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sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [pate 35]


Além daquelas medidas que citei em um dos capítulos passados, logo
no início do seu ministério, tomou o visconde estas primordiais; usar pape!
de linho nos ofícios, estabelecer uma cozinha na sua secretaria e baixar
uma portaria, determinando que os seus funcionários engraxassem as botas
todos os dias. Na cozinha, porém, é que estava o principal das suas refor-
mas, pois era o seu fraco a mesa farta, atulhada.
Em seguida, convenceu o Mandachuva que o país devia ser conhecido
na Europa por meio de uma imensa comissão de propaganda e de anúncios
nos jornais, cartazes nas ruas, berreiros de camelots, letreiros luminosos, nas
esquinas e em outros lugares públicos.
A sua vontade foi feita; e a curiosa nação, em Paris foi muitas vezes
apregoada nos boulevards como o último específico de farmácia ou como
uma marca de automóveis. Contam-se até engraçadas anedotas.
Nos anúncios luminosos, então, a sua imaginação foi fértil. Houve
um que ficou célebre e assim rezava: "Bruzundanga, País rico -- Café,
cacau e borracha. Não há pretos".

Não ficou aí. Mostrou a necessidade de uma esquadra poderosa e
o Mandachuva encomendou uma custosíssima, para o serviço da qual o
país não tinha marinheiros dignos, arsenais, é que pôs de alcateia a Re-
pública das Planícies.
Tudo isto e mais a transformação da capital, da noite para o dia, fato
a que já aludi, endividaram sobremodo o país e, com a vinda de um
inepto Mandachuva, para cuja ascensão ele muito concorreu, a Bruzun-
danga veio a ficar na miséria.
Por essas e outras, foi Pancome proclamado o maior estadista da
nação, embora a situação interna, durante o seu longo ministério (quase
dez anos), piorasse sempre e cada vez mais, sem que ele apresentasse ou
lembrasse medidas para remediar um tal estado de descalabro.
Tirassem-no das coisas fantasmagóricas e berrantes que feriam a vai-
dade pueril do povo, fazendo este supor que a Bruzundanga era respeitada
na Europa; tirassem-no daí que ninguém era capaz de sacar-lhe da cachola
uma idéia de governo, um alvitre de verdadeiro estadista.
Basta dizer, para se avaliar a triste situação interna da extravagante
nação de que lhes dou notícias, que, nos arredores da capital, se morria à
míngua, à fome, as terras estavam abandonadas e invadidas pelas depreda-
doras saúvas, a população roceira não tinha direitos nem justiça e vivia
à mercê de cúpidos e ferozes senhores de latifúndios, cuja sabedoria agro-
nômica era igual à dos seus capatazes ou feitores.
Mas o povo, graças aos poetas e jornalistas simoníacos, não queria
capacitar-se de que Pancome era simplesmente decorativo e continuou a
admirá-lo como um semideus.
E ele fazia o que queria e se agora estava atrapalhado com a nomea-
ção de um amanuense, não era porque fosse do seu natural respeitar as leis.
Há um pequeno e passageiro temor da natureza daquele que sentem
os heróis quando vão entrar em combate.
Já nomeara pouco mais de meia dúzia por meio de concurso mas
não estava satisfeito com essas nomeações.
E verdade que os que nomeara, trajavam regularmente, engraxavam
as botas e não tinham nunca o colarinho sujo. Eram já grandes quali-
dades, porque de tal forma viera a encontrar o pessoal da secretaria, esbo-
degado, relaxado, vestindo roupas baratas, morando nos subúrbios, que foi
necessário toda a sua energia para que ele modificasse tão maus hábitos.
As verbas do ministério pagaram a quase todos, desde o servente até
um chefe de secção, ternos bem talhados, camisas finas, botinas de bom
cabedal, etc. Assim, conseguira dar um ar de Foreign Office ou de
Quai d'Orsay à modesta Secretaria de Estrangeiros do modesto país da
Bruzundanga.
A sua atrapalhação estava na tal história do concurso, pois até ali,
devido a tão tola formalidade, não conseguira ter nos cargos de amanuen-
ses moços bonitos e demais, para fazer concursos, sempre apareciam uns
rebarbativos candidatos de raça javanesa, com os quais ele embirrava
solenemente.
Da última vez, até, quase que um atrevido javanês puro consegue o
primeiro lugar, tal era o brilho de suas provas; Pancome, porém, arran-
jou as cousas tão lealmente diplomáticas que o rapaz perdeu a última
prova.
Não queria que a cousa se repetisse e estudava o modo de, evitando
o concurso, encontrar um candidado bonito, bem bonito, não sendo em nada
javanês, que pudesse oferecer aos olhares do ministro da Coréia ou do
Afganistão um belo exemplar da beleza masculina da Bruzundanga.
Todos os candidatos que se haviam apresentado não preenchiam essa
exigência do seu alto critério governamental.
Alguns eram mesmo feios, outros tinham toques de javanês, e nenhum
a beleza radiante que ele queria ver nos amanuenses.
Essas suas sábias medidas, para recrutamento do seu pessoal, levaram
para a sua secretaria moços bonitos e excelentes mediocridades, que ainda
procuravam demonstrar a sua principal qualidade intelectual, publicando
borracheiras idiotas ou compilações rendosas e pesadas ao Tesouro; entre-
tanto, em certo e determinado sentido, foram profícuas, como teve ocasião
de verificar o sucessor de Pancome.


Este, por ocasião de uma festa de sustância, encontrou nos amanuen-
ses e oficiais da escola do visconde, soberbos estofadores, magníficos
tapeceiros, exímios ornamentadores de salas; e, de tal forma um dado arru-
mou retratos nas paredes de seu salão, que o Ministro da Inglaterra
ofereceu-;he um bem remunerado lugar na domesticidade do castelo de
Windsor.
O obstáculo do concurso fazia o visconde pensar a toda a hora e
instante na vaga de amanuense, e ele já se resolvera a removê-lo por
completo, sem dar nenhuma satisfação a quem quer que fosse, quando, ao
despachar o expediente daquele dia, lhe veio ter às mãos um requerimento
com fotografias apensas.
Em geral, os ministros não lêem o que despacham; limitam-se a
rubricar o despacho do secretário ou oficial de gabinete. Pancome não
fazia exceção na regra, mas aquele papel, com fotografias, despertou-lhe
a atenção. Leu-o. Tratava-se do bacharel Sune Wolfe, que requeria ser
provido no lugar vago de amanuense; e, para que avaliar pudesse o senhor
Ministro da sua beleza física, juntava aqueles dos retratos, um de perfil
e outro de frente.
A secretaria tinha exigido selos de juntada em tais documentos e o
despacho do secretário era nesse sentido. O visconde, como sempre, pouco
disposto a obedecer às leis, não se incomodou; e, cheio de admiração pela
boniteza do requerente riscou o despacho e escreveu com a sua letra um
outro, determinando que o candidato comparecesse à sua presença.
No dia seguinte o rapaz foi ter com o ministro, que ficou embasba-
cado diante do lindo candidato.
De fato, era bonito, bonitinho mesmo, desbotado de cútis, e parecia
até fabricado em Saxe ou em Sèvres. Tinha uns lindos dentes, um
belo cabelo cuidado, não era alto, mas era bem apessoado. Merecia muito
bem um bom casamento rico; contudo, o visconde quis melhor examiná-lo
e perguntou:
-- O senhor sabe sorrir bem?
O candidato não se atrapalhou e acudiu com firmeza:
-- Sei, Excelência.
-- Vamos ver.
E o lindo moço repuxou os lábios, entortou o pescoço de um lado,
gracilmente, ajeitou os olhos e todo ele foi uma lindeza de impressionar
o pacato secretário que, ao lado, assistia ao exame, completamente embru-
lhado em um fraque venerável e cheio de embevecimento.
Contente com isto, o ministro tratou de ir mais longe na experiência
das excepcionais qualidades que o candidato revelava e convidou-o com
voz paternal:
-- Aperte a mão, ali, do Major Marmeleiro (o secretário). Faça o
favor.
O examinando não se fez de rogado. Juntou os pés, curvou doce-
mente o busto, levantou o braço e, sempre sorrindo, cumprimentou:
-- Senhor Major Marmeleiro...
Pancome não cabia em si de contentamento com a sideral aquisição
que estava ali. Que elegância! Que lindeza! Dessa feita é que ele ia fazer
uma nomeação justa e sábia. Arre! Não era sem tempo...
Era preciso, porém, ver se o donzel conhecia algumas outras cousas de
sociedade.
-- O senhor sabe dançar? perguntou.
-- Sei, Excelentíssimo.
-- Vamos ver.
-- Mas só e sem música, senhor visconde?!
Ordenou o ministro que o contínuo fosse chamar um certo empregado,
exímio em dança; e, enquanto ele ia buscar o funcionário, disse Pancome
a Marmeleiro:
-- Você sabe assoviar, major?
O secretário estava sempre disposto a responder afirmativamente ao
visconde e não se deteve um minuto:
-- Sei, senhor visconde.
-- Bem, disse Pancome, assovie aí uma valsa.
A "dama" já tinha chegado e Marmeleiro agora hesitava.
-- Não sabe? indagou o ministro severamente.
-- Só sei as "Laranjeiras".
-- De quem é isso? perguntou Pancome.
-- É do Hamélio.
-- Não é lá muito elegante, considerou o visconde, mas... serve,
serve!
Marmeleiro começou a assoviar com todo o recato que o lugar exigia
-- fiu, fiu, fiu... -- e os dois dançaram com todas as cerimônias e ade-
manes dignos de gabinete tão diplomático e do respeito que merecia a
presença daquele alto herói ministerial. Pancome verificou com um júbilo
paternal que o tal Sune continuava a ser uma maravilha! Que soberbo
amanuense ia ele ser! Bendita Bruzundanga que produzia daquilo!
Acabaram de valsar ao som do melodioso assovio de Marmeleiro, e
o visconde falou, então, com mansuetude, ao candidato:
-- Descanse um pouco, meu filho; e, depois, escreva-me uma carta
ao ministro de Interior sobre a necessidade da Bruzundanga se fazer repre-
sentar no Congresso de Encaixotamento de Pianos em Seul.
O lindo Wolfe esteve a pensar um pouco e retrucou titubeando:
-- Vossa Excelência compreende que... Eu! De uma hora para
outra... Compreende Vossa Excelência que não tenho prática... Com
o tempo... Mais tarde...
Era só redigir cartas o que ele não sabia; mas, sendo elegante, boni-
tinho, bom dançador, tinha todas as boas qualidades para um aperfeiçoado
amanuense do extraordinário Pancome.
Tendo em vista as necessidades da representação da Bruzundanga, o
visconde nomeou-o logo, sem detença alguma. Foi uma acertada nomeação,
e sábia, que veio provar o quanto são tolos os regulamentos e as leis que
exigem dos amanuense a vetusta ciência de saber redigir cartas.
Se não fosse um herói, uma notabilidade universal o Ministro, talvez
o galante Sune não tivesse sido aproveitado e os estrangeiros não teriam
uma favorável idéia da boniteza dos homens da Bruzundanga; mas era,
felizmente, e pôde, portanto, pôr de parte as tolas exigências legais, e o
país, com tal aquisição para o seu funcionalismo, adiantou um século.
É verdade que o Marechal Soult, duque da Dalmácia, e Guizot que
em celebridade e notoriedade universal talvez não invejassem as de Pan-
come, foram ministros de França, e, ao que consta, nunca desrespeitaram
ostensivamente as leis do seu tempo. Isto aconteceu em França; mas na
Bruzundanga as cousas se passam de outro modo e aquele país só tem
ganho com tal proceder, como acabamos de ver.

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