Total de visualizações de página

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 10]

9 de Out
Trago isto à colação, como dizia o outro, para perguntar ao leitor como é que procederia, se tivesse de julgar este homem. Ele é verdade que ia vender as reses envenenadas, que receberia por elas um cobrindo, compraria um burro, talvez dois, talvez três burros, viria à corte, ao teatro, para rir um pouco, mas é certo que não as ia vender em Sorocaba. Une nuance, quoi! Ia vendê-las alhures, na Limeira, em S. José dos Campos, longe dos olhos, longe do coração. Se há uma virtude universal e outra nacional, por que não há de haver uma virtude municipal? Verdade em Sorocaba, erro na Limeira. Para os ventres da Limeira, Custódio é execrando; para os de Sorocaba, é angélico, verdadeiro Custódio, Custódio sem mais nada.
Cristo Júnior não fez a mesma coisa, mas não é menos sutil o problema que oferece, nem menos nobre o seu impulso. Não se trata de um martírio, como se pode crer pelo nome; não morreu nem morrerá na cruz. Entretanto, o nome de Cristo Júnior parece estar aqui para distingui-lo do outro Cristo, que é o Xênio. Chamamos-lhe simplesmente Júnior.
Júnior parece que falsificava uns bilhetes de loteria, e entrou a vendê-los. Aparentemente, é um crime; mas se atentarmos bem, veremos que é, pelo menos, meia virtude.
Convém notar que Júnior pode ter cedido a uma tal ou qual comichão interior. Santo Antônio teve igual prurido, e resistiu, donde lhe veio a canonização; Júnior não resistiu. Comendo-lhe o caráter, não pôde deixar de meter-lhe as unhas e coçá-lo até fartar a epiderme. Em termos lisos, Júnior teve cócegas de falsificar alguma coisa neste mundo, fosse o que fosse, à escolha, virtude ou vício; e escolheu o vício.
Podia imitar uma nota de duzentos mil-réis (bela e rara virtude!) mas preferiu os dez tostões da loteria, e fez uma imitação tão perfeita, que ia dando com os burros (do vizinho) n'água. O pior que podia acontecer à gente, era ficar com os bilhetes brancos na mão mas nem seria a primeira vez nem a última.

- Compre este número! Olhe esta loteria, que tem um bonito plano! clamam os rapazes na Rua do Ouvidor, esquina do Beco das Cancelas, quando metem à cara da gente os seus bilhetes.
Júnior tinha um plano muito superior, que era ficar do mesmo modo com os cobres, e deixar nas mãos da gente a sombra de uma sombra. Mas como era o vício de um vício, podemos contá-lo por meia virtude.
Meia virtude ou virtude municipal, é a virtude posta ao alcance de todas as bolsas. Custódio ou Júnior, ou qualquer outro nome, que eu de nomes não curo, como dizia o Garrett, que Deus tenha por lá muitos anos sem mm.

[1 julho]
NÃO CONCORDO absolutamente com a censura feita ontem pelo Jornal do Comércio aos nossos costumes parlamentares, e não concordo por três razões tão grandes, que não sei qual delas é maior. A censura como todos leram, teve por objeto a demora na discussão da proposta da emissão de vinte e cinco mil contos, que foi apresentada a 25 de maio, e só agoira chegou ao Senado.
A primeira razão, por mais que a achem má, é sólida e legítima. Há folgas extraordinárias na Câmara, dias de repouso, dias de chuva, e todo o sábado vale domingo. É isto novo? Abra o Jornal do Comércio, o livro dos Anais; veja a sessão de 25 de agosto de 1841, e leia um discurso que lá vem do finado Otôni (Teófilo).
Não é preciso lembrar que 1841 valia para nós uma segunda virgindade política. Acabava-se de declarar a Maioridade, parecia que o parlamento ia ser o beijinho da gente. Entretanto, Otôni declarou a 25 de agosto de 1841 que muitos deputados da maioria gostavam de ficar nas suas chácaras, divertindo-se. "Outros (exclama ele) querem ir patuscar à Praia Grande!" E mais adiante afirma que é comum suceder não haver casa só porque chove um pouco. O melhor é transcrever este trecho Dor inteiro:
V. Ex.a sabe que eu não tenho medo do mau tempo (concluiu Otôni), que qualquer que ele seja, apresento-me na casa, e às vezes deixo de entrar, porque me revolta ver que, tendo eu vindo com o meu guarda-chuva debaixo d'água muitos senhores se deixam ficar em casa; de modo que às vezes deixa de haver casa porque chuvisca um pouco.
Lealmente, que culpa pode ter a geração de hoje de um costume tão velho? Ou querem negar as leis do atavismo? Note-se até uma circunstancia, que, por ser grave, deve pesar no nosso juízo acerca dos contemporâneos. O discurso de Otôni era a propósito da ata de 24, dia santo então, no qual a Câmara resolveu trabalhar. Resolveu na véspera, e não se reuniu; e, segundo o Cônego Marinho, que falou depois de Antônio Carlos, os que não compareceram foram justamente os que votaram que se trabalhasse. Não posso dizer se isto foi assim mesmo, porque, a despeito das calúnias de um tal Lulu Sênior, ainda não era nascido, mas o meu amigo João Velhinho, cuja memória conserva a mesma frescura de outros tempos, jura que estava lá, e que o Cônego Marinho tinha razão; lembra-se como se fosse hoje.
A segunda razão que me faz recusar a censura é que, em geral, as discussões de tais propostas são a ocasião mais apropriada para tratar de tudo, e que não se pode tratar de tudo como um gato passa por brasas. Ou seja um assunto qualquer, pequeno, local, indiferente, - ou seja uma dessas belas teorias, amplas, vagas, assopradas, tudo leva tempo e, se além de tudo, ainda se há de falar da própria matéria da proposta, é claro que não se pode gastar menos de um mês ou mais.
A terceira razão (e isto responde a qualquer objeção que me façam com a Câmara dos Comuns ou outras), a terceira razão é que se dá com os governos o que se dá com outros produtos naturais: o meio os modifica e altera. Lá nas outras câmaras pode ser que as coisas marchem de diverso modo. Mas segue-se que, por termos a mesma forma externa, devamos ter o mesmo espírito interior? Seria cruel exigi-lo. Seria admitir que o cabeleireiro faz o dândi. Maria Cristina dizia uma vez ao famoso Espartano: - Fiz-te duque; nunca te pude fazer fidalgo.
E agora reparo que essa última razão ainda me dá outra, uma quarta razão, não menos esticada dos colarinhos. Assim como um governo sem equidade só se pode manter em um povo igualmente sem equidade (segundo um mestre), assim também um parlamento remisso só pode medrar em sociedade remissa. Não vamos crer que todos nós, exceto os legisladores, fazemos tudo a tempo. Que diria o sol, que nos deu a rede e o fatalismo?

[8 julho]
O QUE É POLÍTICA? Aqui há anos, creio que por 1849, lembrou-se alguém de propor uma questão em um jornal. A questão era saber o que é honra. Em vez, porém, de escrever deveras aos outros, coligir as respostas e publicá-las, engendrou as respostas no escritório, e deu-as a lume.
Compreende se que isso se fizesse em 1849. Naquele tempo fazia-se a eleição a bico de pena. Mas, depois da lei de 1880, não há meio de recorrer a outra cousa que não seja o sufrágio direto.
Foi o que fiz em relação à política. Peguei de tudo o que sabia nesta matéria (e não valia dois caracóis), arranjei um embrulho e mandei deitá-lo à praia. Depois escrevi uma carta aos meus concidadãos, pedindo-lhes que me dissessem francamente o que consideravam que fosse política, e dispensando-os de citar Aristóteles nem Maquiavelli, Spencer nem Comte, não só porque apenas se devem citar os devedores remissos (e Deus sabe se aqueles quatro são credores de meio mundo!), como porque os referidos autores são estranhos completamente ao
Tirolito que bate, bate,
Tirolito que já bateu.
Relativamente a este Tirolito, disse-lhes que era uma cantiga, e que as cantigas, ao contrário do que queria o nosso Álvares de Azevedo, fazem adiantar o mundo. Ils chantent, ils payront, dizia não sei que profundo político francês; e o nosso maestro Ferrari, original como um bom italiano, emendou a máxima, e aplicou-a aos nossos dias: Nous chanterons, ils payeront. Um e outro são muito superiores aos mestres apontados.
Não tardou que o correio começasse a entregar-me as respostas; e, como eu não pagava o porte, reconheci que há neste mundo uma infinidade de filhos de Deus ou do diabo que os carregue, que estão à espreita de um simples pretexto para comunicar as suas idéias, ainda à custa dos vinténs magros.
Não publico tocaias as definições recebidas, porque a vida é curta vita brevis. Faço. porém, uma escolha rigorosa, e dou algumas das principais, antes de contar o que me aconteceu neste inquérito, e foi o que se há de ver adiante, se Deus não mandar o contrário.
Uma das cartas dizia simplesmente que a política é tirar o chapéu às pessoas mais velhas. Outra afirmava que a política é a obrigação de não meter o dedo no nariz. Outra, que é, estando à mesa, não enxugar os beiços no guardanapo da vizinha, nem na ponta da toalha. Um secretário de Comte dançante jura que a política é dar excelência às moças, e não lhes pôr alcunhas quando elas já têm para esta. Segundo um morador da Tijuca, a política é agradecer com um sorriso animador ao amigo que nos paga a passagem.
Muitas cartas são tão longas e difusas, que quase se não pode extratar nada. Citarei dessas a de um barbeiro, que define a política como a arte de lhe pagarem as barbas, e a de um boticário para quem a verdadeira política é não comprar nada na botica da esquina.
Um sectário de Comte (viver às claras) afirma que a política é berrar nos bonds, quer se trate dos negócios da gente, quer dos estranhos.
Não entendi algumas cartas. A letra de outras é ilegível. Outras repetem-se. Cinco ou seis dão como suas, opiniões achadas nos livros. Uma dama gamenha escreve-me, dizendo que a política é praticar com os olhos o que está no Evangelho de S. Mateus, capVII. verso 7: "batei e abrir-se-vos-á".
Note-se que, em todo esse montão de cartas, não há uma só deputado ou senador, e contudo escrevi a todos eles pedindo uma definição.
Minto; o Sr. Zama deu-me anteontem uma resposta, embora indiretamente. S. Ex.a disse na Câmara que quer a abolição imediata mas aceitou o projeto passado e aceita este, pela regra de Terêncio. quando não se pode obter o que se quer, é necessário que se queira aquilo que se pode. Regra que me faz lembrar textualmente aquela outra de Thomas Corneille:
Quand on n'a pas ce que l'on aime.
I1 faut aimer ce que l'on a.
Terêncio ou Corneille, tudo vem dar neste velho adágio, que diz que quem não tem cão, caça com gato. É oportunismo, confesso; mas pretiro-lhe o aparte de um deputado, no discurso do Sr. Rodrigues Alves, quando este tachava um presidente de interventor, não porque recomendasse candidatos, mas porque fez favores a amigos destes. "Queria que os fizesse aos amigos de V. Ex.a?" perguntou um colega. Tal qual a política do boticário: não comprar na botica da esquina.

[19 julho]
CONHEÇO um homem que, além de acudir ao doce nome de Guedes, acaba de receber um profundo golpe moral, desfechado pelo Sr. Visconde de Santa Cruz.
Ponha o leitor o caso em si. Há trinta anos, ou quase, que o Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse, para falar a própria linguagem dele. Ultimamente, 1a se contentava com uma semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado por salas e esquinas.
Não se imagina o que este diabo tem feito para ser popular. Deixo de lado 1863, por ocasião da Questão Christie, em que ele propôs-se a Ir arrancar as armas da legação inglesa. Só achou cinco imprudentes que o acompanharam; e, ainda assim, saiu com eles da Rua do Ouvidor, a pé. No Largo da Lapa achou-se com quatro; na Glória, com três, no Largo do Valdetaro. com dois. e no do Machado com um, que o convidou a voltar para a Rua do Ouvidor.
Mais tarde, vendo passar o coche triunfal do Rio Branco, por ocasião da lei de 28 de setembro, compreendeu que era um bom veículo de molas, vistoso, e atirou-se à traseira, mas já lá achou outros que o puseram foram a pontapés, e o meu pobre Guedes teve de voltar à obscuridade.
Tentou outras coisas. Tentou uma orchata higiênica, uma loteria de crianças, uma polca, uma rua e uma casa de fazendas baratas. Falhou tudo. A polca dançou-se muito, mas ninguém lhe decorou o nome. A rua, Rua João Guedes, trouxe-lhe um singular destempero. Um dia, sendo apresentado a uma família, disseram-lhe todos com Ingenuidade - "Ah! o senhor tomou o nome daquela rua em que mortal um primo nosso!"
Afinal, deitou os olhos para o fechamento das portas; e o leitor tão é capaz de adivinhar quando foi que a atenção se lhe volveu para ali. Foi por ocasião da morte de Ester de Carvalho. Entre os artigos fúnebres que então apareceram, um houve em que se convidava os esteristas a lançarem mão do movimento produzido pela morte da distinta atriz para alcançar o fechamento das portas. O Guedes refletem: estava achada a popularidade.
A questão era pertencer à Câmara Municipal; e o meu amigo fez tudo o que pôde para isso. Sempre derrotado e sempre resoluto, esperava ali meter o pé, um dia, quando o Sr. Visconde de Santa Cruz propôs, e os seus colegas aprovaram, que as portas se fechem aos domingos e dias santos. Foi o mesmo que arrancarem-lhe o bocado da boca.
Agora, se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados; limite-se a fazer anunciar, por meio de alusões engenhosas, que é o Guedes, o célebre Guedes, que é esclarecido, e varie os termos, passe de esclarecido a ilustrado, e de ilustrado a eminente, e acrescente que é bonito, ce qui ne gâte rien. O leitor não acredita, nos primeiros quinze dias; no fim de vinte fica um tanto perplexo; passados trinta, pergunta se realmente não se enganou; ao cabo de cinqüenta, jura que se enganou, que é o Guedes, o verdadeiro Guedes. Três meses depois, mata a quem lhe disser o contrário.
Faça isto, meu amigo; é o segredo do mulungu composto e da salsaparrilha, tanto da de Bristol como da de Sands. Esperar cadeira de um vereador é muito demorado. E depois, as idéias são tão poucas - digo os motivos de popularidade, - que quando a gente está pensando em plantar uma, já outro está colhendo os frutos da que plantou também; e a gente não tem remédio senão recorrer à única cultura em que não há concorrência de boa vontade, que é plantar batatas. É a ocupação atual de todos os Guedes.

[26 julho]
VENHA DE LÁ esse abraço; trago-lhes um divertimento para passarem as noites.
Nem todos terão treze mil-réis para dar por uma cadeira do Teatro Lírico. Eu tenho cinco; faltam-me oito. Podia ir ao Teatro de S. Pedro. onde a cadoira custa menos; mas eu só entendo italiano cantado, e a Duse-Checchi não canta. Fui lá algumas vezes levado pelo que ouvia dizer dela e da companhia; fui, gostei muito do diabo da mulher, fingi que rasgava as luvas de entusiasmo, para dar a entender que sabia daquilo; nos lugares engraçados ria que me escangalhava, muito mais do que se fosse em português; mas, repito. italiano por música.
Nos outros teatros dizem-me que só há peças, ou muito tristes ou demasiado alegres. Ora, eu não sou alegre. mas também não sou triste. Meu avô, que era carneiro de Panúrgio, não passava de sorumbático. Ir ao teatro para cair num daqueles dois extremos, e adoecer, não posso.


Nenhum comentário: