E assim os outros. Chegam, aturdem nos primeiros minutos,
depois dão algumas horas de palestra, bebem dois goles de chá, e adeus.
Portanto, não tenho assunto. Não hei de, à falta dele,
meter-me a encarecer alguma ação bonita. As boas ações têm o preço na
consciência dos que as praticam; elogiá-las muito é ofender a modéstia dos
autores. Lá uma ou outra palavrinha doce, -não muito doce. - um aperto de mão,
e, se houver copo d'água, um bom par de queixos, sim, senhor, é comigo. Querer,
porém, que eu. além do trabalho de digerir o jantar de um homem, venha cá para
fora dizer que ele e virtuoso, não é comigo, é aqui com o meu vizinho. Nesse
caso preferia roer num duro escândalo, a papar o melhor guisado deste mundo.
São gostos. É como o Cristo de Bernardelli. Com franqueza.
acho que estão fazendo barulho demais. Já se fala em dar a mão ao rapaz, já ele
é um bom talento, já tem grande futuro. e outras coisas desse jaez, como se
todos não fôssemos filhos de Deus, e se Deus para fazer escultor a um homem,
precisasse saber primeiro se ele se chama Bernardelli.
Também eu gosto de mármore. Tenho cá em casa uma pia de
lavar as mãos, que é de mármore: não é tão bonito como o do Cristo. mas não é
feio. O que há, é que o uso já o tem estragado bastante. Custou-me oitenta
mil-réis, tudo; oitenta ou cem, tenho as contas guardadas.
Afinal, vão ver que tudo isso são balelas de estudantes. Eu,
que lá fui à academia duas vezes (a segunda foi para falar a um empregado que
me deve quinze-mil-réis) vi sempre estudantes que entravam. com os seus livros
debaixo do braço, e ficavam pasmados diante do grupo. Não os censuro, por isso;
são rapazes. Também eu fui rapaz: também gostei de bonecos.
[6 novembro]
O SR. MINISTRO da Justiça entende que os tabeliães devem
(com perdão da palavra) tabelionar. Entende que arrendar o ofício não é
exercê-lo, segundo a intenção da lei.
Perdoe-me S. Ex.a. Essa doutrina é subversiva, não da ordem
legal, mas da ordem natural, o que é pior. As leis reformam-se sem risco; mas
torcer a natureza não é reformá-la, é deformá-la.
Ponhamos de parte o caso de verdadeira doença do
serventuário, que o obrigue a pedir licença. Vamos ao principio geral. S. Ex.a
confunde nomeação e vocação. Ponhamos o caso em mim. Eu, se amanhã me nomearem
bispo, poderia receber com regularidade a côngrua e os emolumentos, mas. por
falta de vocação, preferia uma boa rede a todas as câmaras eclesiásticas. S.
Ex.a dirá, porém, que esta hipótese é absurda; aqui vai outra.
Suponhamos que no dia 15 de janeiro, por uma dessas
inspirações geniais que o céu concede aos povos nos momentos supremos da
história, elegem-me deputado. Vocação, aquilo que se chama vocação ou aptidão
parlamentar. não a tenho; mas tenho respeito à vontade do eleitor, à indicação
das urnas, e, para conciliar a ordem soberana com a minha inópia, dividiria o
tempo de maneira que fosse algumas vezes à Câmara. Poderia o eleitor, em tal
caso, obrigar-me a conhecer as matérias, estudá-las, expô-las. redigir
pareceres, fazer discursos? Não; era cair no mesmo erro de deformar a natureza
com o intuito de reformá-la. O mais que o eleitor podia e devia fazer, era
afirmar o seu direito soberano, elegendo-me outra vez.
O caso dos tabeliães é mais grave. Não se trata de um cargo
temporário, como o de deputado, nem se Lhe pode dar, como a este. um tal ou
qual exercício mínimo e aparente, por meio de alguns papéis à Câmara. O oficio
é vitalício, e exerce-se ou não. Exercê-lo sem vocação é produzir dois grandes
males, em que S. Ex.a não advertiu. Constrange-se um espírito apto para outra
coisa a definhar nos recessos de um cartório, e arrisca-se a fazenda particular
aos descuidos possíveis de quem faz as coisas sem amor.
Veia agora o contrário. Dê-me Sua Ex.a um desses ofícios.
Eu, que não nasci para ele, vou ter com outro, que nasceu, que sabe, que ama a
escritura e o traslado, e digo-lhe:-Velho é o adágio que diz que onde come um
português, comem dois e três, e nós não podemos desmentir a origem nacional.
Você fica aqui. que eu já volto.
Não voltava. é claro. E ganhávamos todos, começando pela
ciência, porque eu, mineralogia de algum valor, iria viver o resto dos meus
dias examinando as pedras de Petrópolis e da Tijuca, e até as da Rua do
Ouvidor, que, por estarem à mão,-ninguém sabe o que valem. Não conto a vantagem
do Governo. que acomodaria assim duas pessoas na mesma casa. S. E,. a tem uma
escapatória que é esta: - recusar o ofício. Mas eu pergunto se era decente fazê-lo;
pergunto se, vindo o Estado a mim, e dizendo-me: Cidadão, partícula de mim
mesmo, aqui tens este ofício, exerce-o, segundo as leis e os costumes, escuta a
viúva. atende ao herdeiro, ouve o vendedor, e o comprador, lavra, traslada,
registra", - pergunto se, em tal caso, tinha eu o direito de recusar.
Evidentemente, não.
16 de Out
Não tenho a menor esperança de fazer revogar o ato de S.
Ex.a. Mas estou certo de que estas idéias hão de frutificar. A questão e mais
alta do que pode parecer aos frívolos. Trata-se de pôr nos atos do governo
certas considerações de ordem cientifica: trata-se de mostrar que o Estado pode
dar-me um ofício, e até dois, se lhe parecer; mas não pode, sem abuso e perigo,
constranger-me a ocupá-lo ou ocupá-los.
E quando falo em Estado, refiro-me a todos os seus órgãos,
cujo exercício anticientífico entre nós é realmente deplorável. Leu S. Ex.a o
último edital do juiz municipal de Barra Mansa? Chamam-se ali compradores para
os bens penhorados a um major; e entre outras vacas, inscreve-se esta:
"Uma vaca magra, muito ruim, avaliada em 10$000" Não há procedimento
menos cientifico. Por que é que a lei do particular não será a lei do Estado?
Nenhum particular diria tal coisa. Querendo vender a vaca, o
particular poria no anúncio qualquer eufemismo delicado; diria que era , uma
vaca menos que regular, uma vaca com defeito, uma vaca para serviços leves.
Jamais confessaria que a vaca era muito ruim. E vendê-la-ia. Creiam, não digo
pelos dez- mil-réis, mas por que quinze ou dezoito mil-réis. Se isto não é
cientifico, então não sei o que é cientifico neste mundo e no outro
[23 de novembro]
PARTICIPO aos meus amigos que vou abrir (ou erigir) um quiosque.
Resta-me só escolher o lugar e pedir licença à Câmara.
Toda a gente sabe que o quiosque é um dos exemplos mais
expressivos da lei de adaptação. Creio que na capital donde ele nos veio, é o
lugar onde se mete uma mulher a vender jornais.
Aqui serve de abrigo a um ativo cidadão, que vende cigarros
e bilhetes de loteria. Parece, à primeira vista, que um negócio desses não há
de deixar grandes fundos. Pois deixa; e a prova é que ainda agora, a Câmara,
concedendo um, para o Largo de S. Francisco de Paula, impôs ao pretendente uma
entrada de quinhentos mil-réis para O livro de ouro.
Nunca as mãos lhe doam à Câmara. Vá fazendo as suas
concessões, uma vez que sejam justas, com a cláusula, porém, de que os
pretendentes hão de entrar para O livro de ouro, por onde se vão libertar
escravos no dia 2 de dezembro. A última sessão rendeu-lhe uns seis contos. Só
um dos concessionários tem de dar cinco contos de réis; os outros quinhentos
mil-réis são do dono de um estábulo.
O único senão que se poderá notar nesse método, é que, ao
lado da filantropia real, estamos vendo florescer uma filantropia artificial em
grande escala; mas, depois do sol artificial do Sr. D,. Costa Lopes e dos
vinhos artificiais de outras pessoas, creio que podemos ir aposentando a
natureza. A natureza está ficando velha; e o artifício é um rapagão ambicioso.
No livro de ouro há vinho puro, e sol verdadeiro. Há uma
parte, que é do melhor vinho cristão, daquele que a mão esquerda ignora: os dez
contos anônimos que o Sr. Conde de Mesquita para lá mandou. Mas como o vinho
puro não chega para o festim da Câmara lembrou-se ela-e em boa hora-de aceitar
do outro, considerando que no fim dá certo, e os escravos ficam livres.
Também há dias um anônimo teve a ideia de aconselhar ao
governo um modo de acabar com a escravidão. Era estabelecer uma escala de
preços para os títulos nobiliários, e convidar as pessoas que quisessem
admissão ou promoção na classe. O autor chegou a citar nomes de titulares
conhecidos e até de senhoras. Marcou ele mesmo os preços: um marquesado
custaria cinqüenta contos, etc. . .
A ideia em si não é má. Dever um título à alforria de uns
tantos escravos, pode ser menos heroico, mas não é menos cristão que devê-lo à
tomada de Jerusalém. Acho a coisa perfeitamente justa? nem é por aí que a critico.
Também José Clemente levantou o Hospício de Pedro 11, por igual método;
lucraram os infelizes, doidos, e lucramos todos nós, que podemos jantar à mesma
mesa sem deitar os pratos à cara um dos outros; a presunção e que temos juízo;
digo a presunção legal...
Não o mal da ideia é que, por mais que acudissem aos
títulos, o dinheiro que se recolhesse não chegaria para um buraco do dente da
escravidão. O livro de ouro, da Câmara, e mais fácil de encher, porque é mais
limitado.
Lá vou pôr os meus quinhentos mil-réis, ou mais, se mo
pedirem, a troco do quiosque. Agora, principalmente, depois que li uma folha de
S. Paulo, estou pronto a abrir os cordões da bolsa. A citada folha declara que
se deve votar no Sr. Comendador Malvino Reis para deputado, por ser daqueles
que aguentam com as despesas públicas. Eu até aqui, quando as lojas de fazendas
me pediam alguma coisa mais pela roupa e me diziam que era por causa dos
impostos, imaginava que elas e eu dividíamos a carga ao meio, e que lá entrava
o triste de mim, indiretamente, com alguma coisa nos ordenados dos
funcionários; mas uma vez que é o Sr. Malvino que me paga a casa e a comida,
sinto-me aliviado, e posso dar mais um tanto para a festa da Câmara.
[30 novembro]
ACHEI AGORA mesmo na rua um pedacinho de jornal, coisa de
três dedos de altura e pouco mais de largura. A minha regra, em tais casos é
deixar o papel onde está: é a do meu vizinho, e provavelmente a do gênero
humano. Mas, não sei por que, deu-me cócegas de apanhar este; lembrei-me de
certa máxima que ouvi proferir em um drama, que aqui se representou há muitos
anos, quando as galinhas ainda tinham dentes: "não se deve deixar rolar
papel nenhum''. E vai então inclinei-me, apanhei-o e li este anúncio:
Contratam-se coristas de ambos os sexos no Teatro Politeama;
preferem-se moços que saibam música".
Antes de mais nada, agradeci à Providência Divina este
imenso favor de haver-me deparado alguma coisa que, exprimindo um resto e
superstição antiga, dá-me ocasião de pedir a meus contemporâneo que hasteemos
audazmente a bandeira da liberdade.
A razão da superstição é clara. Sociedades políticas que
ainda tresandam à Idade Média, em que tudo se dividia em classes, não podem
conceber que a liberdade das funções seja um corolário da liberdade das
opiniões. Daí a exigência, ainda vulgar, de que os melhores sapatos são os dos
sapateiros: erro funesto e odioso, direi até ridículo que é preciso acabar de
uma vez para sempre.
Quando por exemplo, certa folha dizia há alguns dias que
convinha pôr de lado os políticos de profissão, e votar nos que o não eram,
essa folha escrevia uma grande verdade, daquelas que devemos trazer gravadas na
alma em letras perpétuas. E não digo isto, nem o disse ela, porque os políticos
de profissão não possam exercê-la algumas vezes com vantagem, como Bismark.
Pitt, Richelieu e alguns outros: mas porque o monopólio sendo ir inimigo nato
da liberdade (segundo elegantemente afirma o brigadeiro Calino), faz perdurar o
vício medieval que apontei, e impede que outros cidadãos levem ao governo do
Estado uma parte das qualidades que lhes são próprias. Além disso restringindo
Bismark à política, impede talvez que haja neste mundo mais um bom escrivão de
órfãos e ausentes. O mesmo direi do Sr. Maja.
Nada de ódios às preferencias. Por causa delas, vimos o que
aconteceu no matadouro. Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de
política: encomendemos as calças aos ourives. e os relógios aos boticários. Só
assim chegaremos à perfeita liberdade universal. Tudo que não for isto, é
voltar ao regímen das corporações de ofícios; é fazer da sociedade um vasto
tabuleiro de xadrez, ou ainda pior: pois neste jogo, se o tabuleiro se divide
em quadrados, é certo que as peças vão de um a outro. Na sociedade, como a
criaram as peças tem de ficar onde estão, bispo é bispo. cavalo é cavalo.
Não, ilustres contemporâneos meus; é evidente que este
regímen já deu o seu cocho. A sociedade não pode ser isto. A própria história
oferece exemplos salutares. Camões, que se gaba de ter tido em uma das mãos a
pena e na outra a espada, esqueceu dizer se era ele próprio que consertava os
seus calções rotos, mas provavelmente era, e ninguém lhe levou a mal. De S.
Paulo. sabe-se que ora apostolava. ora trabalhava de correeiro, e não lhe saíam
mal feitas? nem as correias, nem as epístolas. Reduzamos esses casos raros a um
princípio fixo e eterno; tudo para todos; não se preferem moços que saiba
música.
1886
[4 janeiro]
LULU SÊNIOR ouviu cantar o galo? mas não soube onde .É certo
que houve uma visita, mas não fui eu que a fiz; eu é que a recebi; também não
foi o João Velhinho que a fez. mas outra pessoa mais decrépita. Trazia é certo,
um pedaço de jornal, mas era a folhinha do ano novo.
A coisa passou-se assim; e não foi no dia 1.°, mas no dia 2.
Estava eu almoçando quando me vieram dizer que alguém queria falar comigo.
- Mas quem é?
- Não sei, não senhor: parece mascarado.
Se isto fosse há quarenta anos, ou pouco menos, já eu sabia
que era um bando de festas com música à frente, pedindo alguma coisa. Mas os
bandos acabaram: não sei quem diabo se lembraria de ir mascarado falar comigo.
Mandei abrir a sala e fui receber a visita.
Realmente, era um mascarado, ou mais propriamente um
fantasiado, pois trazia a cara descoberta: mas daqui a pouco veremos que vestia
as suas próprias roupas. Estas eram gregas e antigas.
- Com quem tenho a honra de falar? disse eu.
- Com quem tenho a honra de falar? disse eu.
- Com um infeliz, disse ele suspirando: e venho pedir-te que
me faças a esmola de ver se alcanças a minha liberdade...
- É escravo? perguntei admirado.
- Antes fosse!
- Pior que escravo?
- O escravo pode libertar-se: eu não posso nada mais que
gemer e pedir. Vês estas roupas? São dois belos séculos de Atenas.
- Vossa Senhoria é ateniense?
-Não me dês senhoria. Lá em Atenas todos me tratavam por tu:
o próprio Alcibíades, o próprio Aristides... Ai, Aristides! Não posso falar
deste homem sem cobrir-me de vergonha. Fui eu que o exilei.
- Ora espero! És então aquele votante anônimo, que, cansado
de ouvir chamá-lo justo. condenou-o por ocasião do ostracismo...- Não; eu sou o
próprio Ostracismo.Tu... Ostracismo. . .
- Eu mesmo. Desde que me aposentaram, nunca mais servi, até
que, em 1850 da era cristã, alguns patrícios teus foram pedir-me, como grande
obséquio que viesse ajudá-los na política. Recusei a pés juntos dizendo que,
depois de tantos remorsos que me pungiam, nunca mais me viriam pôr a ponta pés
da pátria para fora os melhores servidores dela. Então eles explicaram-se; não
queriam ostracismo de verdade. mas só de fraseologia, um ostracismo puramente
caligráfico, e tipográfico. Tanto que a mesma ostra, se chegassem a empregá-la
seria ao almoço, crua, com Sauterne. À vista disso, aceitei, sem saber que
aceitava a minha prisão. Sim, meu caro, vês aqui um triste prisioneiro dos teus
patrícios.
- Mas... como...
- Ainda hoje. Aqui tens uma folha, é o Diário do Brasil,
recomenda (ainda que imerecidamente) um candidato às eleições próximas; mas que
acrescenta ele sofreu com os seus amigos o ostracismo, e que os acompanhou.
Juro-te que nunca fiz sofrer ninguém, desde que me aposentei; é uma calúnia,
meu caro. Tenho-me calado, ouvindo dessas e de outras, mas também assim cansa,
não posso mais.
- Mas, enfim, que quer que Lhe faça?- Quero que bote na
Gazeta alguma coisa em meu favor, que me libertem, ou pelo menos que me deixem
descansar até o fim do século; sempre é um alívio. Mais tarde, pode ser que
assim como se põe meias solas aos sapatos, assim se possa fazer às imagens,
figuras e outras partes do estilo. Por ora estou muito acalcanhado.. Ostracismo
para cá, ostracismo para lá; é ostracismo demais. Se os teus patrícios
recusarem libertar-me diretamente, então lança mão de um meio indireto e
infalível: recomenda-lhe que empreguem sempre os nomes apropriados às coisas...
Verás, verás se vou daqui dormir por alguns anos. Sim?
Disse-lhe que sim; ele saiu. Escusado é dizer que era um
doido; daí a meia hora foi preso e recolhido à 5 a estação.
FIM
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