BAKHTIN,
M. Estética da criação verbal. Trad.
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Problemática e definição
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que
seja, estão sempre relacionadas com a utilização da língua.
Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão
variados como as próprias esferas da atividade humana. [279]
O enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e
por seu estilo verbal, ou seja, pela
seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional...
(conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se
indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela
especificidade de uma esfera de comunicação... cada esfera de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos
gêneros do discurso. [279]
A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são
infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada
esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e
fica mais complexa. [279]
Gênero do discurso
primário (simples) e gênero do discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do discurso – o
romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstâncias de uma
comunicação cultural,mais complexa e relativamente mais evoluída,
principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. [280]
Gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros
primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias
de uma comunicação verbal espontânea. Os
gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
transformam-se dentro destes e adquirem
uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade
existente. [280]
Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos
vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja,
dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja
qual for sua orientação específica.
Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que
assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico leva
ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o
vínculo existente entre a língua e a vida.
A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a
realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na
língua. [282]
A estilística, indissoluvelmente ligado ao enunciado e a
formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso. O enunciado – é individual, e por isso pode
refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). [283]
As condições menos favoráveis para refletir a
individualidade na língua são as oferecidas pelos gêneros do discurso que
requerem uma forma padronizada, tais como a formulação do documento oficial, da
ordem militar, da nota de serviço, etc.
Nesses gêneros só podem refletir-se os aspectos superficiais, quase
biológicos, da individualidade (e principalmente na realização oral de
enunciados pertencentes a esse tipo padronizado). [283]
(apenas no enunciado a língua comum se encarna numa forma
individual). A definição de um estilo em
geral e de um estilo individual em particular requer um estudo aprofundado da
natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso. [283]
Uma da função (científica, técnica, ideológica, oficial,
cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da
comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado,
relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e
estilístico. [284]
Os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve
basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade. [284]
As mudanças históricas dos estilos da língua são
indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. [285]
Quando há estilo, há gênero.
[286]
Apenas uma compreensão profunda da natureza do enunciado e
da particularidade dos gêneros do discurso pode permitir a solução desse
complexo problema da metodologia (gramática e estilística). [287]
O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da
comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das
unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações. [287]
O enunciado, a
unidade da comunicação verbal
Abstraindo-se a necessidade de comunicação do homem, a
língua lhe é indispensável para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre
sozinho. [289]
A língua se deduz da necessidade do homem de expressar-se,
de exteriorizar-se. A essência da língua de uma forma ou de outra, resume-se à
criatividade espiritual do indivíduo.
[289]
Às vezes a coletividade linguística é encarada como uma
espécie de personalidade coletiva – o espírito de um povo, etc. [290]
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é
sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe
de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte
torna-se o locutor. [290]
O enunciado, unidade
da comunicação verbal
Abstraindo-se a necessidade de comunicação do homem, a
língua lhe é indispensável para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre
sozinho. [290]
A língua se deduz da necessidade do homem de expressar-se,
de exteriorizar-se. A essência da língua
de uma forma ou de outra, resume-se à criatividade espiritual do
indivíduo. [290]
Às vezes a coletividade linguística é encarada como uma
espécie de personalidade coletiva – o “espírito de um povo”, etc. [290]
A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é
sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe
de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte
torna-se o locutor. [290]
O ouvinte dotado de uma compreensão passiva, não corresponde
ao protagonista real da comunicação verbal.
[291]
O discurso se molda sempre à formas do enunciado que
pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. [293]
O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao
outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro. O enunciado não é uma unidade convencional,
mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos
falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo
como um mundo “dixi” percebido
pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. [294]
A oração representa um pensamento relativamente acabado,
diretamente relacionado com outros pensamentos do mesmo locutor, dentro do todo
do enunciado; uma vez terminada a oração, o locutor faz uma pausa, antes de
passar para o pensamento que dá
seguimento ao seu próprio pensamento, que continua, completa, fundamenta
o pensamento anterior. [296]
O primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do
enunciado é a possibilidade de responder – mais exatamente, de adotar uma
atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar uma ordem). [299]
Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais e
(escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas podemos ignorar
totalmente a sua existência teórica... falamos em vários gêneros sem suspeitar
de sua existência. Na conversa mais
desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes
padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mas plásticos e mais
criativos. A comunicação verbal na vida
cotidiana não deixa de dispor de gêneros criativos. Esses gêneros do discurso nos são dados quase
como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que
lhe estudemos a gramática. [301]
É por isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de
sua individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma
combinação absolutamente livre das formas da língua, do modo concebido, por
exemplo, por Saussure (e, na sua esteira, por muitos linguistas), que opõe o
enunciado (a fala), como um ato puramente individual, ao sistema da língua como
fenômeno puramente social e prescritivo para o indivíduo. A grande maioria dos linguistas compartilha a
mesma posição, se não na teoria, na prática: no enunciado, veem apenas a
combinação individual de formas puramente linguísticas (lexicais e gramaticais)
e, na prática, não veem nem estudam nenhuma outra forma normativa. [304]
Se nossa oração serve de enunciado completo, dota-se então
de um sentido global, nas condições concretas, delimitadas da comunicação
verbal. [307]
O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal. Representa a instância ativa do locutor numa
ou noutra esfera do objeto do sentido. Por isso, o enunciado se caracteriza
acima de tudo pelo conteúdo preciso do objeto do sentido. [308]
As palavras não são de ninguém e não comportam um juízo de
valor. Estão a serviço de qualquer
locutor e de qualquer juízo de valor, que podem mesmo ser totalmente
diferentes, até mesmo contrários. [309]
A emoção, o juízo de valor, a expressão são coisas alheias à
palavra dentro da língua, e só nascem graças ao processo de sua utilização
ativa no enunciado concreto. A
significação da palavra, por si só (quando não está relacionada com a
realidade), como já dissemos, é extra-emocional. [309]
O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma
forma do enunciado que, como tal, recebe do gênero uma expressividade
determinada, típica, própria do gênero dado. No gênero, a palavra comporta
certa expressão típica. [312]
As palavras da língua não são de ninguém, porém, ao mesmo tempo,
só as ouvimos em forma de enunciados individuais, só as lemos em obras
individuais, e elas possuem uma expressividade que deixou de ser apenas típica
e tornou-se também individualizada (segundo o gênero a que pertence), em função
do contexto individual, irreproduzível, o enunciado. [313]
A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos
amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre
possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas,
literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem,
que são citadas, imitadas, servem de inspiração. Toda época, em cada uma das esferas da vida e
da realidade, tem tradições acatadas que se expressam e se preservam sob o
invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções, etc. Há sempre certo número de ideias diretrizes
que emanam dos “luminares” da época, certo número de objetivos que se
perseguem, certo número de palavras de ordem, etc. Sem falar do modelo das antologias escolares
que servem de base para o estudo da língua materna e que, decerto, são sempre
expressivas. [313]
As palavras dos outros introduzem sua própria
expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos,
modificamos. [314]
O enunciado, seu estilo e sua composição são determinados
pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa
que o locutor estabelece com o enunciado.
[315]
Os gêneros e os estilos íntimos repousam numa máxima
proximidade interior entre o locutor e o destinatário da fala (no limite, numa
espécie de fusão entre eles). O discurso
íntimo é impregnado de uma confiança profunda no destinatário, na sua simpatia,
na sensibilidade e na boa vontade de sua compreensão responsiva. Nesse clima de profunda confiança, o locutor
desvela suas profundezas interiores. É
isso que determina a expressividade particular e a franqueza interior desses
estilos... [323]
Quando se subestima a relação do locutor com o outro e com
seus enunciados (existentes ou presumidos), não se pode compreender nem o
gênero nem o estilo de um discurso.
[324]
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