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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte final]


Os outros fitaram-no, espantados.
- Você quer dizer que o fez propositadamente? - perguntou Bernard.
- É assim que os índios se purificam sempre. - Sentou-se e, suspirando, passou a mão pela testa. - Vou
repousar uns minutos - disse. - Estou um pouco fatigado.
- Está bem, não me admira - volveu Helmholtz. E, depois de um silêncio, continuou: - Viemos dizerlhe
adeus. Partimos amanhã de manhã.
- Sim, partimos amanhã de manhã - confirmou Bernard, em cujo rosto o Selvagem descobriu uma
expressão nova de determinação resignada. - E, a propósito, john - continuou,
inclinando-se para diante na cadeira e pousando uma mão no joelho do Selvagem , quero dizerlhe,
quanto lamento tudo o que se passou ontem. - Corou. - Como estou envergonhado - acrescentou em
voz incerta -, quanto, na verdade ...
O Selvagem interrompeu-o bruscamente e, pegando-lhe na mão, apertou-lha afectuosamente.
- Helmholtz foi extraordinariamente gentil para mim - continuou Bernard depois de uma certa pausa. -
Sem ele, teria...
- Vamos, vamos - protestou Helmholtz. Estabeleceu-se um silêncio. Apesar da sua tristeza, ou, até,
devido a ela, porque a tristeza era o sintoma de afeição que os ligava uns aos outros, os três jovens
sentiam-se felizes.
- Fui visitar o Administrador esta manhã - disse por fim o Selvagem.
- Para quê?
- Para lhe perguntar se podia ir para a ilha com vocês.
- E que disse ele? - perguntou avidamente Helmholtz.
O Selvagem abanou a cabeça.
- Não me deu autorização.
- Porque não?

- Disse que queria prosseguir a experiência. Mas o Diabo me carregue - acrescentou o Selvagem com
um súbito furor -, o Diabo me carregue se continuar a servir de objecto de experiências. Nem por todos
os Administradores do mundo. Eu também partirei amanhã.
- Mas para onde? - perguntaram os outros ao mesmo tempo.
O Selvagem encolheu os ombros.
- Para qualquer parte. É-me indiferente. Desde que possa estar só.
De Guildford, a via aérea descendente seguia o vale de Wea até Godalming; depois, por Mildford e
Witley, dirigia-se para Haslemere e continuava, por Petersfield, para Portsmouth. Seguindo um traçado
aproximadamente paralelo, a via ascendente passava por Worplesden, Tongham, Puttenham, Elstead e
Grayshott. Entre as cristas de Hog's Back e Hondhead havia lugares onde as duas linhas não estavam
afastadas mais de seis ou sete quilómetros. Esta distância era muito pequena para os aviadores
negligentes, sobretudo de noite e quando tinham absorvido meio grama de soma a mais. já houvera
acidentes. Acidentes graves. Tinha-se decidido desviar a linha ascendente alguns quilómetros para
oeste. Entre Grayshott e Tongham, quatro faróis aéreos abandonados assinalavam o traçado da antiga
rota de Portsmouth a Londres. Os céus, acima deles, estavam silenciosos e desertos. Era por Selborne,
Borden e Farnham que, roncando e rugindo, passavam agora ininterruptamente os helicópteros.
O Selvagem escolhera para eremitério o velho farol que se levantava na crista entre Puttenham e
Elstead. A construção era de cimento armado e estava em excelentes condições, quase demasiado
confortável, pensara o Selvagem quando pela primeira vez explorou o local, quase com um luxo
demasiado. Tranquilizou a consciência prometendo compensar o luxo por uma disciplina pessoal mais
rigorosa, com purificações mais completas e mais severas. A sua primeira noite no eremitério foi,
deliberadamente, uma noite de insónia. Passou-a de joelhos, dirigindo preces ora ao Céu, a que o
culpado Claudius tinha mendigado o seu perdão, ora, em zuñi, a Awonawilona, ora a Jesus e a Pukong,
ora ao seu próprio animal protector, a águia. De longe em longe abria os braços como se estivesse na
cruz e mantinha-os assim durante longos minutos de uma dor que aumentava até se t'ransformar num
paroxismo de tortura insuportável; mantinha-os assim, em crucificação voluntária, enquanto repetia
com os dentes cerrados e o suor a escorrer-lhe pela cara abaixo: «Oh! Perdoai-me! Purificai-me! Oh!
Auxiliai-me para que eu seja virtuoso», repetindo muitas e muitas vezes a fórmula até quase desmaiar
de dor.
Quando chegou a manhã, teve a sensação de ter conquistado o direito de habitar o farol. Sim, embora
ainda houvesse vidros na maior parte das janelas, embora a vista que se desfrutava da plataforma fosse
tão bela. Porque a razão pela qual escolhera este farol tinha-se tornado quase imediatamente uma razão
para ir para outro sítio. Tinha resolvido viver lá porque a vista era tão bela, porque, deste ponto
dominante da paisagem, lhe parecia contemplar ao longe a encarnação de uma coisa divina. Mas quem
era ele então para ser agraciado com o espectáculo
quotidiano, horário mesmo, da beleza? Quem era ele então para viver na presença visível de Deus?
Tudo o que merecia, em matéria de habitação, era qualquer estábulo sujo, um buraco sem luz, no chão.
Ainda alquebrado e dolorido depois da sua longa noite de sofrimento, mas por isso mesmo
tranquilizado interiormente, subiu à plataforma da torre, na qual conquistara o direito de morar, e
contemplou o mundo brilhante na alvorada. Ao norte, a vista era limitada pela longa aresta de greda da
crista de Hog's Back, atrás de cuja extremidade oriental se erguiam as torres dos sete arranha-céus que
constituíam Guildford. Distinguindo-as, o Selvagem fez uma careta; mas ia quase a seguir reconciliarse
com elas, porque de noite cintilavam alegremente em constelações geométricas, ou então,
iluminadas por projectores, dirigiam os seus longos dedos luminosos (num gesto que presentemente
ninguem na Inglaterra, a não ser o Selvagem, compreendia), com solenidade, para os mistérios
insondáveis dos céus.
No vale que separava a crista de Hog's Back da colina arenosa sobre a qual se levantava o farol,
Puttenham era uma aldeiazinha modesta, com uma altura de nove andares, com silos, um aviário e uma
fabriqueta de vitamina D. Do outro lado do farol, para o sul, o terreno descia em longas encostas
cobertas de urzes, até uma série de charcos.
Para além, acima dos bosques intermediários, erguia-se a torre de catorze andares de Eistead.
Vagamente perceptíveis no fundo brumoso do ar da Inglaterra, Hindhead e Selborne solicitavam os
olhares para um longínquo e romântico azul. Mas não fora o longínquo que atraíra o Selvagem ao farol;
as cercanias eram tão sedutoras como os longes. Os bosques, as extensões livres de urzes e de giestas
amarelas, as matas de pinheiros da Escócia, os charcos brilhantes, com as suas bétulas inclinadas, os
seus nenúfares, os seus leitos de juncos, tudo isto era magnífico e, para olhos habituados à aridez do
deserto americano, espantoso. E, além disso, a solidão! Passaram-se dias inteiros sem que visse um
único ser humano. O farol estava a menos de um quarto de hora de voo da torre de Charing-T; mas as
montanhas de Malpaís eram apenas mais desérticas que esta mata do Surrey. As Multidões que todos
os dias saíam de Londres, saíam apenas para jogar o golf electromagnético ou o ténis. Puttenham não
tinha terreno de golf; os campos Riemann mais próximos situavam-se em Guildford. As flores e a
paisagem eram, aqui, as únicas atracções. De maneira que, como não havia razão plausível para vir,
ninguém vinha. Durante os primeiros dias, o Selvagem viveu só, sem ser incomodado.
Do dinheiro que, quando da sua chegada, john tinha recebido para os seus gastos pessoais, a maior
parte fora despendida na compra de equipamento. Antes de deixar Londres tinha comprado quatro
cobertores de lã de viscose, corda, barbante, pregos, cola, alguma ferramenta, fósforos (se bem que não
tivesse intenção de, para já, fabricar uma roda de fogo), alguns potes e algumas caçarolas, duas dúzias
de pacotes de grãos e dez quilos de farinha de trigo candial. «Não, nada de pseudofarinha de amido
sintético e detritos de algodão», insistira. «Ainda que esta seja mais nutritiva.» Mas quando se tratou de
biscoitos panglandulares e de pseudobolo vitaminado, não conseguira resistir às frases persuasivas do
vendedor. Contemplando agora as caixas de folhas-de-flandres, censurou-se amargamente pela sua
fraqueza. Odiosos produtos civilizados! Tinha decidido nunca os comer, mesmo que estivesse a morrer
de fome. «Isso os ensinará», pensou, vingativo. Isso o ensinaria também a ele.

Contou o dinheiro que tinha. O pouco que lhe restava chegaria, pensou, para lhe permitir passar o
Inverno. A partir da próxima Primavera, o seu jardim produziria bastante para o tornar independente do
mundo exterior. Enquanto aguardava, haveria sempre caça. Tinha visto coelhos em quantidade e havia
aves aquáticas nos charcos. Imediatamente meteu mãos à obra para fazer um arco e flechas.
Havia freixos perto do farol e, para as hastes das flechas, havia um bosquezinho de aveleiras novas,
maravilhosamente direitas. Começou por abater um freixo, cortou dois metros de tronco sem galhos,
descascou-o, e, camada após camada, tirou toda a madeira branca, como lhe tinha ensinado o velho
Mitslma, até obter um pau de arco da sua altura, rígido e mais grosso no centro, flexível e vibrátil nas
extremidades adelgaçadas. O trabalho deu-lhe um prazer intenso. Depois de tantas semanas de lazer em
Londres, durante as quais não tinha mais a fazer, de cada vez que desejava alguma coisa, que premir
um comutador ou girar uma manivela, foi para ele uma delícia estar ocupado a
fazer alguma coisa que exigia habilidade e paciência. Tinha quase acabado de arranjar a vara segundo a
forma pretendida, quando se deu conta, sobressaltado, de que estava a cantar. - Estava a cantar! - Foi
como se, caindo por acaso do exterior para dentro de si próprio, se tivesse subitamente traído, se
tivesse surpreendido em flagrante delito. Corou como um culpado. Com efeito, não era para cantar e
para se divertir que tinha vindo para ali. Era para escapar à contaminação invasora da porcaria da vida
civilizada, era para ser purificado e tornar-se virtuoso, era para se redimir pela actividade. Apercebeuse,
consternado, de que, absorvido pela construção do arco, se esquecera -daquilo que jurara ter sempre
na memória: a pobre Linda e a sua própria dureza assassina para com ela, e aqueles odiosos gémeos,
formigando como piolhos sobre o mistério da sua morte, insultando com a sua presença não apenas o
seu desgosto e o seu arrependimento pessoais, mas, até, os próprios deuses. Tinha jurado lembrar-se,
tinha jurado consagrar-se ao resgate de tudo ísso. E eis que estava sentado, feliz, trabalhando na vara
do seu arco, cantando, cantando verdadeiramente ...
Entrou em casa, abriu a lata da mostarda e pôs a água ao lume.
Meia hora mais tarde, três trabalhadores agrícolas Deltas-Menos de um dos grupos Bokanovsky de
Puttenham conduziam um camião para Elstead e, no alto da colina, surpreenderam-se ao ver um jovem
de pé diante do farol abandonado, nu de cintura para cima, flagelando-se com um chicote de cordas'.
com nós. Tinha o tronco coberto de vergões avermelhados, por' entre os quais corriam pequenos fios de
sangue. O condutor do camião parou ao lado da estrada e, com os seus dois companheiros, contemplou,
de olhos arregalados, boca aberta, aquele espectáculo extraordinário. «Um, dois, três», contavam os
golpes. Depois do oitavo, o jovem interrompeu a autopunição e, correu até à orla do bosque, para
vomitar violentamente. Quando acabou de vomitar empunhou o chicote e recomeçou a flagelar-se.
«Nove, dez, onze, doze ... »
- Ford! - murmurou o condutor. E os gémeos eram da mesma opinião.
- Fordezinho! - disseram. Três dias depois, como uma nuvem de corvos abatendo-se sobre um cadáver,
chegaram os repórteres.
Seco e endurecido a fogo brando de madeira verde, o arco estava pronto. O Selvagem estava ocupado
na confecção das flechas. Trinta varinhas de aveleira tinham sido cortadas e secas, munidas, numa
ponta, de um prego aguçado e, na outra, de um pequeno entalhe cuidadosamente cortado. Fizera de
noite uma surtida ao aviário de Puttenham e tinha agora penas em quantidade suficiente para equipar
uma fábrica de flechas. Estava em pleno trabalho, ocupado em guarnecer de penas as varas das flechas,
quando o primeiro repórter o encontrou. Silenciosamente, graÇas aos seus sapatos pneumáticos, o
homem aproximou-se dele pelas costas.
- Bom dia, senhor Selvagem - disse ele. - Sou o representante do Rádio Horário.
Estremecendo como sob a picada de uma serpente, o Selvagem pôs-se de pé num salto, e as flechas, as
penas, o pote de cola e o pincel espalharam-se em todas as direcções.
- Peço-lhe desculpa - disse o repórter, com sincero pesar. - Não tinha, de maneira alguma, a intenção
de... - Levou o dedo ao chapéu, a chaminé de alumínio em que transportava o emissor-receptor de T. S.
F. - Desculpe-me não o tirar, mas é tão pesado... Bem, como lhe dizia, sou o representante do Rádio. ...
- E que quer você? - perguntou o Selvagem, olhando-o de esguelha.
O repórter respondeu-lhe, com o seu melhor sorriso: Pois bem! Como é natural, os nossos leitores
interessar-se-Iam vivamente... - Pôs a cabeça de lado, o seu sorriso tornou-se quase um artificio de
sedução. - Apenas algumas palavras suas, senhor Selvagem. - E, rapidamente, com uma série de gestos
rituais, desenrolou dois fios metálicos ligados à bateria portátil que trazia presa ao cinto, ligou-os
simultaneamente nas paredes do seu chapéu de alumínio, tocou uma mola no fundo, e as antenas
ergueram-se no ar. Tocou uma outra mola na extremidade da aba e, como um diabo de caixa de
surpresas, saltou um microfone, que ficou ali, suspenso, balançando-se a quinze centímetros do seu
nariz. Baixou dois receptores para as orelhas, apertou um comutador no lado esquerdo do chapéu, e do
interior saiu um leve zumbido de abelha. Girou um botão à direita, e o zumbido foi interrompido por
um silvo e um grasnar
estetoscópicos, por soluços e chiados repentinos. - Alô - disse ele ao microfone. - É você, Edzel? Aqui,
Primo Mellon. Sim, já o desencantei. O senhor Selvagem vai agora pegar no microfone para dizer
algumas palavras. Não é verdade, senhor Selvagem?
- Ergueu os olhos para o Selvagem com outro dos seus sorrisos sedutores que tão bem sabia manejar. -
Queira simplesmente dizer aos nossos leitores a razão que o levou a vir aqui. O que o obrigou a deixar
Londres - não corte, Edzel! - tão bruscamente. E, é claro, fale-lhes do seu chicote. - O Selvagem
estremeceu. Como sabiam eles da existência do chicote? - Ardemos em desejo de saber qualquer coisa
acerca do chicote. E depois qualquer coisa sobre a civilização. Compreende bem o género de coisas a
que me refiro: «Aquilo que pensa da mulher civilizada.» Algumas palavras apenas, muito pouco...
O Selvagem obedeceu de modo tão rigoroso que ele ficou desconcertado. Pronunciou cinco palavras,
não mais, cinco palavras, as mesmas que tinha dito a Bernard a propósito do arquichantre de
Canterbury. - Hàni! Sons éso tse nà! - E agarrando o repórter pelos ombros, fê-lo girar - o rapaz
revelou-se almofadado como era preciso -, visou-o e, com toda a força e precisão de um desses
futebolistas de campeonato, aplicou-lhe um pontapé verdadeiramente prodigioso.
Oito minutos mais tarde, uma nova edição do Rádio Horário estava à venda nas ruas de Londres. UM
REPóRTER DO «RÁDIO HORÁRIO» RECEBE DO SELVAGEM MISTERIOSO UM PONTAPÉ
NO Cóccix - dizia um título da primeira página. - SITUAÇÃO SENSACIONAL NO SURREY.
«Situação sensacional mesmo em Londres», pensou- o repórter, quando, no regresso, leu aquelas
palavras. Sensacional e muito dolorosa, o que era mais. Sentou-se cautelosamente para almoçar.
Sem se deixarem deter por aquela amolgadela dada à guisa de advertência no cóccix do seu colega,
quatro outros repórteres, representando o Times, de Nova Iorque, o Continuum Quadridimensional, de
Francfort, o Monitor da Ciência Fordiana e o Espelho dos Deltas, dirigiram-se nessa tarde ao farol onde
foram recebidos com uma violência fortemente crescente. - Imbecil ignaro! Porque não toma soma? -
perguntou, a uma distância suficiente para se sentir em segurança o homem do Monitor da Ciência
Fordiana, esfregando ainda as nádegas.
- Deixe-me em paz! - O Selvagem mostrou-lhe os punhos.
O outro recuou mais alguns passos e depois voltou-se: - O mal é uma coisa irreal se tomarmos dois
gramas.
- Kohakva iyathtokyal! - O tom da sua voz era ameaçador de zombaria.
- A dor é uma ilusão.
- Ah! Sim? - disse o Selvagem. E, apanhando uma grossa vara de aveleira, avançou para ele.
O homem do Monitor da Ciência Fordiana precipitou-se de um salto para o seu helicóptero.

Depois disso, deixaram o Selvagem em paz durante algum tempo. Alguns helicópteros vieram planar
com curiosidade em volta da torre. Atirou uma flecha contra aquele que se aproximou mais
imprudentemente. A flecha furou o alumínio do chão da cabina. Ouviu-se um berro estridente e o
aparelho saltou no ar forçado pelo máximo de aceleração que lhe pôde dar o seu superacelerador.
Depois disso, os outros mantiveram-se respeitosamente a uma apreciável distância. Mostrando
desprezo pelo zumbido fastidioso dos helicópteros - comparou-se, em imaginação, a um dos
pretendentes da filha de Matsaki, impassível e persistente no meio da vérmina alada -, o Selvagem
cavava aquilo que seria o seu jardim. Depois de algum tempo, a vérmina cansava-se manifestamente e
desaparecia; durante as horas seguintes o céu acima da sua cabeça estaria vazio e silencioso se não
fossem as cotovias.
A atmosfera estava pesada e quente, o ar estava carregado de trovoada. Tinha cavado toda a manhã e
descansava, estendido no chão. E subitamente a lembrança de Lenina foi uma presença real, nua e
tangível, dizendo: "Meu querido!" e "Aperta-me nos teus braços!", vestida apenas com meias e sapatos
e perfumada. Prostituta impudente! Mas - Oh! Oh! - Os seus braços em volta do pescoço de john, o
arfar dos seus seios, a sua boca! «A eternidade estava nos nossos lábios e nos nossos olhos, Lenina...»
Não, não, não, não! Ergueu-se de um salto e, tal como estava, seminu, saiu de casa a correr. Na orla da
mata erguia-se uma velha moita de zimbros. Atirou-se a eles e apertou, não o corpo macio dos seus
desejos, mas um braçado de espinhos verdes. Acerados, picaram-no com as suas mil pontas.
Tentou pensar na pobre Linda, ofegante e muda, com as suas mãos que faziam o gesto de agarrar, os
olhos plenos de indizível terror, na pobre Linda de quem tinha jurado lembrar-se sempre. Mas era
sempre a presença de Lenina que o obcecava, Lenina de quem prometera esquecer-se. Mesmo sob os
arranhões e as picadas dos espinhos do zimbro, a sua carne fremente tinha consciência dela, da sua
presença real, à qual não podia escapar-se: "Meu querido, meu querido ... Se tu também me querias,
porque não ... "
O chicote estava pendurado num prego ao lado da porta, ao alcance da mão para o caso de chegarem
os repórteres. Num paroxismo de frenesi, o Selvagem voltou correndo a casa, pegou nele e brandiu-o.
Os nós das cordas morderam-lhe a carne.
"Prostituta! Prostituta!", bradava ele a cada golpe, como se fosse Lenina. E com que frenesi, sem o
saber, desejava que fosse o branco, cálido, perfumado e infame corpo de Lenina, e não o seu, que
flagelava assim. "Prostituta!" E, então, numa voz desesperada: «Oh! Linda, perdoa-me! Perdoa-me,
Deus! Sou vil. Sou mau. Sou... Não, Não. Ah! Tu, prostituta! Ah! Tu, prostituta! »
Do seu esconderijo, construído cuidadosamente no bosque,
a trezentos metros dali, Darwin Bonaparte, o mais hábil fotógrafo de feras da Companhia Geral dos
Filmes Perceptíveis, observava toda a cena. A paciência e a esperteza tinham sido... recompensadas.
Passara três dias sentado no tronco oco de um carvalho artificial, três noites a rastejar sobre a barriga
através das urzes, a dissimular os microfones nas moitas de juncos, enterrar os fios na areia parda e
mole. Setenta e duas horas de profundo desconforto. Mas agora o instante solene tinha chegado, o mais
solene. Darwin Bonaparte teve tempo de reflectir, enquanto se deslocava entre os seus aparelhos. O
mais solene desde a tomada de vistas do famoso filme, perceptível cem por cento, uivante e
estereoscópico, do casamento dos gorilas. «Espantoso - disse para si próprio, enquanto o Selvagem
começava as suas estranhas actividades. - Espantoso!» Manteve os seus aparelhos de fotografias
telescópícas bem focados sobre o ob jectivo, colados ao seu movente alvo; instalou uma objectiva mais
potente para conseguir um primeiro plano do rosto enlouquecido e contorcido. «Admirável!» Fez,
durante meio minuto, as fotografias ao ralenti - efeito de um cómico esquisito, achou - e ouviu, durante
esse tempo, no receptor, os golpes, os gemidos, as palavras ferozes e dementadas que se registavam na
banda sonora na margem do seu filme. Experimentou o efeito de uma ligeira amplificação - sim, era
melhor assim, decididamente - e ficou encantado de ouvir, num silêncio momentâneo, o canto
estridente de uma cotovia; desejou que o Selvagem se voltasse de maneira que pudesse conseguir um
bom primeiro plano final do sangue que lhe corria nas costas, e quase imediatamente - que sorte
espantosa! - o rapaz, complacente, virou-se. Pôde assim obter um primeiro plano final perfeito.
«Sim, senhor! Isto é formidável!», murmurou quando tudo acabou. «Realmente formidável!» Limpou a
cara. Depois de lhe terem introduzido os efeitos do perceptível no estúdio, seria um filme maravilhoso.
«Quase tão bom», pensou Darwin Bonaparte, «como A Vida Amorosa do Cachalote. E isto, por Ford,
já não era dizer pouco!»
Doze dias mais tarde, O Selvagem do Surrey era projectado e podia ser visto, ouvido e sentido em
todos os salões de cinema perceptível de primeira categoria da Europa Ocidental.
O efeito produzido pelo filme de Darwin Bonaparte foi imediato e enorme. Na tarde que se seguiu à
sua primeira exibição, a rústica solidão de john foi subitamente violada pela chegada de um enorme
enxame de helicópteros.
Estava a cavar no seu jardim. Cavava também no espírito, trazendo laboriosamente à superfície a
substância dos seus pensamentos. «A morte.» E enterrava a pá uma vez, e depois outra, e outra ainda.
"E todos os nossos dias passados iluminaram aos tolos o caminho poeirento da morte." Ribombava
através destas palavras um trovão confirmador. Levantou outra pá de terra. Porque tinha morrido
Linda? Porque tinham permitido que se tornasse gradualmente menos que humana, e por fim...»
Estremeceu. "Um cadáver putrefacto, bom para beijar?" Apoiou o pé na pá e enterrou-a furiosamente
no chão duro. "Como as moscas para as crianças más, eis o que somos para os deuses;
matam-nos para se divertirem. De novo o trovão; palavras que se proclamavam verdadeiras, mais
verdadeiras, de qualquer maneira, que a própria verdade. E todavia, este mesmo Gloucester tinha-os
designado sempre como deuses sempre benignos. " Contudo, o melhor do repouso é o sono, e tu
próprio o provocas; no entanto, temes a morte, que não é mais que o sono." Nada mais que o sono.
Dormir. Sonhar, talvez..." A pá bateu contra uma pedra; baixou-se para a apanhar ... "Porque neste
sono da morte, quantos sonhos?" Um zumbido acima da sua cabeça tinha-se transformado num
rugido. E subitamente ficou na sombra, qualquer coisa se interpôs entre ele e o Sol. Levantou os olhos
e estremeceu. Abandonou o seu trabalho com a pá, deixando os seus pensamentos, e ergueu os olhos
num assombro deslumbrado, o espírito errando ainda nestoutro mundo mais verdadeiro que a verdade,
ainda concentrado nas imensidões da morte e dos deuses. Levantou a cabeça e viu, lá em cima e muito
perto, o enxame dos aparelhos que planavam. Chegavam como gafanhotos, ficavam suspensos,
imóveis, desciam à sua volta sobre as urzes. E do ventre destes gafanhotos gígantes saíam homens
vestindo fatos inteiriços de flanela de viscose branca, mulheres (porque estava calor) em pijamas de
acetato ou em calções curtos de veludo de algodão e blusas sem mangas, com o fecho éclair meio
aberto. Um casal por aparelho. Alguns minutos depois, havia ali dúzias, dispostos numa vasta
circunferência em redor do farol, arregalando os olhos, rindo, disparando os seus aparelhos
fotográficos, atirando, como a um macaco, amendoins, pacotes de goma de mascar de hormona sexual,
queijinhos panglandulares. E a todo o momento - porque, transpondo a crista de Hog's Back, a vaga de
aparelhos corria agora sem descanso - o seu número aumentava. Como num pesadelo, as dúzias
transformavam-se em vintenas, as vintenas em centenas.
O Selvagem tinha batido em retirada para um abrigo, e agora, na posição de um animal acossado,
encostara-se à parede do farol, dirigindo o olhar de um rosto para outro, num horror mudo, como um
demente.

Foi acordado deste estupor para passar a uma consciência mais imediata da realidade pelo choque
contra o seu rosto de um pacote de goma de mascar atirado com precisão. Um sobressalto de dor e de
surpresa e sentiu-se acordar, tomado por uma cólera bravia.
- Retirem-se! - bramiu.
O macaco falara. houve uma explosão de risos e de aplausos. «Este bom Selvagem! Agora sim!» E
entre a confusão das vozes ouviu gritos de: "Chicote, chicote, chicote!"
Obedecendo ao que esta palavra sugeria, tirou do prego atrás da porta o tufo de cordas com nós e
brandiu-o, colérico, diante dos seus algozes.
Houve um bramido de aplausos irónicos. Caminhou para eles com ar ameaçador. Uma mulher soltou
um grito de pavor. A linha flectiu no ponto mais imediatamente exposto, refez-se depois e manteve-se
firme. A consciência de estarem em força esmagadora dava aos curiosos uma coragem que o Selvagem
não esperava. Surpreendido, deteve-se e lançou um olhar em redor.
- Porque não querem deixar-me em paz? Havia uma nota quase plangente na sua cólera.
- Tome estas amêndoas salgadas com magnésio! - disse o homem que, se o Selvagem avançasse, seria
o primeiro a ser atacado. Estendeu um pacote. - São realmente muito boas, garanto-lhe - acrescentou -
com um sorriso conciliador um pouco nervoso -, e os sais de magnésio contribuirão para lhe manter a
mocidade.
O Selvagem recebeu a oferta com desprezo.
- Que me querem? - perguntou, olhando de um para outro daqueles rostos sarcásticos. - Que me
querem?
- O chicote! - responderam confusamente cem vozes. - Mostre-nos a chicotada! - Queremos ver a
chicotada!
Depois, em coro e num ritmo mais lento e mais pesado:
- Nós-que-re-mos-o-chi-co-te! - gritou um grupo na extremidade da linha. - Nós-que-re-mos-o-chi-cote!
Outros recomeçaram logo o grito, e a frase foi repetida, como por papagaios, muitas e muitas vezes,
com um volume sonoro que aumentava sem cessar, tanto que, a partir da sétima ou oitava repetição,
não se ouvia mais nada além disso: «Nós-que-re-mos-o-chi-co-te!»
Gritavam todos juntos. Embriagados pelo ruído, pela unanimidade, pelo sentido da comunhão rítmica,
teriam podido, assim parecia, continuar durante horas, quase indefinidamente. Mas, por volta da
vigésima quinta repetição, a manobra foi de súbito interrompída. Mais um helicóptero chegara de além
da crista de Hog'sBack, ficara suspenso acima da multidão, para depois pousar a alguns metros do local
onde estava o Selvagem, no espaço livre entre os curiosos e o farol. O rumor das hélices cobriu
momentaneamente os gritos. Depois, enquanto o aparelho pousava no chão e os motores paravam, eles
recomeçaram: « Nós- que-re-mos-o-chi-co-te, nós-que-re-mos-o-chi-co-te!», no mesmo tom forte,
insistente, monótono.
A porta do helicóptero abriu-se. Saiu primeiro um rapaz louro, de rosto afogueado, e depois, vestindo
um calção curto de veludo de algodão verde, uma camisa branca e com um boné de jóquei na cabeça,
uma rapariga.
À vista da rapariga, o Selvagem estremeceu, recuou, empalideceu.
A rapariga ficou de pé, sorrindo-lhe, com um sorriso incerto, suplicante, carregado de humildade, dirse-
ia. Passaram-se alguns segundos. Os seus lábios moveram-se, mas o som da sua voz era coberto
pelo estribilho repetido e vigoroso dos curiosos.
«Nós-que-re-mos-o-chi-co-te! Nós-que-re-mos-o-chi-co-te!»
A jovem apoiou as suas mãos no seu lado esquerdo, e no seu rosto, corado como um pêssego, bonito
como o de uma boneca, apareceu uma expressão estranhamente incongruente, de angústia carregada de
ardente desejo. Os seus olhos azuis pareceram crescer, tornar-se mais brilhantes. E inesperadamente
duas lágrimas rolaram-lhe ao longo da face. Sem que pudesse fazer-se ouvir, falou outra vez; depois
com um gesto vivo e apaixonado, estendeu os braços para o Selvagem e avançou para ele.
«Nós-que-re-mos-o-chi-co-te! Nós-que-re-mos ... »
E de repente tiveram o que pediam.
- Prostituta! - O Selvagem tinha-se precipitado sobre ela como um louco. - Fuinha!
Como um louco, pôs-se a vergastá-la com o seu chicote de cordas finas.
Aterrorizada, ela deu meia volta para fugir, tropeçou e caiu entre as urzes.
- Henry! Henry! - gritou ela. Mas o seu companheiro de rosto afogueado pusera-se ao abrigo do perigo
atrás do helicóptero.
Com um bramido de sobreexcitação satisfeita, a linha quebrou-se. Houve um atropelo convergente para
o centro de atracção magnética. A dor era um horror que os fascinava.
- Aquece, luxúria, aquece! - Com frenesi, o Selvagem vergastou-a outra vez.
Avidamente, os curiosos amontoaram-se em volta, empurrando-se e apertando-se como porcos junto da
gamela. - Oh! A carne! - O Selvagem rangeu os dentes. Desta vez foi sobre os seus próprios ombros
que o chicote se abateu. - morte! À morte!
Atraídos pela fascinação do horror da dor e interiormente arrastados pelo hábito da acção comum, este
desejo de unanimidade e de comunhão que o seu condicionamento tinha tão indelevelmente implantado
neles, puseram-se a mimar o frenesi dos gestos do Selvagem, batendo uns nos outros, enquanto o
Selvagem fustigava a sua própria carne rebelde ou aquela gorda encarnação da torpeza que se estorcia
nas urzes a seus pés.
- À morte, à morte, à morte!... - continuava a gritar o Selvagem.
Depois, subitamente, alguém começou a cantar Orgia-Folia. E num instante todos repetiram o
estribilho e, cantando, puseram-se a dançar. Orgia-folia, girando, girando, girando em círculo, batendo
uns nos outros no compasso de seis-oito. Orgia-folia...
Passava da meia-noite quando o último helicóptero levantou voo.
Entorpecido pelo soma e esgotado por um frenesi prolongado de sensualidade, o Selvagem estava
estendido, adormecido, sobre as urzes. O Sol ia já alto no céu quando acordou. Conservou-se deitado
um momento, os olhos piscando à luz, numa incompreensão de môcho. Depois, repentinamente,
lembrou-se...
de tudo.
«Oh! Meu Deus, meu Deus!» E tapou a cara com as mãos.
Nessa tarde o voo de helicópteros que chegavam zumbindo acima da crista de Hog's Back era uma
nuvem sombria de dez quilómetros de comprimento. A descrição da orgia da comunhão da noite
anterior aparecera em todos os jornais.
- Selvagem! - gritaram os primeiros que chegaram, enquanto desciam dos aparelhos. - Senhor
Selvagem!
Não obtiveram resposta. A porta do farol estava entreaberta. Empurraram-na e penetraram numa
penumbra de portas fechadas. Graças a uma arcada na outra extremidade da sala, distinguiam os
primeiros degraus da escada que conduzia aos andares superiores. Exactamente sob o fecho da abóbada
pendiam dois pés.
- Senhor Selvagem! Lentamente, muito lentamente, como duas agulhas de bússola que nada apressa, os
pés giraram para a direita: norte, nordeste, este, sudeste, sul, su-sudoeste. Depois pararam e, ao cabo de
alguns segundos, voltaram-se outra vez, sempre com o mesmo vagar, para a esquerda: su-sudoeste, sul,
sueste, este ...

FIM


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