9 de Out
Trago isto à colação, como dizia o outro, para perguntar ao
leitor como é que procederia, se tivesse de julgar este homem. Ele é verdade
que ia vender as reses envenenadas, que receberia por elas um cobrindo,
compraria um burro, talvez dois, talvez três burros, viria à corte, ao teatro,
para rir um pouco, mas é certo que não as ia vender em Sorocaba. Une nuance,
quoi! Ia vendê-las alhures, na Limeira, em S. José dos Campos, longe dos olhos,
longe do coração. Se há uma virtude universal e outra nacional, por que não há
de haver uma virtude municipal? Verdade em Sorocaba, erro na Limeira. Para os
ventres da Limeira, Custódio é execrando; para os de Sorocaba, é angélico,
verdadeiro Custódio, Custódio sem mais nada.
Cristo Júnior não fez a mesma coisa, mas não é menos sutil o
problema que oferece, nem menos nobre o seu impulso. Não se trata de um
martírio, como se pode crer pelo nome; não morreu nem morrerá na cruz.
Entretanto, o nome de Cristo Júnior parece estar aqui para distingui-lo do
outro Cristo, que é o Xênio. Chamamos-lhe simplesmente Júnior.
Júnior parece que falsificava uns bilhetes de loteria, e
entrou a vendê-los. Aparentemente, é um crime; mas se atentarmos bem, veremos
que é, pelo menos, meia virtude.
Convém notar que Júnior pode ter cedido a uma tal ou qual
comichão interior. Santo Antônio teve igual prurido, e resistiu, donde lhe veio
a canonização; Júnior não resistiu. Comendo-lhe o caráter, não pôde deixar de
meter-lhe as unhas e coçá-lo até fartar a epiderme. Em termos lisos, Júnior
teve cócegas de falsificar alguma coisa neste mundo, fosse o que fosse, à
escolha, virtude ou vício; e escolheu o vício.
Podia imitar uma nota de duzentos mil-réis (bela e rara
virtude!) mas preferiu os dez tostões da loteria, e fez uma imitação tão
perfeita, que ia dando com os burros (do vizinho) n'água. O pior que podia
acontecer à gente, era ficar com os bilhetes brancos na mão mas nem seria a
primeira vez nem a última.
- Compre este número! Olhe esta loteria, que tem um bonito
plano! clamam os rapazes na Rua do Ouvidor, esquina do Beco das Cancelas,
quando metem à cara da gente os seus bilhetes.
Júnior tinha um plano muito superior, que era ficar do mesmo
modo com os cobres, e deixar nas mãos da gente a sombra de uma sombra. Mas como
era o vício de um vício, podemos contá-lo por meia virtude.
Meia virtude ou virtude municipal, é a virtude posta ao
alcance de todas as bolsas. Custódio ou Júnior, ou qualquer outro nome, que eu
de nomes não curo, como dizia o Garrett, que Deus tenha por lá muitos anos sem
mm.
[1 julho]
NÃO CONCORDO absolutamente com a censura feita ontem pelo
Jornal do Comércio aos nossos costumes parlamentares, e não concordo por três
razões tão grandes, que não sei qual delas é maior. A censura como todos leram,
teve por objeto a demora na discussão da proposta da emissão de vinte e cinco
mil contos, que foi apresentada a 25 de maio, e só agoira chegou ao Senado.
A primeira razão, por mais que a achem má, é sólida e
legítima. Há folgas extraordinárias na Câmara, dias de repouso, dias de chuva,
e todo o sábado vale domingo. É isto novo? Abra o Jornal do Comércio, o livro
dos Anais; veja a sessão de 25 de agosto de 1841, e leia um discurso que lá vem
do finado Otôni (Teófilo).
Não é preciso lembrar que 1841 valia para nós uma segunda
virgindade política. Acabava-se de declarar a Maioridade, parecia que o
parlamento ia ser o beijinho da gente. Entretanto, Otôni declarou a 25 de
agosto de 1841 que muitos deputados da maioria gostavam de ficar nas suas
chácaras, divertindo-se. "Outros (exclama ele) querem ir patuscar à Praia
Grande!" E mais adiante afirma que é comum suceder não haver casa só
porque chove um pouco. O melhor é transcrever este trecho Dor inteiro:
V. Ex.a sabe que eu não tenho medo do mau tempo (concluiu
Otôni), que qualquer que ele seja, apresento-me na casa, e às vezes deixo de
entrar, porque me revolta ver que, tendo eu vindo com o meu guarda-chuva
debaixo d'água muitos senhores se deixam ficar em casa; de modo que às vezes
deixa de haver casa porque chuvisca um pouco.
Lealmente, que culpa pode ter a geração de hoje de um costume
tão velho? Ou querem negar as leis do atavismo? Note-se até uma circunstancia,
que, por ser grave, deve pesar no nosso juízo acerca dos contemporâneos. O
discurso de Otôni era a propósito da ata de 24, dia santo então, no qual a
Câmara resolveu trabalhar. Resolveu na véspera, e não se reuniu; e, segundo o
Cônego Marinho, que falou depois de Antônio Carlos, os que não compareceram
foram justamente os que votaram que se trabalhasse. Não posso dizer se isto foi
assim mesmo, porque, a despeito das calúnias de um tal Lulu Sênior, ainda não
era nascido, mas o meu amigo João Velhinho, cuja memória conserva a mesma
frescura de outros tempos, jura que estava lá, e que o Cônego Marinho tinha
razão; lembra-se como se fosse hoje.
A segunda razão que me faz recusar a censura é que, em
geral, as discussões de tais propostas são a ocasião mais apropriada para
tratar de tudo, e que não se pode tratar de tudo como um gato passa por brasas.
Ou seja um assunto qualquer, pequeno, local, indiferente, - ou seja uma dessas
belas teorias, amplas, vagas, assopradas, tudo leva tempo e, se além de tudo,
ainda se há de falar da própria matéria da proposta, é claro que não se pode
gastar menos de um mês ou mais.
A terceira razão (e isto responde a qualquer objeção que me
façam com a Câmara dos Comuns ou outras), a terceira razão é que se dá com os
governos o que se dá com outros produtos naturais: o meio os modifica e altera.
Lá nas outras câmaras pode ser que as coisas marchem de diverso modo. Mas
segue-se que, por termos a mesma forma externa, devamos ter o mesmo espírito
interior? Seria cruel exigi-lo. Seria admitir que o cabeleireiro faz o dândi.
Maria Cristina dizia uma vez ao famoso Espartano: - Fiz-te duque; nunca te pude
fazer fidalgo.
E agora reparo que essa última razão ainda me dá outra, uma
quarta razão, não menos esticada dos colarinhos. Assim como um governo sem
equidade só se pode manter em um povo igualmente sem equidade (segundo um
mestre), assim também um parlamento remisso só pode medrar em sociedade
remissa. Não vamos crer que todos nós, exceto os legisladores, fazemos tudo a
tempo. Que diria o sol, que nos deu a rede e o fatalismo?
[8 julho]
O QUE É POLÍTICA? Aqui há anos, creio que por 1849,
lembrou-se alguém de propor uma questão em um jornal. A questão era saber o que
é honra. Em vez, porém, de escrever deveras aos outros, coligir as respostas e
publicá-las, engendrou as respostas no escritório, e deu-as a lume.
Compreende se que isso se fizesse em 1849. Naquele tempo fazia-se
a eleição a bico de pena. Mas, depois da lei de 1880, não há meio de recorrer a
outra cousa que não seja o sufrágio direto.
Foi o que fiz em relação à política. Peguei de tudo o que
sabia nesta matéria (e não valia dois caracóis), arranjei um embrulho e mandei
deitá-lo à praia. Depois escrevi uma carta aos meus concidadãos, pedindo-lhes
que me dissessem francamente o que consideravam que fosse política, e
dispensando-os de citar Aristóteles nem Maquiavelli, Spencer nem Comte, não só
porque apenas se devem citar os devedores remissos (e Deus sabe se aqueles
quatro são credores de meio mundo!), como porque os referidos autores são
estranhos completamente ao
Tirolito que bate, bate,
Tirolito que já bateu.
Tirolito que já bateu.
Relativamente a este Tirolito, disse-lhes que era uma
cantiga, e que as cantigas, ao contrário do que queria o nosso Álvares de
Azevedo, fazem adiantar o mundo. Ils chantent, ils payront, dizia não sei que
profundo político francês; e o nosso maestro Ferrari, original como um bom
italiano, emendou a máxima, e aplicou-a aos nossos dias: Nous chanterons, ils
payeront. Um e outro são muito superiores aos mestres apontados.
Não tardou que o correio começasse a entregar-me as
respostas; e, como eu não pagava o porte, reconheci que há neste mundo uma
infinidade de filhos de Deus ou do diabo que os carregue, que estão à espreita
de um simples pretexto para comunicar as suas idéias, ainda à custa dos vinténs
magros.
Não publico tocaias as definições recebidas, porque a vida é
curta vita brevis. Faço. porém, uma escolha rigorosa, e dou algumas das
principais, antes de contar o que me aconteceu neste inquérito, e foi o que se
há de ver adiante, se Deus não mandar o contrário.
Uma das cartas dizia simplesmente que a política é tirar o
chapéu às pessoas mais velhas. Outra afirmava que a política é a obrigação de
não meter o dedo no nariz. Outra, que é, estando à mesa, não enxugar os beiços
no guardanapo da vizinha, nem na ponta da toalha. Um secretário de Comte
dançante jura que a política é dar excelência às moças, e não lhes pôr alcunhas
quando elas já têm para esta. Segundo um morador da Tijuca, a política é
agradecer com um sorriso animador ao amigo que nos paga a passagem.
Muitas cartas são tão longas e difusas, que quase se não
pode extratar nada. Citarei dessas a de um barbeiro, que define a política como
a arte de lhe pagarem as barbas, e a de um boticário para quem a verdadeira
política é não comprar nada na botica da esquina.
Um sectário de Comte (viver às claras) afirma que a política
é berrar nos bonds, quer se trate dos negócios da gente, quer dos estranhos.
Não entendi algumas cartas. A letra de outras é ilegível.
Outras repetem-se. Cinco ou seis dão como suas, opiniões achadas nos livros.
Uma dama gamenha escreve-me, dizendo que a política é praticar com os olhos o
que está no Evangelho de S. Mateus, capVII. verso 7: "batei e
abrir-se-vos-á".
Note-se que, em todo esse montão de cartas, não há uma só
deputado ou senador, e contudo escrevi a todos eles pedindo uma definição.
Minto; o Sr. Zama deu-me anteontem uma resposta, embora
indiretamente. S. Ex.a disse na Câmara que quer a abolição imediata mas aceitou
o projeto passado e aceita este, pela regra de Terêncio. quando não se pode
obter o que se quer, é necessário que se queira aquilo que se pode. Regra que
me faz lembrar textualmente aquela outra de Thomas Corneille:
Quand on n'a pas ce que l'on aime.
I1 faut aimer ce que l'on a.
I1 faut aimer ce que l'on a.
Terêncio ou Corneille, tudo vem dar neste velho adágio, que
diz que quem não tem cão, caça com gato. É oportunismo, confesso; mas
pretiro-lhe o aparte de um deputado, no discurso do Sr. Rodrigues Alves, quando
este tachava um presidente de interventor, não porque recomendasse candidatos,
mas porque fez favores a amigos destes. "Queria que os fizesse aos amigos
de V. Ex.a?" perguntou um colega. Tal qual a política do boticário: não
comprar na botica da esquina.
[19 julho]
CONHEÇO um homem que, além de acudir ao doce nome de Guedes,
acaba de receber um profundo golpe moral, desfechado pelo Sr. Visconde de Santa
Cruz.
Ponha o leitor o caso em si. Há trinta anos, ou quase, que o
Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse,
para falar a própria linguagem dele. Ultimamente, 1a se contentava com uma
semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado
por salas e esquinas.
Não se imagina o que este diabo tem feito para ser popular.
Deixo de lado 1863, por ocasião da Questão Christie, em que ele propôs-se a Ir
arrancar as armas da legação inglesa. Só achou cinco imprudentes que o acompanharam;
e, ainda assim, saiu com eles da Rua do Ouvidor, a pé. No Largo da Lapa
achou-se com quatro; na Glória, com três, no Largo do Valdetaro. com dois. e no
do Machado com um, que o convidou a voltar para a Rua do Ouvidor.
Mais tarde, vendo passar o coche triunfal do Rio Branco, por
ocasião da lei de 28 de setembro, compreendeu que era um bom veículo de molas,
vistoso, e atirou-se à traseira, mas já lá achou outros que o puseram foram a
pontapés, e o meu pobre Guedes teve de voltar à obscuridade.
Tentou outras coisas. Tentou uma orchata higiênica, uma
loteria de crianças, uma polca, uma rua e uma casa de fazendas baratas. Falhou
tudo. A polca dançou-se muito, mas ninguém lhe decorou o nome. A rua, Rua João
Guedes, trouxe-lhe um singular destempero. Um dia, sendo apresentado a uma
família, disseram-lhe todos com Ingenuidade - "Ah! o senhor tomou o nome
daquela rua em que mortal um primo nosso!"
Afinal, deitou os olhos para o fechamento das portas; e o
leitor tão é capaz de adivinhar quando foi que a atenção se lhe volveu para
ali. Foi por ocasião da morte de Ester de Carvalho. Entre os artigos fúnebres
que então apareceram, um houve em que se convidava os esteristas a lançarem mão
do movimento produzido pela morte da distinta atriz para alcançar o fechamento
das portas. O Guedes refletem: estava achada a popularidade.
A questão era pertencer à Câmara Municipal; e o meu amigo
fez tudo o que pôde para isso. Sempre derrotado e sempre resoluto, esperava ali
meter o pé, um dia, quando o Sr. Visconde de Santa Cruz propôs, e os seus
colegas aprovaram, que as portas se fechem aos domingos e dias santos. Foi o
mesmo que arrancarem-lhe o bocado da boca.
Agora, se realmente quer popularidade, abra mão de planos
complicados; limite-se a fazer anunciar, por meio de alusões engenhosas, que é
o Guedes, o célebre Guedes, que é esclarecido, e varie os termos, passe de
esclarecido a ilustrado, e de ilustrado a eminente, e acrescente que é bonito,
ce qui ne gâte rien. O leitor não acredita, nos primeiros quinze dias; no fim
de vinte fica um tanto perplexo; passados trinta, pergunta se realmente não se
enganou; ao cabo de cinqüenta, jura que se enganou, que é o Guedes, o
verdadeiro Guedes. Três meses depois, mata a quem lhe disser o contrário.
Faça isto, meu amigo; é o segredo do mulungu composto e da
salsaparrilha, tanto da de Bristol como da de Sands. Esperar cadeira de um
vereador é muito demorado. E depois, as idéias são tão poucas - digo os motivos
de popularidade, - que quando a gente está pensando em plantar uma, já outro
está colhendo os frutos da que plantou também; e a gente não tem remédio senão
recorrer à única cultura em que não há concorrência de boa vontade, que é
plantar batatas. É a ocupação atual de todos os Guedes.
[26 julho]
VENHA DE LÁ esse abraço; trago-lhes um divertimento para
passarem as noites.
Nem todos terão treze mil-réis para dar por uma cadeira do
Teatro Lírico. Eu tenho cinco; faltam-me oito. Podia ir ao Teatro de S. Pedro.
onde a cadoira custa menos; mas eu só entendo italiano cantado, e a Duse-Checchi
não canta. Fui lá algumas vezes levado pelo que ouvia dizer dela e da
companhia; fui, gostei muito do diabo da mulher, fingi que rasgava as luvas de
entusiasmo, para dar a entender que sabia daquilo; nos lugares engraçados ria
que me escangalhava, muito mais do que se fosse em português; mas, repito.
italiano por música.
Nos outros teatros dizem-me que só há peças, ou muito
tristes ou demasiado alegres. Ora, eu não sou alegre. mas também não sou
triste. Meu avô, que era carneiro de Panúrgio, não passava de sorumbático. Ir
ao teatro para cair num daqueles dois extremos, e adoecer, não posso.
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