Bem; adiemos
a instrução primária para tempos melhores. Não nos falta tudo, temos as
farmácias, que é parte beneficente.
O pior é que
a associação ainda não começou os seus trabalhos, e já pesa sobre ela a mão da
fatalidade, trazendo uma lacuna, ainda que passageira, à diretoria. Adoeceu uma
pessoa da família do tesoureiro, e este teve de retirar-se para o interior,
donde oxalá que volte, antes mesmo que a instrução principie. Tudo, porém, se
recompôs ficando a tesouraria interinamente confiada a um dos farmacêuticos,
que já era membro do conselho. Creio haver dito que vão ser contratados outros
farmacêuticos, e consequentemente outras farmácias tanto alopáticas como
homeopáticas... Mas, com os diabos! On ne parle ici que de ma mort!
[14 março]
TRAGO AQUI! no
bolso um remédio contra os capoeiras. Nem tenho dúvida em dizer que é muito
superior ao célebre Xarope do Bosque que fez curas admiráveis e até milagrosas,
até princípios de 1856, decaindo em seguida, como todas as coisas deste mundo.
A minha droga pode dizer-se que tem em si o sinal da imortalidade.
Agora,
principalmente, que a guarda urbana foi dissolvida, entregando ontem os refles,
receiam alguns que haja uma explosão de capoeiragem (só para os moer), enquanto
que outros crêem que a substituição da guarda é bastante para fazer recuar os
maus e tranqüilizar os bons. Hão de perdoar-me: eu estou antes com o receio do
que com a esperança, não tanto porque acredite na explosão referida, como
porque desejo vender a minha droga. Pode ser que haja nesta confissão uma ou
duas gramas de cinismo; mas o cinismo, que . a sinceridade dos patifes, pode
contaminar uma consciência reta. pura e elevada, do mesmo modo que o bicho pode
roer os Mais sublimes livros do mundo.
Vamos, porém,
à droga, e comecemos por dizer que estou em desacordo com todos os meus
contemporâneos, relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas
nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer mal, de mostrar agilidade e
valor, opinião unanime e respeitada como um dogma. Ninguém vê que é
simplesmente absurda.
Com efeito,
não duvido que um ou outro, excepcionalmente, nutra essa perversão de
entranhas, mas a natureza humana não comporta a extensão de tais sentimentos.
Não é incrível que tamanho número de pessoas se divirtam em rasgar o ventre
alheio, só para fazer alguma coisa. Não se trata de vivissecção, em que um
certo abuso, por maior que seja, é sempre científico, e com o qual, só padece
cachorro, que não é gente, como se sabe. Mas como admitir tal coisa com homem e
fora cio gabinete?
Bastou-me
fazer esta reflexão, para descobrir a causa das facadas anônimas e adventícias,
e logo o medicamento apropriado. veja o leitor se não concorda comigo?
Capoeira é
homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora, o nosso
tempo (nosso e do capoeira) padece de uma coisa que poderemos chamar-erotismo
de publicidade. Uns poderão crer que ¿ achaque, outros que é uma recrudescência
de energia, porque o sentimento é natural. Seja o que for, o fato existe, e
basta andar na aldeia sem ver as casas, para reconhecer que nunca esta espécie
de afeição chegou ao grau em que a vemos.
Sou justo. Há
casos em que acho a coisa natural. Na verdade, se eu, completando hoje
cinqüenta anos, janto com a família e dois ou três amigos. por que não farei
participante do meu contentamento este respeitável público? Embarco,
desembarco, dou ou recebo um mimo, nasce-me um porco com duas cabeças. qualquer
caso desses pode muito bem figurar em letra redonda, que dá vida a coisas muito
menos interessantes. E. depois. o nome da gente, em letra redonda. tem outra
graça, que não em itera manuscrita; sai mais bonito, mais nítido mete-se pelos
olhos dentro sem contar que as pessoas que o hão de comemorar as folhas, e a
gente fica notória sem despender nada Não nos envergonhemos de viver na rua; é
muito mais fresco.
Aqui tocamos
o ponto essencial. O capoeira está nesta matéria como Crébillon em matéria de
teatro. Perguntou-se a este, por que compunha peças de fazer arrepiar os
cabelos; ele respondeu que, tendo Racine tomado o céu para si e Corneille a
terra, não lhe restava mais que o inferno em que se meteu. O mesmo acontece ao
capoeira. Não pode distribuir mimos espirituais, ou drogas infalíveis, todos os
porcos nascem-lhe com uma só cabeça, nenhum meio de ocupar os outros com a sua
preciosa pessoa. Recorre à navalha, espalha facadas certo de que os jornais
darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns.
Já o leitor
adivinhou o meu medicamento. Não se pode falar com gente esperta; mal se acaba
de dizer uma coisa, conclui logo a coisa restante. Sim, senhor, adivinhou, é
isso mesmo: não publicar mais nada, trancar a imprensa às valentias da
capoeiragem. Uma vez que se não dê mais notícia, eles recolhem-se às tendas,
aborrecidos de ver que a crítica não anima os operosos.
Logo depois a
autoridade, tendo à mão algumas associações, becos e suspensórios ainda sem
título, entra pelas tendas e oferece aos nossos Aquiles uma compensação de
publicidade. Vitória completa: eles aceitam o derivativo, que os traz ao céu de
Racine e à terra de Corneille, enquanto as navalhas, restituídas aos barbeiros,
passarão a escanhoar os queixos da gente pacífica. Ex fumo dare lucem.
[19 março]
TODA A Gente
sabe que eu, sempre que é preciso elogiar-me, não recorro aos vizinhos;
sirvo-me da prata de casa, que é prata velha e de lei Agora mesmo, podia dizer
prata ordinária ou casquinha, mas não digo. Digo prata de lei.
O sistema da
mutualidade, inventada por Trissotin e Vadius, tem o defeito da dependência em
que nos põe uns dos outros Diz Trissotin a Vadius: Aux ballades surtout, vous
êtes admirable. Se Vadius, em vez de responder, como na comédia: Et dans le
bouts-rimés je vous trouve adorable, disser simplesmente: A propósito, que é
que há do ministério?-lá se vai todo o plano de Trissotin, que gastou o seu
versinho bonito, sem receber nada.
Em vez disso,
inaugurei o meu sistema, fundado no princípio de que o homem deve dizer tudo o
que pensa. Se o meu vizinho pensa que é um pascácio, por que não há de
escrevê-lo? Se eu cuido que sou um cidadão conspícuo e ilustrado, por que hei
de calá-lo' A verdade, quer ofenda o meu vizinho, quer me lisonjeie, deve ser
pública.
Nua saiu ela
do poço, nua deve ir às casas particulares. Quando muito, põem-se-lhe umas
pulseiras de ouro; em vez de dizer ilustrado darei-profundamente ilustrado.
Agora vejam.
Isto que é justo, claro, transparente e racional, não o tinha podido até aqui
meter no bestunto dos meus contemporâneos. Vivia como uma espécie de Maomé sem
Ali, pregava no vácuo falava a surdos. Nas câmaras, continuava a dobrar-se o
colo humilde de Trissotin: "Perante esta câmara tão rica de talentos, eu,
o último dos seus membros . . . " Logo Vadius retificando: "Não
apoiado! V. Ex.a é um dos ornamentos do país!" Concordo que é bonito, mas
esta trocado.
Desanimado,
cheio de desgostos, que só pode sentir quem já foi profeta sem aderentes, ia
abandonar a empresa, quando a Providência fez reunir os acionistas do Banco
Auxiliar; foi a primeira manifestação desse poder misterioso e oportuno. A
segunda foi 0 parecer da comissão do exame de contas, papel excelente, em que
leio que o Sr. Del Vecchio, "no louvável intuito de concorrer para
desenvolver o banco", tinha proposto em tempo certa reforma. E o Sr Del
Vecchio é justamente um dos signatários do parecer; circunstancia que ele
acentua bem para mostrar a sua adesão a ideia nova.
Del Vecchio,
amado Del Vecchio, tu que acreditaste em mim, fica sendo o meu califa. Não há
mais que um Deus, e Maomé e o seu profeta. Agora posso fugir para Medina, a
verdade vencerá, a despeito da fraqueza de uns, da maldade de outros e do erro
de todos.
Corações que
sufocais em gérmen os mais belos adjetivos do mundo, deixai que eles brotem
francamente, que cresçam e apareçam, que floresçam, que frutifiquem! São os
frutos da sinceridade. Eia, corações medrosos, sacudi o medo, bradai que sois
grandes e divinos. As primeiras pessoas que ouvirem a confissão de um desses
corações retos, dirão sorrindo umas para as outras:
- Ele diz que
é nobre e divino. As segundas:
-Parece que
ele é nobre e divino.
As terceiras:
-Com certeza
ele é nobre e divino.
As quartas:
-Não há nada
mais nobre e divino.
As quintas:
-Ele é o que
é mais nobre e divino.
As sextas:
-Ele é o
único que é nobre e divino.
E tu
descansarás nas sétimas, que amaciarão para ti o regaço absoluto. Tudo porque
eu, um dos caracteres mais elevados do nosso tempo, espírito esclarecido e abalizado,
iniciei a prática do verdadeiro princípio. E o que é que se dá comigo mesmo?
Lulu Sênior, que e hoje (com razão) um dos meus mais estrênuos admiradores, já
não me chama outra coisa: -espírito abalizado para ca, espirito abalizado para
lá. Ainda ontem:
-Lélio, tu
que és um dos espíritos mais abalizados que conheço, podes dizer-me por que é
que no jantar político ao Silva Tavares não houve discursos políticos?
-Culpa do
cozinheiro, respondi eu. Como se não bastasse um poisson fin à la diplomate,
incluiu ele no menu, publicado no País, uma certa Dinde farcie à la Périgord...
Périgord, como sabes, é puro Talleyrand
- Talleyrand-Périgord, o grão-mestre dos diplomatas.
- Talleyrand-Périgord, o grão-mestre dos diplomatas.
- Não se pode
contestar que és dos espíritos mais abalizados deste país.
-Apoiado! um
dos meus ornamentos!
[24 março]
AQUI HÁ DIAS
O Clube de Engenharia deu parecer sobre uma máquina denominada Fluminense. Para
saber o que era, parece que bastava perguntá-lo ao Clube, ou ao inventor; mas,
como as imaginações vadias dias contraem maus costumes, preferi ocupar a minha
a ver se acertava por si mesma com a aplicação da coisa.
Não posso,
não devo, não quero contar ao leitor qual foi o processo da minha imaginação,
nem por que voltas e revoltas, depois de crer que era uma máquina para via
férrea, acabei supondo que se tratava de um aparelho destinado a despolpar
café! Parece pulha que, sem mais recurso que o da simples conjetura e um pouco
de indução, pudesse alcançar tão prodigioso resultado; mas é a pura verdade.
Pois,
senhores, posso limpar a mão à parede com o meu trabalho de imaginação: a
máquina era simplesmente de loteria. Se é boa ou má, não vi; limito-me a
publicar o caso, para escarmento dos espíritos temerários, ou rotineiros, não
sei como diga; mas qualquer palavra serve, contanto que fique escarmento, que é
o principal.
A primeira
coisa que revela a máquina de que eu trato, é a fé no futuro. Os sapateiros não
fariam mais sapatos; se acreditassem que todos iam nascer com pernas de pau.
Inventar uma máquina para a loteria, disposto a aperfeiçoá-la com o tempo, é
implicitamente declarar que não esta perdida a fé na permanência da
instituição. O contrário seria absurdo.
Ora, não como
veículo da postura, mas como órgão de uma instituição, é que a máquina foi ter
ao Clube de Engenharia para ser examinada. Como obra prática, admito que se
preferisse ver a atenção do Clube ocupada com algum aparelho de despolpar café,
mas em teoria é a mesma coisa. Há até autores que afirmam que, ainda pelo lado
prático, não há diferença nenhuma, porque ambas as máquinas despolpam, uma
café, outra algibeiras; mas isto não passa de um execrável calembour indigno da
ciência.
O que fica
aventado é que a instituição da loteria tem ainda algumas boas décadas de
existência. Deus a conserve! Ela é o auxílio da piedade econômica, organizada
em irmandade, que alumiam o Altíssimo com a porcentagem da basbacaria humana,
que é (perdoe a sua ausência) a melhor apólice que eu conheço, sem desfazer nas
do Estado. Ela distribui o pão, o lençol, levanta pontes, conserta estradas, cuida
do homem todo, corpo e alma, por fora e por dentro, na vida e na morte.
Quando porém
não fosse assim, a ciência nada tem que ver com a utilidade ou perversidade das
instituições. O lado social não Lhe pertence, mas só o mecânico. Demais, há um
princípio de solidariedade que liga todas as instituições de um país, a loteria
e a engenharia. Foi o primeiro aparelho nacional que o Clube examinou? Não quer
dizer nada; por algum se há de começar, e, máquina por máquina, antes a
Fluminense que a do Fieschi, a infernal, que levava a gente desta para melhor.
O que não mata engorda, dizem os velhos mas supondo mesmo que emagreça...
Opportet rnagricellas esse, com perdão de quem me ouve.
[29 março]
O SR. ALVES
DOS SANTOS exerce os cargos de vigário e de deputado provincial no Rio de
Janeiro. Isto permite-lhe cumprir à risca o preceito evangélico, dar a César o
que é de César, os orçamentos, e a Deus o que é de Deus, a oração. Já é dar
muito: mas o Sr. Alves dos Santos quis dar mais alguma coisa, e mandou-me duas
fortes sacudidelas por intermédio de um discurso.
Um colega
(temporal) de Sua Reverendíssima tinha proposto que se representasse ao governo
geral sobre a necessidade de mandar párocos para as duas freguesias que os não
têm há cinco meses. Levantou-se o Sr. Alves dos Santos e propôs que, em vez
disso, se oficiasse ao Sr. bispo para que informe quantas freguesias estão sem
pároco (declarou que eram muitas), e deu como razão do requerimento
substitutivo a plausibilidade de parecer que o primeiro era uma censura ao
diocesano, que nenhuma culpa tem na falta de párocos nas freguesias.
Até aqui vai
tudo bem. Se o bispo não tem culpa, é injusto censurá-lo. Mas por que é que o
bispo não tem culpa? Por dois motivos: o primeiro é a falta de sacerdotes, e
aqui vai a primeira sacudidela, que não foi a maior. Têm morrido durante o
episcopado atual mais de duzentos padres, e apenas se ordenaram vinte; os
seminários estão [desertos, e há anos que não se dá uma só ordenação nesta
diocese, pôr não haver mais vocações para o estudo sacerdotal.
Ao voltar do
abalo, perguntei a mim mesmo se há razão para censurar o bispo, quando ele
escolhe para as freguesias padres estrangeiros. Onde não há, el-rei o perde.
Entretanto, admirado da falta [absoluta de vocações eclesiásticas, e cogitando
nas conseqüências que E daqui vos podem vir, tratei de ver se achava no
discurso alguma [razão explicativa de um tal fenômeno, além do que, por mim
mesmo, t e fora dele, pareceu-me haver achado.
E dei com
outra no discurso. O Sr. Alves dos Santos disse, de passagem, que o Sr. bispo
reformou os estudos, e dificultou um pouco mais a ordenação, "por querer
um clero, não ignorante, mas com a ilustração necessária para combater as
perigosas idéias do século." Deus me defenda de debater nesta coluna
brincalhona, e com tão graves personagens, a questão de saber se o perigo é das
idéias ou dos sentimentos do século, limito-me a concluir da reforma dos
estudos, que em pouco tempo estará o Sr. bispo sem ter quem mande para as
freguesias, a não querer por lá os jornalistas que o censurarem. Aí está um
resultado com que se não contava há vinte anos, e, por menos que se espalhe a
todo 0 Brasil, teremos este singular contraste: um povo católico, em que
ninguém quer ser padre. . . Mas eu tenho pressa de chegar à segunda sacudidela.
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