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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte final]

E assim os outros. Chegam, aturdem nos primeiros minutos, depois dão algumas horas de palestra, bebem dois goles de chá, e adeus.
Portanto, não tenho assunto. Não hei de, à falta dele, meter-me a encarecer alguma ação bonita. As boas ações têm o preço na consciência dos que as praticam; elogiá-las muito é ofender a modéstia dos autores. Lá uma ou outra palavrinha doce, -não muito doce. - um aperto de mão, e, se houver copo d'água, um bom par de queixos, sim, senhor, é comigo. Querer, porém, que eu. além do trabalho de digerir o jantar de um homem, venha cá para fora dizer que ele e virtuoso, não é comigo, é aqui com o meu vizinho. Nesse caso preferia roer num duro escândalo, a papar o melhor guisado deste mundo.
São gostos. É como o Cristo de Bernardelli. Com franqueza. acho que estão fazendo barulho demais. Já se fala em dar a mão ao rapaz, já ele é um bom talento, já tem grande futuro. e outras coisas desse jaez, como se todos não fôssemos filhos de Deus, e se Deus para fazer escultor a um homem, precisasse saber primeiro se ele se chama Bernardelli.
Também eu gosto de mármore. Tenho cá em casa uma pia de lavar as mãos, que é de mármore: não é tão bonito como o do Cristo. mas não é feio. O que há, é que o uso já o tem estragado bastante. Custou-me oitenta mil-réis, tudo; oitenta ou cem, tenho as contas guardadas.
Afinal, vão ver que tudo isso são balelas de estudantes. Eu, que lá fui à academia duas vezes (a segunda foi para falar a um empregado que me deve quinze-mil-réis) vi sempre estudantes que entravam. com os seus livros debaixo do braço, e ficavam pasmados diante do grupo. Não os censuro, por isso; são rapazes. Também eu fui rapaz: também gostei de bonecos.


[6 novembro]
O SR. MINISTRO da Justiça entende que os tabeliães devem (com perdão da palavra) tabelionar. Entende que arrendar o ofício não é exercê-lo, segundo a intenção da lei.
Perdoe-me S. Ex.a. Essa doutrina é subversiva, não da ordem legal, mas da ordem natural, o que é pior. As leis reformam-se sem risco; mas torcer a natureza não é reformá-la, é deformá-la.
Ponhamos de parte o caso de verdadeira doença do serventuário, que o obrigue a pedir licença. Vamos ao principio geral. S. Ex.a confunde nomeação e vocação. Ponhamos o caso em mim. Eu, se amanhã me nomearem bispo, poderia receber com regularidade a côngrua e os emolumentos, mas. por falta de vocação, preferia uma boa rede a todas as câmaras eclesiásticas. S. Ex.a dirá, porém, que esta hipótese é absurda; aqui vai outra.
Suponhamos que no dia 15 de janeiro, por uma dessas inspirações geniais que o céu concede aos povos nos momentos supremos da história, elegem-me deputado. Vocação, aquilo que se chama vocação ou aptidão parlamentar. não a tenho; mas tenho respeito à vontade do eleitor, à indicação das urnas, e, para conciliar a ordem soberana com a minha inópia, dividiria o tempo de maneira que fosse algumas vezes à Câmara. Poderia o eleitor, em tal caso, obrigar-me a conhecer as matérias, estudá-las, expô-las. redigir pareceres, fazer discursos? Não; era cair no mesmo erro de deformar a natureza com o intuito de reformá-la. O mais que o eleitor podia e devia fazer, era afirmar o seu direito soberano, elegendo-me outra vez.
O caso dos tabeliães é mais grave. Não se trata de um cargo temporário, como o de deputado, nem se Lhe pode dar, como a este. um tal ou qual exercício mínimo e aparente, por meio de alguns papéis à Câmara. O oficio é vitalício, e exerce-se ou não. Exercê-lo sem vocação é produzir dois grandes males, em que S. Ex.a não advertiu. Constrange-se um espírito apto para outra coisa a definhar nos recessos de um cartório, e arrisca-se a fazenda particular aos descuidos possíveis de quem faz as coisas sem amor.
Veia agora o contrário. Dê-me Sua Ex.a um desses ofícios. Eu, que não nasci para ele, vou ter com outro, que nasceu, que sabe, que ama a escritura e o traslado, e digo-lhe:-Velho é o adágio que diz que onde come um português, comem dois e três, e nós não podemos desmentir a origem nacional. Você fica aqui. que eu já volto.
Não voltava. é claro. E ganhávamos todos, começando pela ciência, porque eu, mineralogia de algum valor, iria viver o resto dos meus dias examinando as pedras de Petrópolis e da Tijuca, e até as da Rua do Ouvidor, que, por estarem à mão,-ninguém sabe o que valem. Não conto a vantagem do Governo. que acomodaria assim duas pessoas na mesma casa. S. E,. a tem uma escapatória que é esta: - recusar o ofício. Mas eu pergunto se era decente fazê-lo; pergunto se, vindo o Estado a mim, e dizendo-me: Cidadão, partícula de mim mesmo, aqui tens este ofício, exerce-o, segundo as leis e os costumes, escuta a viúva. atende ao herdeiro, ouve o vendedor, e o comprador, lavra, traslada, registra", - pergunto se, em tal caso, tinha eu o direito de recusar. Evidentemente, não.
16 de Out
Não tenho a menor esperança de fazer revogar o ato de S. Ex.a. Mas estou certo de que estas idéias hão de frutificar. A questão e mais alta do que pode parecer aos frívolos. Trata-se de pôr nos atos do governo certas considerações de ordem cientifica: trata-se de mostrar que o Estado pode dar-me um ofício, e até dois, se lhe parecer; mas não pode, sem abuso e perigo, constranger-me a ocupá-lo ou ocupá-los.
E quando falo em Estado, refiro-me a todos os seus órgãos, cujo exercício anticientífico entre nós é realmente deplorável. Leu S. Ex.a o último edital do juiz municipal de Barra Mansa? Chamam-se ali compradores para os bens penhorados a um major; e entre outras vacas, inscreve-se esta: "Uma vaca magra, muito ruim, avaliada em 10$000" Não há procedimento menos cientifico. Por que é que a lei do particular não será a lei do Estado?
Nenhum particular diria tal coisa. Querendo vender a vaca, o particular poria no anúncio qualquer eufemismo delicado; diria que era , uma vaca menos que regular, uma vaca com defeito, uma vaca para serviços leves. Jamais confessaria que a vaca era muito ruim. E vendê-la-ia. Creiam, não digo pelos dez- mil-réis, mas por que quinze ou dezoito mil-réis. Se isto não é cientifico, então não sei o que é cientifico neste mundo e no outro

[23 de novembro]
PARTICIPO aos meus amigos que vou abrir (ou erigir) um quiosque. Resta-me só escolher o lugar e pedir licença à Câmara.
Toda a gente sabe que o quiosque é um dos exemplos mais expressivos da lei de adaptação. Creio que na capital donde ele nos veio, é o lugar onde se mete uma mulher a vender jornais.
Aqui serve de abrigo a um ativo cidadão, que vende cigarros e bilhetes de loteria. Parece, à primeira vista, que um negócio desses não há de deixar grandes fundos. Pois deixa; e a prova é que ainda agora, a Câmara, concedendo um, para o Largo de S. Francisco de Paula, impôs ao pretendente uma entrada de quinhentos mil-réis para O livro de ouro.
Nunca as mãos lhe doam à Câmara. Vá fazendo as suas concessões, uma vez que sejam justas, com a cláusula, porém, de que os pretendentes hão de entrar para O livro de ouro, por onde se vão libertar escravos no dia 2 de dezembro. A última sessão rendeu-lhe uns seis contos. Só um dos concessionários tem de dar cinco contos de réis; os outros quinhentos mil-réis são do dono de um estábulo.
O único senão que se poderá notar nesse método, é que, ao lado da filantropia real, estamos vendo florescer uma filantropia artificial em grande escala; mas, depois do sol artificial do Sr. D,. Costa Lopes e dos vinhos artificiais de outras pessoas, creio que podemos ir aposentando a natureza. A natureza está ficando velha; e o artifício é um rapagão ambicioso.
No livro de ouro há vinho puro, e sol verdadeiro. Há uma parte, que é do melhor vinho cristão, daquele que a mão esquerda ignora: os dez contos anônimos que o Sr. Conde de Mesquita para lá mandou. Mas como o vinho puro não chega para o festim da Câmara lembrou-se ela-e em boa hora-de aceitar do outro, considerando que no fim dá certo, e os escravos ficam livres.
Também há dias um anônimo teve a ideia de aconselhar ao governo um modo de acabar com a escravidão. Era estabelecer uma escala de preços para os títulos nobiliários, e convidar as pessoas que quisessem admissão ou promoção na classe. O autor chegou a citar nomes de titulares conhecidos e até de senhoras. Marcou ele mesmo os preços: um marquesado custaria cinqüenta contos, etc. . .
A ideia em si não é má. Dever um título à alforria de uns tantos escravos, pode ser menos heroico, mas não é menos cristão que devê-lo à tomada de Jerusalém. Acho a coisa perfeitamente justa? nem é por aí que a critico. Também José Clemente levantou o Hospício de Pedro 11, por igual método; lucraram os infelizes, doidos, e lucramos todos nós, que podemos jantar à mesma mesa sem deitar os pratos à cara um dos outros; a presunção e que temos juízo; digo a presunção legal...
Não o mal da ideia é que, por mais que acudissem aos títulos, o dinheiro que se recolhesse não chegaria para um buraco do dente da escravidão. O livro de ouro, da Câmara, e mais fácil de encher, porque é mais limitado.
Lá vou pôr os meus quinhentos mil-réis, ou mais, se mo pedirem, a troco do quiosque. Agora, principalmente, depois que li uma folha de S. Paulo, estou pronto a abrir os cordões da bolsa. A citada folha declara que se deve votar no Sr. Comendador Malvino Reis para deputado, por ser daqueles que aguentam com as despesas públicas. Eu até aqui, quando as lojas de fazendas me pediam alguma coisa mais pela roupa e me diziam que era por causa dos impostos, imaginava que elas e eu dividíamos a carga ao meio, e que lá entrava o triste de mim, indiretamente, com alguma coisa nos ordenados dos funcionários; mas uma vez que é o Sr. Malvino que me paga a casa e a comida, sinto-me aliviado, e posso dar mais um tanto para a festa da Câmara.

[30 novembro]
ACHEI AGORA mesmo na rua um pedacinho de jornal, coisa de três dedos de altura e pouco mais de largura. A minha regra, em tais casos é deixar o papel onde está: é a do meu vizinho, e provavelmente a do gênero humano. Mas, não sei por que, deu-me cócegas de apanhar este; lembrei-me de certa máxima que ouvi proferir em um drama, que aqui se representou há muitos anos, quando as galinhas ainda tinham dentes: "não se deve deixar rolar papel nenhum''. E vai então inclinei-me, apanhei-o e li este anúncio:
Contratam-se coristas de ambos os sexos no Teatro Politeama; preferem-se moços que saibam música".
Antes de mais nada, agradeci à Providência Divina este imenso favor de haver-me deparado alguma coisa que, exprimindo um resto e superstição antiga, dá-me ocasião de pedir a meus contemporâneo que hasteemos audazmente a bandeira da liberdade.
A razão da superstição é clara. Sociedades políticas que ainda tresandam à Idade Média, em que tudo se dividia em classes, não podem conceber que a liberdade das funções seja um corolário da liberdade das opiniões. Daí a exigência, ainda vulgar, de que os melhores sapatos são os dos sapateiros: erro funesto e odioso, direi até ridículo que é preciso acabar de uma vez para sempre.
Quando por exemplo, certa folha dizia há alguns dias que convinha pôr de lado os políticos de profissão, e votar nos que o não eram, essa folha escrevia uma grande verdade, daquelas que devemos trazer gravadas na alma em letras perpétuas. E não digo isto, nem o disse ela, porque os políticos de profissão não possam exercê-la algumas vezes com vantagem, como Bismark. Pitt, Richelieu e alguns outros: mas porque o monopólio sendo ir inimigo nato da liberdade (segundo elegantemente afirma o brigadeiro Calino), faz perdurar o vício medieval que apontei, e impede que outros cidadãos levem ao governo do Estado uma parte das qualidades que lhes são próprias. Além disso restringindo Bismark à política, impede talvez que haja neste mundo mais um bom escrivão de órfãos e ausentes. O mesmo direi do Sr. Maja.
Nada de ódios às preferencias. Por causa delas, vimos o que aconteceu no matadouro. Mandemos governar o Estado pessoas que não entendam de política: encomendemos as calças aos ourives. e os relógios aos boticários. Só assim chegaremos à perfeita liberdade universal. Tudo que não for isto, é voltar ao regímen das corporações de ofícios; é fazer da sociedade um vasto tabuleiro de xadrez, ou ainda pior: pois neste jogo, se o tabuleiro se divide em quadrados, é certo que as peças vão de um a outro. Na sociedade, como a criaram as peças tem de ficar onde estão, bispo é bispo. cavalo é cavalo.
Não, ilustres contemporâneos meus; é evidente que este regímen já deu o seu cocho. A sociedade não pode ser isto. A própria história oferece exemplos salutares. Camões, que se gaba de ter tido em uma das mãos a pena e na outra a espada, esqueceu dizer se era ele próprio que consertava os seus calções rotos, mas provavelmente era, e ninguém lhe levou a mal. De S. Paulo. sabe-se que ora apostolava. ora trabalhava de correeiro, e não lhe saíam mal feitas? nem as correias, nem as epístolas. Reduzamos esses casos raros a um princípio fixo e eterno; tudo para todos; não se preferem moços que saiba música.

1886

[4 janeiro]
LULU SÊNIOR ouviu cantar o galo? mas não soube onde .É certo que houve uma visita, mas não fui eu que a fiz; eu é que a recebi; também não foi o João Velhinho que a fez. mas outra pessoa mais decrépita. Trazia é certo, um pedaço de jornal, mas era a folhinha do ano novo.
A coisa passou-se assim; e não foi no dia 1.°, mas no dia 2. Estava eu almoçando quando me vieram dizer que alguém queria falar comigo.
- Mas quem é?
- Não sei, não senhor: parece mascarado.
Se isto fosse há quarenta anos, ou pouco menos, já eu sabia que era um bando de festas com música à frente, pedindo alguma coisa. Mas os bandos acabaram: não sei quem diabo se lembraria de ir mascarado falar comigo. Mandei abrir a sala e fui receber a visita.
Realmente, era um mascarado, ou mais propriamente um fantasiado, pois trazia a cara descoberta: mas daqui a pouco veremos que vestia as suas próprias roupas. Estas eram gregas e antigas.
- Com quem tenho a honra de falar? disse eu.
- Com um infeliz, disse ele suspirando: e venho pedir-te que me faças a esmola de ver se alcanças a minha liberdade...
- É escravo? perguntei admirado.
- Antes fosse!
- Pior que escravo?
- O escravo pode libertar-se: eu não posso nada mais que gemer e pedir. Vês estas roupas? São dois belos séculos de Atenas.
- Vossa Senhoria é ateniense?
-Não me dês senhoria. Lá em Atenas todos me tratavam por tu: o próprio Alcibíades, o próprio Aristides... Ai, Aristides! Não posso falar deste homem sem cobrir-me de vergonha. Fui eu que o exilei.
- Ora espero! És então aquele votante anônimo, que, cansado de ouvir chamá-lo justo. condenou-o por ocasião do ostracismo...- Não; eu sou o próprio Ostracismo.Tu... Ostracismo. . .
- Eu mesmo. Desde que me aposentaram, nunca mais servi, até que, em 1850 da era cristã, alguns patrícios teus foram pedir-me, como grande obséquio que viesse ajudá-los na política. Recusei a pés juntos dizendo que, depois de tantos remorsos que me pungiam, nunca mais me viriam pôr a ponta pés da pátria para fora os melhores servidores dela. Então eles explicaram-se; não queriam ostracismo de verdade. mas só de fraseologia, um ostracismo puramente caligráfico, e tipográfico. Tanto que a mesma ostra, se chegassem a empregá-la seria ao almoço, crua, com Sauterne. À vista disso, aceitei, sem saber que aceitava a minha prisão. Sim, meu caro, vês aqui um triste prisioneiro dos teus patrícios.
- Mas... como...
- Ainda hoje. Aqui tens uma folha, é o Diário do Brasil, recomenda (ainda que imerecidamente) um candidato às eleições próximas; mas que acrescenta ele sofreu com os seus amigos o ostracismo, e que os acompanhou. Juro-te que nunca fiz sofrer ninguém, desde que me aposentei; é uma calúnia, meu caro. Tenho-me calado, ouvindo dessas e de outras, mas também assim cansa, não posso mais.
- Mas, enfim, que quer que Lhe faça?- Quero que bote na Gazeta alguma coisa em meu favor, que me libertem, ou pelo menos que me deixem descansar até o fim do século; sempre é um alívio. Mais tarde, pode ser que assim como se põe meias solas aos sapatos, assim se possa fazer às imagens, figuras e outras partes do estilo. Por ora estou muito acalcanhado.. Ostracismo para cá, ostracismo para lá; é ostracismo demais. Se os teus patrícios recusarem libertar-me diretamente, então lança mão de um meio indireto e infalível: recomenda-lhe que empreguem sempre os nomes apropriados às coisas... Verás, verás se vou daqui dormir por alguns anos. Sim?
Disse-lhe que sim; ele saiu. Escusado é dizer que era um doido; daí a meia hora foi preso e recolhido à 5 a estação.

FIM


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