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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Balas de Estalo - Machado de Assis [parte 7]

A segunda foi esta: "O padre, em geral, (disse o Sr. vigário Santos) procura as melhores freguesias, nas quais possa subsistir sem o grande ônus de cura d'almas."
Desta vez caí no chão. Ao levantar-me, reli o trecho, era aquilo mesmo, sem perífrase. A perífrase é um grande tempero para essas drogas amargas. Se eu chamar tratante a um homem, ele investe para mim, mas se eu Lhe disser que o seu procedimento não é adequado aos princípios corretos e sãos que Deus pôs na consciência humana para o seguro caminho de uma vida rigorosamente moral-quando o meu ouvinte houver desembrulhado o pacote, já eu voltei à esquina. Foi o que o Sr. vigário Santos não fez, e podia fazê-lo.
Que o padre, em geral, procure as melhores freguesias, em que possa subsistir, vá; nem todos hão de ser uns S. Paulos, nem os tempos comportam a mesma vida. Mas o que me fez cismar, foi este acréscimo: "sem o grande ônus de cura d'almas". Isto, se bem entendo, quer dizer ganhar muito sem nenhum trabalho. Mas, vigário meu é justamente o emprego que eu procuro, e não acho, há uns vinte e cinco anos, pelo menos. Não cheguei a pôr anúncios, porque acho feio; mas falo a todos os amigos e conhecidos, obtenho cartas de recomendação, palavras doces, e mais nada. Se tiver notícia de algum escreva-me pelo correio, caixa n. 1712.


[3 abril]
"HÁ ALGUÉM, disse o Sr. Senador João Alfredo, citando um velho dito conhecido, há alguém que tem mais espírito que Voltaire, é todo o mundo.''
Não sei se já alguma vez disse ao leitor que as idéias, para mim são como as nozes, e que até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e de outras,-senão quebrá-las.
Aos vinte anos, começando a minha jornada por esta vida pública que Deus me deu, recebi uma porção de idéias feitas para o caminho. Se o leitor tem algum filho prestes a sair, faça-lhe a mesma coisa. Encha uma pequena mala com idéias e frases feitas, se puder, abençoe o rapaz e deixe-o ir.
Não conheço nada mais cômodo. Chega-se a uma hospedaria abre-se a mala, tira-se uma daquelas coisas, e os olhos dos viajantes faíscam logo, porque todos eles as conhecem desde muito, e creem nelas, às vezes mais do que em si mesmos. É um modo breve e econômico de fazer amizade.
Foi o que me aconteceu. Trazia comigo na mala e nas algibeiras uma porção dessas idéias definitivas, e vivi assim, até o dia em que ou por irreverência do espírito, ou por não ter mais nada que fazer peguei de um quebra-nozes e comecei a ver o que havia dentro delas Em algumas, quando não achei nada, achei um bicho feio e visguento.
Não escapou a este processo a ideia de que todo o mundo tem mais espírito do que Voltaire, inventada por um homem ilustre, o que foi bastante para Lhe dar circulação. E, palavra, no caso desta senti profundamente o que me aconteceu.
Com efeito, a ideia de que todo o mundo tem mais espírito do que Voltaire, é consoladora, compensadora e remuneradora. Em primeiro lugar, consola a cada um de nós de não ser Voltaire. Em segundo lugar, permite-nos ser mais que Voltaire, um Voltaire coletivo, superior ao Voltaire pessoal. As vezes éramos vinte ou trinta amigos, não era ainda todo o mundo, mas podíamos fazer um oitavo de Voltaire, ou um décimo. Vamos ser um décimo de Voltaire? Juntávamo-nos; cada um punha na panela comum o espírito que Deus Lhe deu, e divertíamo-nos muito. Saíamos dali para a cama, e o sono era um regalo,
Perdi tudo isto. Peguei desta compensação tão cômoda e barata, e deitei-a fora. Funesta curiosidade! O que achei dentro, foi que todo O mundo não tem mais espírito que Voltaire, nem mais gênio que Napoleão. Cito estes dois grandes homens, porque o segundo lá esta citado na frase do eminente senador.
Sim. meus amigos. Choro lágrimas de sangue com a minha descoberta: mas que lhes hei de fazer? Consolemo-nos com o ser simplesmente Macário ou Pantaleão.
Multipliquemo-nos para vários efeitos, para fazer um banco, uma câmara legislativa. uma sociedade de dança, de música, de beneficência. de carnaval, e outras muitas em que o óbulo de cada um perfaz o milhão de todos; mas contentemo-nos com isto.
Nem me retruque o leitor com o fato de ter de um lado a opinião do autor da ideia c as gerações que a têm repetido e acreditado, enquanto do outro estou apenas eu. Faça de conta que sou aquele menino que. quando toda a gente admirava o manto invisível do rei, quebrou o encanto geral, exclamando:-El-rei vai nu! Não se dirá, que, ao menos nesse caso, toda a gente tinha mais espírito que Voltaire. Está-me parecendo que fiz agora um elogio a mim mesmo. Tanto melhor; é minha doutrina.

[9 abril]
FUI ONTEM visitar um amigo velho, Fulano Público, e achei-o acabando de almoçar; chupava os últimos ossinhos do processo do colar de brilhantes. A casa em que mora, é um resumo de todas as habitações. desde o palácio até o cortiço, para exprimir-creio eu-que ele é o complexo de todas as classes sociais. ' Minha genealogia, bradava-me ele há anos, remonta à origem dos tempos. No dia em que houve duas rãs para ouvirem o coaxar de uma terceira, nesse dia nasceu o meu primeiro pai."
Entrei. mandou-me sentar, e ofereceu-me almoço, que recusei. No fim, entre uma xícara de café e um charuto, perguntou-me o que queria.
1 de Out
-Meu caro Público. . . ia eu dizendo.
Chama-me ilustrado. Chama-me respeitável ou digno, se queres. Nada de adjetivos familiares. Vens pedir-me ainda para as vítimas da Andaluzia?
- Não.
Respirou; depois ouviu-me com muita atenção. Se eu me ria, ele ria também; se levantava os braços, fazia a mesma coisa: e a sua teoria de hospitalidade. Confessou-me que receia ficar com a sela na barriga. Acabou o colar de brilhantes, acabou a menina da fortaleza, acabou a menina espancada; acabou tudo. O próprio roubo do consulado, que prometia render, sabe ele que foi tudo mentira; não só estavam lá os trezentos contos, mas ainda se achou um acréscimo de quatro patacas; foi o próprio gatuno que, no ato da tentativa, sentiu um aperto, no coração. e lá deixou, além do que estava, tudo o que trazia consigo. A Câmara dos Deputados-também acabou.
- Não, senhor: está verificando os poderes. Não se reuniu na semana passada porque era penitência. Na segunda-feira, se não fez sessão, foi por causa da morte de dois membros.
-Quer-me parecer que era melhor, nos casos de morte de um representante, fazerem as nossas câmaras o que fazem todas as câmaras do mundo: notícia do fato, alocução do presidente adequada aos méritos do finado, e continuam os trabalhos, que são de interesse público.
-Velhaco! Tu o que queres, é que não te tirem o manjar dos debates.
-Não há tal; aceito quaisquer coisa. Ao almoço, tendo uma fretenida de cachações, navalhadas de escabeche, algum desfalque, e café por cima, estou pronto. Ao Jantar, contento-me com uma boa arara mas não rejeito segunda. O mais é o que me der o cozinheiro.
-Sim; mas a bela cozinha parlamentar à outra coisa. Confessa que estás aborrecido com a Câmara.
-Não digo que não.
-Tens o Senado.
-Fica um pouco longe. E depois, eu apesar de tudo, tenho umas esquisitices. Acho que este negócio de discutir no Senado o projeto do Governo, antes que os convocados especialmente digam alguma coisa, é contra a etiqueta.
-Não sei por quê.
-Cada Câmara tem o seu papel a dos deputados derruba os ministérios, o Senado organiza-os.
-Sendo assim, é bom que se saiba já a opinião de quem tem de organizar o novo gabinete, se o houver.
-Crês que haja?
-Francamente' eu, nisto como em outras coisas, opino com o outro que dizia: creio que dois e dois são quatro, e quatro e quatro são oito; mais je n'en suis pas sûr.

[20 abril]
COMO É POSSIVEL que hoje, amanhã ou depois tornem a falar em crise ministerial, venho sugerir aos meus amigos um pequeno obséquio. Refiro-me à inclusão de meu nome nas listas de ministérios, que é de costume publicar anonimamente, com endereço ao imperador.
Há de parecer esquisito que eu, até aqui pacato, solicite uma fineza destas que trescala a pura ambição. Explico-me com duas palavras e deixo de lado outras duas que também podiam ter muito valor, mas que não são a causa do meu pedido.
Na verdade, eu podia comparar a ambição às flores, que primeiro abotoam e depois desabrocham; podia dizer que, até aqui, andava abotoado. Por outro lado, se a ambição é como as flores, por que não será como as batatas, que são comida de toda a gente? E também eu não sou gente? não sou filho de Deus? Nos tempos de carestia, a ambição chega a poucos, César ou Sila? mas nos períodos de abundância estende-se a todos, a Balbino e a Maximino. Façam de conta que sou Balbino.
Mas não quero dar nenhuma dessas razões, que não são as verdadeiras causas do meu pedido. Vou ser franco, vou abrir a minha alma ao sol da nossa bela América.
A primeira coisa é toda subjetiva; é para ter o gosto de reter o meu nome impresso, entre outros seis, para ministro de Estado. Ministro de quê? De qualquer coisa: contanto que o meu nome figure, importa pouco a designação. Ainda que fosse de verdade, eu não faria questão de pastas, quanto mais não sendo. Quero só o gosto; é só para ler de manhã, sete ou oito vezes, e andar com a folha no bolso, tirá-la de quando em quando, e ler para mim. e saborear comigo o prazer de ver o meu nome designado para governar.
Agora a segunda coisa, que é menos recôndita. Tenho alguns parentes, vizinhos e amigos, uns na corte e outros no interior, e desejava que eles lessem o meu nome nas listas ministeriais, pela importância que isto me daria. Creia o leitor que só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce. Eu, por exemplo, que nunca alcancei dar certa expressão ao meu estilo, pode ser que a tivesse daí em diante; expressão no estilo e olhos azuis na casa. Tudo isso por uma lista anônima, assinada - Um brasileiro ou A Pátria.
Não me digam que posso fazer eu mesmo a coisa e mandá-la imprimir, como se fosse de outra pessoa. Pensam que não me lembrei disso? Lembrei-me; mas recuei diante de uma dificuldade grave.
Compreende-se que uma coisa destas só pode ser arranjada em segredo, para não perder o merecimento da lembrança. Realmente, sendo a lembrança do próprio lembrado, lá se vai todo o efeito, para ficar em segredo, era preciso antes de tudo disfarçar a letra, coisa que nunca pude alcançar; e, se uma só pessoa descobrisse a história e divulgasse a notícia, estava eu perdido. Perdido é um modo de falar. Ninguém se perde neste mundo, nem Bambino, nem Maximino.
Eia. venha de lá esse obséquio! Que diabo, custa pouco e rende muito? porque a gratidão de um coração honesto é moeda preciosíssima. Mas pode render ainda mais. Sim, suponhamos, não digo que aconteça assim mesmo; mas suponhamos que o imperador, ao ler o meu nome, diga consigo que bem podia experimentar os meus talentos políticos e administrativos e inclua o meu nome no novo gabinete. Pelo amor de Deus, não me atribuam a afirmação de um tal caso; digo só que pode acontecer. E pergunto, dado que assim seja, se não é melhor ter no ministério um amigo. antes do que um inimigo eu um indiferente?
Não cobiço tanto, contento-me com ser lembrado. Terei sido ministro relativamente. Há muitos anos, ouvi uma comédia, em que um furriel convidava a outro furriel para beber champagne.
- Champagne! exclamou o convidado. Pois tu já bebeste alguma vez champagne?
- Tenho bebido... relativamente. Ouço dizer ao capitão que O major costuma bebê-lo em casa do coronel.
Não seco outra coisa: um cálice de poder relativo.

[25 abril]
NINGUÉM DIRÁ, a primeira vista, que entre a nascente instituição dos guardas-noturnos e a assembléia provincial de Sergipe, haja o menor ponto de contato. Mas, fitando bem os olhos, vê-se logo que há um, e não pequeno.
Relativamente aos guardas, confesso que a princípio achei a coisa esquisita, por me parecer que se tratava de um Estado no Estado, mas as explicações vieram, e vimos todos, que se trata de uma simples medida de vigilância particular, limitada ao quarteirão, sem nenhuma ação pública. Pelo amor de Deus, não vão acreditar que é este o ponto de contato com a assembléia provincial de Sergipe, ou qualquer outra. Se o fosse, não teria dúvida em dizê-lo; mas é que não é.
A assembléia sergipana, segundo as notícias de hoje, abriu-se solenemente há mais de um mês, e não tornou a reunir-se por falta de número, - de quorum, é o termo técnico, - que aliás ainda não tinha no próprio dia da abertura. Vejam bem: ainda não havia quorum no dia da abertura da assembléia. Não sou eu que o digo, é a Gazeta de Sergipe.
Estou a crer que o leitor já começa a descobrir o ponto de contato entre os guardas e a assembléia sergipana; mas, ainda que o não descubra, peço-lhe que me acene com os olhos que sim, e então seremos dois, e daremos maior força à reclamação que proponho, reclamação pecuniária, ou, nos próprios termos da coisa, uma restituição.
Porquanto, os sergipanos pagam o subsídio à assembléia, para que esta lhes faça as leis, assim como nós pagamos imposto ao Estado, para que ele, entre outros serviços de que se incumbe, nos guarde as casas e as pessoas. Ora, se a assembléia sergipana, em vez de fazer as leis necessárias aos sergipanos, limita-se a beber os ares da bela Aracaju; e se nós, por segurança, pagamos a quem nos vigie a porta; parece (salvo erro) que há aqui lugar para clamar como o Chicaneau de Racine: Hé! rendez donc l'argent!
Escrevi Chicaneau? Mas a nossa posição e a dos sergipanos é muito mais sólida que a de Chicaneau. Este queria tão-somente peitar o porteiro do juiz, ao passo que nós não queremos peitar ninguém neste mundo. Os sergipanos dizem: "Não podendo nós mesmos fazer as leis, incumbimos estes cavalheiros de as fazerem; e para que não percam o seu tempo, os indenizamos do que deixam de ganhar..." E nós: - "como temos de ganhar a nossa vida, vendendo, fabricando, medicando ou advogando, fica este cavalheiro, em nome do Estado, incumbido de fazer uma porção de coisas, entre outras guardar a integridade da nossa fazenda, dos nossos narizes e do nosso sono pelo que receberá, com diversos títulos, um tanto por ano".
Se isto é peitar, não sei o que seja contratar. Em vez da exclamação sórdida de Chicaneau, prefiro uma fórmula singela e grave, que se ajusta a ambos os casos presentes: quibus exige quorum. Entretanto, como é meu vezo antigo não apontar um mal que lhe não dê logo o remédio, vou dizer aqui o que se pode fazer sem reclamação nem barulho. Nada de barulhos. Não é remédio para ambos os casos, note-se bem, mas para um só, ou mais exatamente para um daqueles e outro que me está pingando dos bicos da memória. Fica o da corte para melhor ocasião.



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