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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

OS GÊNEROS DO DISCURSO – MIKAIL BAKHTIN

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Problemática e definição

Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que seja, estão sempre relacionadas com a utilização da  língua.  Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana. [279]

O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo  verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional... (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação... cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis  de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. [279]


A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa.  [279]

Gênero do discurso  primário (simples) e gênero do discurso secundário (complexo).  Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, etc.  – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural,mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica.  [280]

Gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea.  Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e  adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente.  [280]

Uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for sua orientação específica.  Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida.  A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.  [282]

A estilística, indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso.  O enunciado – é individual, e por isso pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve). [283]

As condições menos favoráveis para refletir a individualidade na língua são as oferecidas pelos gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, tais como a formulação do documento oficial, da ordem militar, da nota de serviço, etc.  Nesses gêneros só podem refletir-se os aspectos superficiais, quase biológicos, da individualidade (e principalmente na realização oral de enunciados pertencentes a esse tipo padronizado). [283]

(apenas no enunciado a língua comum se encarna numa forma individual).  A definição de um estilo em geral e de um estilo individual em particular requer um estudo aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso. [283]

Uma da função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico.  [284]

Os estilos da língua pertencem por natureza ao gênero e deve basear-se no estudo prévio dos gêneros em sua diversidade.  [284]

As mudanças históricas dos estilos da língua são indissociáveis das mudanças que se efetuam nos gêneros do discurso. [285]

Quando há estilo, há gênero.  [286]

Apenas uma compreensão profunda da natureza do enunciado e da particularidade dos gêneros do discurso pode permitir a solução desse complexo problema da metodologia (gramática e estilística). [287]

O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações. [287]

O enunciado, a unidade da comunicação verbal

Abstraindo-se a necessidade de comunicação do homem, a língua lhe é indispensável para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre sozinho.  [289]

A língua se deduz da necessidade do homem de expressar-se, de exteriorizar-se. A essência da língua de uma forma ou de outra, resume-se à criatividade espiritual do indivíduo.  [289]

Às vezes a coletividade linguística é encarada como uma espécie de personalidade coletiva – o espírito de um povo, etc. [290]

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.  [290]

O enunciado, unidade da comunicação verbal

Abstraindo-se a necessidade de comunicação do homem, a língua lhe é indispensável para pensar, mesmo que tivesse de estar sempre sozinho.  [290]

A língua se deduz da necessidade do homem de expressar-se, de exteriorizar-se.  A essência da língua de uma forma ou de outra, resume-se à criatividade espiritual do indivíduo.  [290]

Às vezes a coletividade linguística é encarada como uma espécie de personalidade coletiva – o “espírito de um povo”, etc. [290]

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.  [290]

O ouvinte dotado de uma compreensão passiva, não corresponde ao protagonista real da comunicação verbal.  [291]

O discurso se molda sempre à formas do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma.  [293]

O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro.  O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternância dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferência da palavra ao outro, por algo como um mundo “dixi” percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou.  [294]

A oração representa um pensamento relativamente acabado, diretamente relacionado com outros pensamentos do mesmo locutor, dentro do todo do enunciado; uma vez terminada a oração, o locutor faz uma pausa, antes de passar para o pensamento que dá  seguimento ao seu próprio pensamento, que continua, completa, fundamenta o pensamento anterior. [296]

O primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do enunciado é a possibilidade de responder – mais exatamente, de adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar uma ordem).  [299]

Possuímos um rico repertório dos gêneros do discurso orais e (escritos). Na prática, usamo-los com segurança e destreza, mas podemos ignorar totalmente a sua existência teórica... falamos em vários gêneros sem suspeitar de sua existência.  Na conversa mais desenvolta, moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e estereotipados, às vezes mais maleáveis, mas plásticos e mais criativos.  A comunicação verbal na vida cotidiana não deixa de dispor de gêneros criativos.  Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a gramática.  [301]

É por isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de sua individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma combinação absolutamente livre das formas da língua, do modo concebido, por exemplo, por Saussure (e, na sua esteira, por muitos linguistas), que opõe o enunciado (a fala), como um ato puramente individual, ao sistema da língua como fenômeno puramente social e prescritivo para o indivíduo.  A grande maioria dos linguistas compartilha a mesma posição, se não na teoria, na prática: no enunciado, veem apenas a combinação individual de formas puramente linguísticas (lexicais e gramaticais) e, na prática, não veem nem estudam nenhuma outra forma normativa.  [304]

Se nossa oração serve de enunciado completo, dota-se então de um sentido global, nas condições concretas, delimitadas da comunicação verbal.  [307]

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal.  Representa a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do objeto do sentido. Por isso, o enunciado se caracteriza acima de tudo pelo conteúdo preciso do objeto do sentido.  [308]

As palavras não são de ninguém e não comportam um juízo de valor.  Estão a serviço de qualquer locutor e de qualquer juízo de valor, que podem mesmo ser totalmente diferentes, até mesmo contrários.  [309]

A emoção, o juízo de valor, a expressão são coisas alheias à palavra dentro da língua, e só nascem graças ao processo de sua utilização ativa no enunciado concreto.  A significação da palavra, por si só (quando não está relacionada com a realidade), como já dissemos, é extra-emocional.  [309]

O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe do gênero uma expressividade determinada, típica, própria do gênero dado. No gênero, a palavra comporta certa expressão típica.  [312]

As palavras da língua não são de ninguém, porém, ao mesmo tempo, só as ouvimos em forma de enunciados individuais, só as lemos em obras individuais, e elas possuem uma expressividade que deixou de ser apenas típica e tornou-se também individualizada (segundo o gênero a que pertence), em função do contexto individual, irreproduzível, o enunciado.  [313]

A época, o meio social, o micromundo – o da família, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que vê o homem crescer e viver, sempre possui seus enunciados que servem de norma, dão o tom; são obras científicas, literárias, ideológicas, nas quais as pessoas se apoiam e às quais se referem, que são citadas, imitadas, servem de inspiração.  Toda época, em cada uma das esferas da vida e da realidade, tem tradições acatadas que se expressam e se preservam sob o invólucro das palavras, das obras, dos enunciados, das locuções, etc.  Há sempre certo número de ideias diretrizes que emanam dos “luminares” da época, certo número de objetivos que se perseguem, certo número de palavras de ordem, etc.  Sem falar do modelo das antologias escolares que servem de base para o estudo da língua materna e que, decerto, são sempre expressivas.  [313]

As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.  [314]

O enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado.  [315]

Os gêneros e os estilos íntimos repousam numa máxima proximidade interior entre o locutor e o destinatário da fala (no limite, numa espécie de fusão entre eles).  O discurso íntimo é impregnado de uma confiança profunda no destinatário, na sua simpatia, na sensibilidade e na boa vontade de sua compreensão responsiva.  Nesse clima de profunda confiança, o locutor desvela suas profundezas interiores.  É isso que determina a expressividade particular e a franqueza interior desses estilos... [323]

Quando se subestima a relação do locutor com o outro e com seus enunciados (existentes ou presumidos), não se pode compreender nem o gênero nem o estilo de um discurso.  [324]





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