12 de Out
Pode-se, é verdade, ler os jornais à noite, e assim matar o
tempo. Mas como deixar resfriar noticias importantes? Vá que o façamos nos dias
em que eles, para acudir aos cochilos da agência Havas, transcrevem da Nación,
de Buenos Aires, notícias telegráficas da vida política e internacional do
mundo; mas como fazê-lo, quando, ainda há dias, a mesma agência nos comunicou
este caso grave: "Adelina Patti ganhou o processo de divórcio contra o seu
marido, o Marquês de Caux".
Façam-me o favor de dizer com que cara ficaria um homem que
se respeita, andando pela rua, e ouvindo perguntar a todos se sabiam do grande
sucesso, do sucesso indescritível e incomensurável, o sucesso dos sucessos:
Adelina e Caux estão judicialmente separados. - Não me diga isto!- É o que lhe
digo: estão separados.
Tudo isto me levou a propor um divertimento barato para as
famílias honestas e econômicas, um jogo de prendas. Não se riam: o jogo de
prendas já foi o nosso teatro lírico.
Joga-se com qualquer número de pessoas, mas nunca menos de
dez. Podem ser vinte, trinta, quarenta, e quanto mais melhor. Cada pessoa
escolhe um personagem. Um é o vigário, outro o sacristão, outro o sineiro, outro
o moleque do vigário, outro o coadjutor, outro o barbeiro, e etc. Chama-se o
roubo do consulado. Joga-se completamente às escuras.
O diretor do jogo coloca-se no meio da sala e conta que,
tendo desaparecido as sobrepelizes da igreja, é provável que estejam na casa da
costureira do vigário. Acode a costureira:
- Mentes tu!
-Onde estavas tu?
- Estava em casa do sineiro.
Acode o sineiro:
- Mentes tu!
- Onde estavas tu?
- Em casa do sacristão.
Contesta o sacristão:
- Mentes tu!
- Onde estavas tu?
- Estava em casa do coadjutor.
E assim por diante até correr a roda toda. Acabada a roda,
volta-se ao princípio, e repete-se a mesma cousa com os mesmos personagens, até
dez e meia ou onze horas, que é boa hora de cear e dormir.
Há uma particularidade neste jogo: é que ninguém paga
prenda. Dei-lhe o nome de jogo de prendas tão-somente para definir um
divertimento de família. Ninguém paga nada. Quando acontece que algum dos
personagens não responde à citação, a obrigação do outro é repetir o nome, até
que ele responda. Uma vez respondido, passa-se adiante.
Escusado é dizer que as sobrepelizes não aparecem nunca: são
apenas uma convenção.
Por ser que lhe mude o nome, dizem-me que inquérito é melhor
que roubo do consulado, justamente por não se falar em consulado; mas confesso
que pus este disparate do nome para Lhe dar alguma graça.
Qualquer que seja o nome, cuido que ficará popular nestas
noites úmidas e aborrecidas. Tem a vantagem de não cansar. Faz-se uma noite,
repete-se na noite seguinte, sem fatigar absolutamente nada: é muito superior
ao da berlinda e não obriga ninguém a ir para ela.
[8 setembro]
As FESTAS da independência, este ano, são devidas
especialmente Câmara Municipal, e devem ser-lhe levadas em conta, quando se
houver de julgá-la. Valha por isso, que valerá bastante.
O que se lhe dispensava era envolver nas festas um epigrama.
Não digo que um epigramazinho bem afiado não tenha seu lugar; .mas a ocasião é
que era inoportuna.
A Câmara tinha de mandar pintar um quadro e abriu
concorrência. Vários foram os pintores que acudiram ao chamado do edital,
declarando na forma dele os preços. A Câmara examinou não os quadros, que os
não há ainda, nem esboços, examinou os preços e escolheu o mais barato.
Com franqueza, a Câmara não tinha o direito de ser cruel,
mormente agora que nos convida a celebrar a nossa data nacional.
Para que vir dizer-nos que somos Cartago e não Atenas? que o
preço módico é o nosso princípio estético? etc., etc. Supõe a Câmara que o sabe
melhor do que nós mesmos? Não; nós o sabemos e confessamos. A diferença é que o
confessamos com humildade e franqueza, e isto mesmo indica que temos aptidão
para a emenda, e que (com o favor de Deus) havemos de emendar-nos um dia.
Não se pode ser tudo ao mesmo tempo, César e João Fernandes.
Vamos sendo João Fernandes, por ora-o comendador João Fernandes; dia virá em
que sejamos César.
Também não gostei que a Câmara agravasse o epigrama com uma
razão administrativa e um conselho de caçoada. A razão é que lhe cabe zelar os
dinheiros municipais e o conselho é o que deu um dos vereadores para que o
concurso fosse decidido por uma comissão de artistas. Nem um nem outro valeu
muito; a razão, porque a Câmara não tratava de calcar a minha rua, necessidade
urgente e da natureza daquela em que toda a economia é beneficio;-o conselho,
porque, se os artistas é que haviam de decidir, então eles é que deveria:
estar na Câmara.
Digo isto, sem o menor espírito de zanga, por mais que me
sinta mortificado. Digo só porque não quisera que, quando a Câmara celebra o
grande dia nacional por um modo elevado como a emancipação de escravos, nos
desfechasse um golpe destes.
Eu, pelo que me toca, se não dou, nem dei nunca mais de
quinze mil-réis por um quadro, seja ele do diabo, é fora de dúvida que sei
honrar os que tenho com molduras riquíssimas, largas, todas douradas e já me
lembrou pôr duas grandes esmeraldas em um deles, mas o De-Wilde, com quem me
entendo nestas coisas, disse-me que não se usa. E por isso que trago as
esmeraldas na corrente do relógio.
E faço isso sem diferençar méritos, em que não entro, faço a
todos os quadros que possuo, ainda os que um sobrinho meu costuma dizer que são
pratos de erva. Pratos de ervas, vá ele! Se o fossem, já cá estariam no bucho,
há muito tempo, e as molduras passariam a outros, que andam bem precisados
delas.
13 de Out
Outra prova de que não desadoro as artes é o dinheiro surdo
que o Teatro Lírico me tem comido; tão surdo que, por mais que o chamasse
depois, nunca me ouviu nem voltou cá. E as minhas pequenas ainda gostam mais do
que eu, porque eu e alguns amigos, um dia irritados com o Ferrari, pateamos o
Dom João de Mozart, e elas em casa disseram-me que andei mal, e fiquei com a
cara à banda mas. repito. não foi nada com o Ferrari, foi com o Mozart. Ou o
contrário. não me lembra bem.
Portanto, a Câmara, já pelo que toca a outros, já pelo que
me toca especialmente, foi injusta e cruel. Que seja econômica e zele os nossos
dinheiros, não serei eu que lho tire da cabeça; mas tudo se pode fazer sem
ofensa a ninguém, mesmo ainda de quem vendeu os seus votos e está disposto a
dar-lhos. contanto que, como hoje, resgate brilhantemente alguns dos seus
erros.
[5 outubro]
MAL ADIVINHAM os leitores onde estive sexta-feira. Lá vai,
estive na sala da Federação Espírita Brasileira, onde ouvi a conferência que
fez o Sr. M. F. Figueira sobre o espiritismo.
Sei que isto, que é uma novidade para os leitores, não o é
menos para própria Federação, que me não viu, nem me convidou; mas foi isto
mesmo que me converteu à doutrina, foi este caso inesperado de lá entrar.
ficar, ouvir e sair, sem que ninguém desse pela coisa.
Confesso a minha verdade. Desde que li em um artigo de um
ilustre amigo meu, distinto médico a lista das pessoas eminentes que na Europa
acreditam no espiritismo, comecei a duvidar da minha dúvida. Eu, em geral,
creio em tudo aquilo que na Europa é acreditado. Será obcecação, preconceito,
mania, mas é assim mesmo, e já agora não mudo, nem que me rachem. Portanto,
duvidei, e ainda bem que duvidei de mim.
Estava à porta do espiritismo: a conferência de sexta-feira
abriu-me a sala de verdade.
Achava-me em casa, e disse comigo, dentro d'alma, que, se me
fosse dado ir em espírito à sala da Federação, assistir à conferência, jurava
converter-me à doutrina nova.
De repente, senti uma coisa subir-me pelas pernas acima,
enquanto outra coisa descia pela espinha abaixo; dei um estalo e achei-me em
espírito, no ar. No chão jazia o meu triste corpo, feito cadáver. Olhei para um
espelho. a ver se me via. e não vi nada; estava totalmente espiritual. Corri à
janela, saí, atravessei a cidade, por cima das casas, até entrara na sala da
Federação.
Lá não vi ninguém, mas é certo que a sala estava cheia de
espíritos, repimpados em cadeiras abstratas. O presidente, por meio de uma
campainha teórica, chamou a atenção de todos e declarou abertos os trabalhos. O
conferente subiu à tribuna, traste puramente racional, levantaram-lhe um copo
d'água hipotético, e começou o discurso.
Não ponho aqui o discurso, mas um só argumento. O orador
combateu as religiões do passado, que têm de ser substituídas todas pelo
espiritismo, e mostrou que as concepções delas não podem mais ser admitidas,
por não permiti-lo a instrução do homem; tal é, por exemplo, a existência do
diabo. Quando ouvi isto, acreditei deveras. Mandei o diabo ao diabo, e aceitei
a doutrina nova, como a última e definitiva.
Depois, para que não dessem por mim (porque desejo urna
iniciação em regra), esgueirei-me por uma fechadura, atravessei o espaço e
cheguei a casa, onde... Ah! que não sei de nojo como o conte! Juro por
Allan-Kardec, que tudo o que vou dizer e verdade pura, e ao mesmo tempo a prova
de que as conversações recentes não limpam logo o espírito, de certas ilusões
antigas.
Vi o meu corpo sentado e rindo. Parei, recuei, avancei e
disse-lhe que era meu, que, se estava ocupado por alguém, esse alguém que
saísse e mo restituísse. E vi que a minha cara ria. que as minhas pernas
cruzavam-se, ora a esquerda sobre a direita, ora esta sobre aquela, e que as
minhas mãos abriam uma caixa de rapé, que os meus dedos tiravam uma pitada, que
a inseriam nas minhas ventas. Feitas todas essas coisas, disse a minha voz.
- Já Lhe restituo o corpo. Nem entrei nele senão para
descansar um bocadinho, coisa rara, agora que ando a sós...
- Mas quem é você?
- Sou o diabo, para o servir.
- Impossível! Você é uma concepção do passado, que o homem.
. .
- Do passado, é certo. Concepção vá ele! Lá porque estão
outros no poder, e tiram-me o emprego, que não era de confiança, não é motivo
para dizer-me nomes.
Mas Allan-Kardec...
Aqui, o diabo sorriu tristemente com a minha boca,
levantou-se e foi à mesa, onde estavam as folhas do dia. Tirou uma e mostrou-me
o anúncio de um medicamento novo. O rábano iodado, com esta declaração no alto,
em letras grandes: "Não mais óleo de fígado de bacalhau. E leu-me que o
rábano curava todas as doenças que o óleo de fígado já não podia
curar-pretensão de todo medicamento novo. Talvez quisesse fazer nisto alguma
alusão ao espiritismo. O que sei é que, antes de restituir-me o corpo,
estendeu-me cordialmente a mão, e despedimo-nos como amigos velhos:
-Adeus, rábano!
14 de Out
-Adeus, fígado!
[11 outubro]
HÃO DE LEMBRAR-SE da minha aventura espírita, e da promessa
que fiz, de iniciar-me na nova igreja. Vão ver agora o que me aconteceu.
Fui iniciado quinta-feira, às nove horas da noite, e não
conto nada do que se passou, porque jurei calá-lo, por todos os séculos dos
séculos. Uma vez admitido no grêmio, preparei as malas para ir estabelecer-me
em Santo Antônio de Pádua.
Claro era o meu plano. Metia-me na vila, deixava-me inspirar
por potências invisíveis, predizia as coisas mais joviais ou mais melancólicas
deste e do outro mundo, reunia gente, e fundava uma igreja filial. Antes de
seis meses podíamos ter ali um bom contingente.
Vejam, porém, o que me sucedeu. Era hoje que devia abalar
daqui. Tudo estava pronto, malas, alma e algibeiras, quando li o código de
posturas da Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua, que está sujeito à
aprovação da assembléia provincial do Rio de Janeiro. Nesse código leio este
ominoso artigo, o art. 113:
"Fica proibido fingir-se inspirado por potências
invisíveis, ou predizer cousas tristes ou alegres".
Caiu-me a alma aos pés. Daí a alguns minutos reli o artigo,
para ver se me não enganara. Dei a ler ao meu criado e a dois vizinhos; todos
eles leram a mesma coisa, como este acréscimo, que .me escapou, que o infrator
pagará de multa 50$ e terá oito dias de prisão.
Não me digam que o artigo apenas veda a simulação. Os
fiscais de Santo Antônio de Pádua não podem saber quando é que a gente finge.
ou e deveras inspirado. Jeremias, que lá fosse, e o seu secretário Baruch
podiam dizer pérolas, iriam ambos parar à cadela porque o art 113 não explica
por onde é que se manifesta a simulação.
Desfiz tudo, as malas, a alma e as algibeiras. Peguei em mim
e atirei-me à rede com o famoso código na mão, resolvido a achar-lhe algum
ponto em que lhe pegasse. Não achei nada. Ao contrário, todas as suas
disposições mostram espírito precavido, delicado e justo; ao menos. é o que
imagino, porque ao cabo de cinco minutos dormia a sono solto.
Acordei agora mesmo para ir jantar. Podia dizer-lhes ainda
alguma coisa, mas não tenho alma para nada. Lá se foi todo o meu plano! Bárbaro
código! Torturas do diabo! Aqui na corte, a gente pode dizer, por meio de
cartas de jogar, uma porção de coisas alegres ou tristes, e ainda em cima
recebe dois mil-réis, ou cinco, se a notícia é excelente e a pessoa e graúda, e
ninguém vai para a cadeia; ao passo que ali em uma simples vila do interior...
[26 outubro]
ALÉM DE OUTRAS diferenças que se podem notar entre o sol e a
chuva, há esta-que o sol, quando nasce, é para todos, como diziam as tabuletas
de charutaria de outro tempo, e a chuva e só para alguns.
Hoje, por exemplo, levanto-me com chuva, e fico logo
aborrecido, desejando não sair de casa, não ler, não escrever, não pensar-não
fazer nada. A mesma coisa acontece ao leitor, com a diferença que ele faz ou
não faz nada se quer, e eu hei de pegar do papel e da tinta, e escrever para aí
alguma coisa, tenha ou não vontade e assunto.
Vontade já se vê que não. Assunto ainda menos; não posso dar
tal nome ao caso do matadouro que é antigo, e está ficando (perdoe a sua
ausência) um tanto amolador. Já lá vão sete ou oito dias; creio que é uma boa
idade para qualquer negócio que se respeite, recolher-se a bastidores, e dar
lugar a outros.
Foi o que fizeram as barraquinhas. As barraquinhas eram umas
meninas bonitas, gorduchas, que apareceram aqui roendo biscoitos, e nos
divertiram muito há menos de um mês. Não se demoraram mais; tão depressa viram aparecer o matadouro, esquivaram-se com a mesma discrição com que a gente deixa
um salão de baile.
Assim fez o montepio. Uma noite, recebemos convite para
assistir ao belo fogo de artifício com que o montepio entendera fazer-nos
lembrar os tempos antigos da Lapa e de Mato-porcos. Fomos, e não há dúvida que,
no gênero, foi coisa galante, muito animada, principalmente a luta final da
fragata com as fortalezas. Acabado o fogo deu-nos uma cela; mas lá porque nos
deu fogo e ceia, não nos obrigou a ficar em casa dele, e antes das duas horas
da manhã estávamos todos no vale de lençóis, esquecidos do anfitrião.
Não procedeu diferente o caso do consulado. Um dia de manhã,
íamos acordados ao som de albardadas fortes, que troavam a casa toda; mandamos
ver quem era; era um distinto cavalheiro, que pedia licença para vir
cumprimentar-nos. Recebemo-lo como merecia. Homem discreto e manso, não sabia
nada, não sabia sequer da morte de Sesóstris. E bem vestido, note-se,
corretamente vestido e engomado. Convidamo-lo para almoçar; almoçou, fez-nos o
favor de elogiar as batatas, mas não disse o nome delas, por mais que lho
pedíssemos. Não sabia o nome, não sabia nada. Acabado o almoço, não esperou que
Lhe déssemos o menor sinal de desagrado ou de impaciência: pegou no chapéu,
disse que ia ali e já voltava e safou-se.
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