas e edificar castelos, e por isso
Monsenhor tem um lindo castelo; o mais considerável barão da província deve ser o mais bem alojado; e,
como os porcos foram feitos para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro: por conseguinte,
aqueles que asseveravam que tudo está bem disseram uma tolice; deviam era dizer que tudo está o
melhor possível. 

Cândido ouvia com toda a atenção e acreditava inocentemente; pois achava a senhorita Cunegundes
extremamente formosa, embora jamais se atrevesse a lho dizer. Concluía que, depois da ventura de ter
nascido barão de Thunder-ten-tronckh, o segundo grau de felicidade consistia em ser mademoiselle
Cunegundes; o terceiro, em vê-la todos os dias; e o quarto, em ouvir mestre Pangloss, o maior filósofo da
província, e por conseguinte de toda a terra.
Um dia, em que passeava nas proximidades do castelo, pelo pequeno bosque a que chamavam parque,
Cunegundes viu entre as moitas o doutor Pangloss que estava dando uma lição de física experimental à
camareira de sua mãe, moreninha muito bonita e dócil. Como a senhorita Cunegundes tivesse grande
inclinação para as ciências, observou, sem respirar, as repetidas experiências de que foi testemunha; viu
com toda a clareza a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e regressou toda agitada e
pensativa, cheia do desejo de se tornar sábia, e pensando que bem poderia ela ser a razão suficiente do
jovem Cândido, o qual também podia ser a sua.
Encontrou Cândido ao voltar para o castelo, e enrubesceu; Cândido também corou; ela
cumprimentou-o com voz entrecortada, e Cândido falou-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte,
depois do jantar, Cunegundes e Cândido encontraram-se atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o
lenço, Cândido apanhou-o, ela tomou-lhe inocentemente a mão, o jovem beijou inocentemente a mão da
moça com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda especial; suas bocas encontraram-se, seus
olhos fulguraram, seus joelhos tremeram, suas mãos perderam-se... Ora, o senhor barão de
Thunder-ten-tronckh passou junto ao paravento e, vendo aquela causa e aquele efeito, correu Cândido do
castelo, a pontapés no traseiro; Cunegundes desmaiou; logo que voltou a si, foi esbofeteada pela senhora
baronesa; e houve a maior consternação no mais lindo e mais agradável dos castelos possíveis.

CAPÍTULO II
Do que sucedeu a Cândido entre os búlgaros
Cândido, expulso do paraíso terrestre, caminhou muito tempo sem saber por onde andava, chorando,
erguendo os olhos ao céu, voltando-os seguidamente para o mais lindo dos castelos que encerrava a mais
linda das baronesinhas. Deitou-se, sem comer, em pleno campo, entre dois sulcos de lavoura, enquanto
caia neve em grandes flocos. Cândido, transido, arrastou-se no dia seguinte até a aldeia próxima, que se
chama Valberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morto de fome e de cansaço. Parou tristemente à porta
de uma estalagem. Dois homens trajados de azul deram com os olhos nele:
- Camarada - disse um, - eis ali um rapaz de bom corpo e que tem a altura requerida.

Dirigiram-se a Cândido e convidaram-no polidamente para almoçar.
- Senhores - lhes disse Cândido com encantadora modéstia, - concedem-me uma grande honra, mas na
verdade não tenho com que pagar a minha parte.
- Ah! senhor - retrucou um dos de azul, - as pessoas do seu porte e do seu merecimento nunca pagam
nada: pois o amigo não tem cinco pés e cinco polegadas!
- Sim, é essa a minha altura - disse ele, fazendo uma reverência.
- Ah! senhor, sente-se à mesa; não só lhe pagaremos tudo, mas jamais, consentiremos que um homem
como o senhor ande sem dinheiro; os homens foram feitos apenas para auxiliarem uns aos outros.
- Os senhores têm toda razão - concordou Cândido.
- Foi o que sempre me disse o senhor Pangloss, e bem vejo que tudo está o melhor possível.
Pedem-lhe que aceite alguns escudos; ele os embolsa e quer passar recibo; não lho consentem, e
sentam-se os três à mesa:
- O senhor não ama ternamente?...
- Oh! sim - respondeu ele, - amo ternamente a senhorita Cunegundes.
- Não - diz um deles, - nós perguntamos se não ama ternamente ao rei dos búlgaros.
- Absolutamente - retruca ele, - pois nunca o vi.
- Como! É o mais encantador dos reis, e devemos erguer-lhe um brinde.
- Oh! com muito gosto, senhores.
E Cândido bebe à saúde do rei.
- Isso basta - dizem-lhe. - O senhor agora é o apoio, o sustentáculo, o defensor, o herói dos búlgaros;
sua fortuna está feita e sua glória assegurada.
Em seguida aplicam-lhe cadeias aos pés e o levam para o regimento. Fazem-lhe volver à direita , à
esquerda, tirar a vareta, botar a vareta, - deitar por terra, atirar, correr, e dão-lhe trinta bastonadas; no dia
seguinte, faz o exercício um pouco menos mal e só recebe vinte bastonadas; no outro dia só recebe dez, e
é olhado pelos camaradas como um verdadeiro prodígio.
Cândido, estupefato, ainda não atinava muito bem como poderia ser um herói. Por um belo dia de
primavera, lembrou-se de dar um passeio e seguiu direito em frente, na crença de que era um privilégio
da espécie humana, como da espécie animal, servir-se das próprias pernas como bem lhe aprouvesse.
Ainda não andara duas léguas, quando quatro outros heróis de seis pés o alcançam, amarram-no bem
amarrado, e o metem num calabouço. Perguntaram-lhe juridicamente se preferia ser fustigado trinta e
seis vezes por todo o regimento ou receber, em uma só descarga, trinta e seis balas de chumbo na cabeça.
Por mais que Cândido alegasse que a vontade humana é livre, teve de fazer a escolha; resolveu, então,
em virtude desse dom de Deus a que chamam liberdade, ser passado trinta e seis vezes pela vara.
Agüentou dois turnos.
O regimento compunha-se de dois mil homens; isso lhe valera, até então, quatro mil varadas que, da
nuca ao traseiro, lhe puseram a descoberto todos os músculos e nervos.
Quando iam dar início ao terceiro, Cândido, não podendo mais, pediu por misericórdia que tivessem a
bondade de lhe arrebentar os miolos. Concedem-lhe esse favor; vendam-lhe os olhos e fazem-no
ajoelhar-se. Nesse momento passa o rei dos búlgaros, informa-se do crime do paciente; e, como esse rei
tinha um grande gênio, compreendeu, por tudo quanto soube de Cândido, que se tratava de um jovem
metafísico, muito ignorante das coisas deste mundo, e concedeu-lhe a sua graça com uma demência que
será louvada em todos os jornais e em todos os séculos. Um bravo cirurgião curou Cândido em três
semanas, com emolientes recomendados por Dioscórides. Tinha já um pouco de pele e podia amar,
quando o rei dos búlgaros travou batalha com o rei dos abaros.

CAPÍTULO III
De como Cândido escapou aos búlgaros, e do que lhe sucedeu depois.
Nada tão belo, tão lesto, tão brilhante, tão bem ordenado como aqueles dois exércitos. As trombetas,
os pífanos, os oboés, os tambores, os canhões, formavam uma harmonia como jamais a houve no inferno.
Primeiro os canhões derrubaram cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida a mosquetaria varreu
do melhor dos mundos uns nove a dez mil marotos que lhe infetavam a superfície. A baioneta foi
também a razão suficiente da morte de alguns milhares de homens. O que tudo montava a umas trinta mil
almas. Cândido, que tremia como um filósofo, ocultou-se o melhor que pôde durante aquela heróica
mortandade.
Enfim, enquanto os dois reis mandavam cantar Te Deuns cada qual no seu campo tomou ele o partido
de ir raciocinar alhures sobre os efeitos e as causas. Passou por cima de montões de mortos e
moribundos, e alcançou primeiro uma aldeia vizinha; estava reduzida a cinzas: era uma aldeia abara que
os búlgaros haviam queimado, conforme as leis do direito público. Aqui, velhos crivados de golpes viam
agonizar suas mulheres degoladas de cujo ensangüentado seio pendiam crianças; além, soltavam os
último suspiros raparigas destripadas: depois de haverem saciado os desejos naturais de alguns heróis;
outras, meio queimadas, gritavam que lhes acabassem de vez com a vida. Miolos se espalhavam sobre a
terra, ao lado de pernas e braços amputados.
Cândido fugiu o mais depressa possível para outra aldeia: pertencia aos búlgaros, e os heróis abaros a
tinham tratado da mesma forma. Cândido, sempre a andar por sobre membros palpitantes ou através de
ruínas, deixou enfim o teatro da guerra, levando algumas provisões no alforje e sem nunca esquecer a
senhorita Cunegundes. Acabaram-se-lhe as provisões ao chegar à Holanda; mas, tendo ouvido dizer que
nesse país todos eram ricos e verdadeiramente cristãos, não duvidou que o tratassem tão bem como no
castelo do senhor barão, antes de ser dali escorraçado por amor dos lindos olhos da senhorita
Cunegundes.

Pediu esmola a vários personagens de ar grave e todos lhe responderam que, se continuasse a exercer
tal ofício, o mandariam encerrar numa casa de correção, para ensinar-lhe a viver direito.
Dirigiu-se depois a um homem que acabava de falar sozinho uma hora inteira sobre a caridade,
perante uma grande assembléia. Esse homem, olhando-o de soslaio, indagou:
- Que vieste fazer aqui? - És pela boa causa?
- Não há efeito sem causa - respondeu modestamente Cândido, - tudo está perfeitamente encadeado e
arranjado o melhor possível Foi preciso que eu tivesse sido expulso de junto da senhorita Cunegundes e
passado pelas varas, e é preciso que eu esmole o meu pão antes que possa ganhá-lo; nada disso poderia
ser de outro modo.
- Meu amigo - perguntou o orador, - acreditas que o Papa seja o Anticristo?
- Ainda não o ouvira dizer - respondeu Cândido. - Mas, que o seja ou não seja, o fato é que eu não
tenho pão.
- Nem mereces comê-lo - retrucou o outro. - Anda, biltre, miserável! Desaparece das minhas vistas!
A mulher do orador, chegando à janela e vendo um homem que duvidava que o Papa fosse o
Anticristo, despejou-lhe na cabeça todo o conteúdo de um... Ó céus! a que excessos não levam as damas
o seu zelo religioso!
Um homem que ainda não fora batizado, um bom anabatista, chamado Jaques, viu de que maneira
cruel e ignominiosa era tratado um de seus irmãos, um bípede implume, que possuía uma alma; levou-o
para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, presenteou-o com dois florins, e até quis ensinar-lhe a
trabalhar na sua manufatura de tecidos da Pérsia fabricados na Holanda. Cândido, quase a prosternar-se
diante dele, exclamava: "Bem me dizia Mestre Pangloss que tudo está o melhor possível neste mundo,
pois sinto-me infinitamente mais tocado com a sua extrema generosidade do que com a dureza daquele
senhor de negro e da senhora sua esposa?
No dia seguinte, ao passear, encontrou um mendigo coberto de pústulas, os olhos mortiços, a ponta do
nariz carcomida, a boca de viés, os dentes negros, falando pela garganta sacudido de acessos de tosse e
cuspindo um dente a cada esforço.

CAPÍTULO IV
De como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, o doutor Pangloss, e do
que sucedeu
Cândido, mais tocado ainda de compaixão que de horror, deu àquele espantoso mendigo os dois
florins que recebera do bom anabatista. O fantasma olha-o fixamente, derrama lágrimas, e salta-lhe ao
pescoço. Cândido, horrorizado, recua.
- Ai! - diz o miserável ao outro miserável, - então não reconheces mais o teu caro Pangloss?
- Que ouço? Tu, o meu querido mestre! Tu, nesse horrendo estado! Que desgraça te aconteceu? Por
que não estás ainda no mais lindo dos castelos? Que foi feito da senhorita Cunegundes, a pérola das
donzelas, a obra-prima da natureza?
- Não posso mais comigo - gemeu Pangloss.
Cândido o levou para o estábulo do anabatista, onde lhe deu a comer um pouco de pão. E, depois que
Pangloss se refez:
- Então - disse ele, - e Cunegundes?
- Morreu.
A esta palavra, Cândido perdeu os sentidos; o amigo o fez voltar a si com um pouco de mau vinagre
que havia por acaso no estábulo. Cândido reabre os olhos:
- Cunegundes morta! Oh! onde é que estás, ó melhor dos mundos? Mas de que morreu? Não seria por
me ter visto expulsar a pontapés do castelo do senhor seu pai?
- Não - disse Pangloss. - Ela foi estripada por soldados búlgaros, depois de ter sido violada o mais
possível; rebentaram a cabeça do senhor barão, que queria defendê-la; a senhora baronesa foi cortada em
pedaços; o meu pobre pupilo, tratado precisamente como a irmã e quanto ao castelo, não ficou pedra
sobre pedra, nem uma granja, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore; mas fomos bem
vingados, pois os abaros fizeram o mesmo em uma baronia vizinha que pertencia a um senhor búlgaro.
Ao ouvir tais coisas, Cândido desmaiou outra vez; mas, voltando a si, e tendo dito tudo o que devia
dizer, Indagou da causa e do efeito, e da razão suficiente que pusera Pangloss em tão lastimável estado.
- Ai! - suspirou o outro. - Foi o amor; -, amor, o consolador do gênero humano, o conservador do
universo, a alma de todos os seres sensíveis, o terno amor.
- Ai! - disse Cândido. - Eu o conheci, esse amor, esse soberano dos corações, essa alma da nossa
alma: nunca me rendeu mais que um beijo e vinte pontapés por detrás. Como pôde essa bela causa
produzir, na tua pessoa, tão abominável efeito?
Pangloss respondeu nos seguintes termos:
- Ó meu caro Cândido! Bem conheceste Paquette, a linda criadinha da nossa augusta baronesa; gozei
nos seus braços as delícias do paraíso, que produziram em mim estes tormentos do inferno de que me vês
devorado; ela estava infetada e talvez tenha morrido disso. Paquette ganhara esse presente de um
franciscano muito erudito, que havia remontado à fonte, pois o adquirira de uma velha condessa, que o
recebera de um capitão de cavalaria, que o devia a uma marquesa, que a tinha de um pajem, que o tomara
de um jesuíta que, quando noviço, o herdara em linha reta de um dos companheiros de Cristóvão
Colombo. Quanto a mim, não o passarei a ninguém, pois estou para morrer. Ó Pangloss! - exclamou
Cândido. - Que, estranha genealogia! Não seria o diabo que foi o tronco?


- Qual! - replicou o grande homem. - Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um
ingrediente necessário: pois, se Colombo não tivesse apanhado em uma ilha da América essa doença que
envenena a fonte da geração, e que é evidentemente o oposto da grande finalidade da natureza, nós não
teríamos nem chocolate nem cochonilha; cumpre observar que até hoje, no nosso continente, esta doença
nos é peculiar, como a controvérsia, os turcos, os hindus, os pernas, os chins, os siameses, os nipônicos,
ainda não a conhecem; mas há uma razão suficiente para que a conheçam, por sua vez, em alguns
séculos. Enquanto isto, vai ela fazendo um maravilhoso progresso entre nós, e principalmente nesses
grandes exércitos compostos de honrados mercenários, tão bem educados, que decidem do destino das
nações; pode-se assegurar que, quando trinta mil homens combatem em formação contra tropas iguais
em número, há cerca de vinte mil contaminados em cada campo.
- Admirável disse Cândido, mas é preciso que te cures.
- Mas como? Não tenho um vintém, meu amigo; e, em toda a extensão deste globo, não me pode nem
fazer uma sangria, nem tomar uma lavagem, sem pagar, ou sem que haja alguém que pague por nós.
Estas últimas palavras decidiram Cândido; foi lançar-se aos pés do caridoso anabatista Jaques e
fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que se achava reduzido o seu amigo, que o nosso homem
não hesitou em recolher o doutor Pangloss; mandou-o tratar à sua custa. Pangloss, com a cura, só perdeu
um olho e uma orelha. Como tinha boa letra e sabia aritmética, o anabatista empregou-o como
guarda-livros. Dois meses depois, sendo obrigado a ir a Lisboa a negócios, embarcou consigo os dois
filósofos. Pangloss explicou-lhe como tudo marchava o melhor possível. Jaques não era dessa opinião.
- Está visto - dizia ele - que os homens corromperam um pouco a natureza, pois não nasceram lobos, e
tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões nem baionetas, e eles fabricaram baionetas e canhões
para se aniquilarem. Eu poderia ainda levar em conta as falências, e a justiça, que se apodera dos bens
dos falidos para ludibriar os credores.
- Tudo isso era indispensável - replicava o doutor caolho, - e os males particulares constituem o bem
geral, de sorte que, quanto mais males particulares houver, tanto melhor irão as coisas.
Enquanto assim arrazoava, o céu escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do mundo, e o
navio foi assaltado pela mais tremenda tempestade, à vista do porto de Lisboa.

CAPÍTULO V
Da tempestade, naufrágio, terremoto, e do que sucedeu ao doutor Pangloss, a Cândido
e ao anabatista Jaques.
- Metade dos passageiros, enfraquecidos, agoniados com a inconcebível indisposição em que a
instabilidade de um navio deixa a todos os nervos e humores do corpo, agitados em sentidos contrários,
não tinham nem mesmo forças para inquietar-se com o perigo. A outra metade soltava gritos e rezava; as
velas estavam rotas, os mastros quebrados, o navio fendido. Trabalhava quem pudesse, ninguém se
entendia, ninguém comandava, o anabatista auxiliava um pouco a manobra; achava-se no convés; um
marinheiro furioso bate-lhe rudemente e derruba-o sobre as pranchas, mas, com o golpe que lhe deu, caiu
ele próprio para fora do navio, ficando suspenso a um toco de mastro. O bom Jaques corre em seu
auxílio, ajuda-o a subir e, com o esforço que faz, é precipitado no mar, sem que o marinheiro fizesse o
mínimo gesto para salvá-lo. Cândido aproxima-se, vê o seu benfeitor que reaparece um momento à tona e
é tragado para sempre. Quer lançar-se ao mar, mas Pangloss lho impede, provando-lhe que a enseada de
Lisboa fora feita expressamente para afogar o anabatista. Enquanto o provava a priori, o navio parte-se
ao meio e todos perecem, com exceção de Pangloss, de Cândido e do brutal marinheiro que afogara o
virtuoso anabatista; o facínora nadou até a margem, onde Pangloss e Cândido arribaram, agarrados a uma
tábua.
Depois que se refizeram um pouco, encaminharam-se para Lisboa; restava-lhes algum dinheiro, com o
qual esperavam salvar-se da fome, depois de haverem escapado à tempestade.
Mal entravam na cidade, chorando a morte do benfeitor, quando sentem o solo tremer sob os seus pés;
o mar, furioso, galga o porto e despedaça os navios que ali me acham ancorados. Turbilhões de chama e
cinza cobrem as ruas e praças públicas; as casas desabam; abatem-se os tetos sobre os alicerces que se
abalam; trinta mil habitantes são esmagados sob as ruínas. Assobiando e praguejando, dizia consigo o
marinheiro: - Muito há que aproveitar aqui. - Qual poderá ser a razão suficiente deste fenômeno? -
indagava Pangloss.
Chegou o último dia do mundo! exclamava Cândido. O marinheiro corre imediatamente para o meio
dos destroços, afronta a morte em busca de dinheiro, acha-o, embriaga-se; depois de cozinhar a
bebedeira, compra os favores da primeira rapariga de boa vontade que encontra sobre as ruínas das casas
e em meio dos mortos e moribundos. Enquanto isto, Pangloss puxava-o pela manga. - Meu amigo -
dizia-lhe, - isto não está direito, ofendes a razão universal, empregas muito mal o teu tempo. - Com os
diabos! - responde o outro, - sou marinheiro e nasci em Batávia; marchei quatro vezes sobre o crucifixo,
em quatro viagens que fiz ao Japão; e ainda me vens com a razão universal!

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