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sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 36]


Feito amanuense, aprendeu logo a copiar minutas e, em menos de seis
anos, Sune, o tal da carta, acabou eleito, por unanimidade, membro da
Academia de Letras da Bruzundanga.
Ficou sendo o que aqui se chama -- um "expoente".

XXII
Notas soltas

UM anúncio de livraria, na Bruzundanga:
"Acaba de aparecer o extraordinário romance -- Meu caro senhor...,
de Dona Adhel Karatá (pseudônimo de Hiralhema Sokothara Lomes,
filha do grande poeta e escritor Sokothara Lomes, cujas assombrosas glórias
literárias ela continua com muito brilho, e irmã do fino estilista e elegante
parlamentar Carol Sokothara Lomes). À venda, etc., etc."
***

Lá, na Bruzundanga, os Mandachuvas, quando são eleitos, e empossa-
dos, tratam logo de colocar em bons lugares os da sua clientela. Fazem
reformas, inventam repartições, para executarem esse seu alto fim político.
Há, porém, dous cargos estrictamente municipais e atinentes à admi-
nistração local da capital da Bruzundanga, que todos os matutos amigos
dos Mandachuvas disputam. Os Mandachuvas, em geral, são do interior
do país. Estes cargos são: o de Prefeito de polícia e o de Almotacé-mor
da cidade. Não só eles são rendosos, pelos vencimentos marcados em lei,
como dão direito a propinas e outros achegos.
O de chefe de polícia rende, na nossa moeda, cerca de vinte contos
por ano, só nas taxas cobradas às mulheres públicas; o de Almotacé-mor
da cidade, esse então não se fala...
Sendo, assim, lugares em que se pode enriquecer, não faltam doutores
da roça que os queiram e empreguem todas as armas para obtê-los.
Eles mal conhecem a cidade. Se a visitaram ou se mesmo residiram
nela, nunca lhes foi possível passar das ruas principais e daquela em que
estiveram morando; de forma que lhe ignoram as necessidades, os defeitos
a corrigir, a sua história, a sua economia e as queixas de sua população.
Houve um prefeito de policia que, vindo diretamente da província das
Jazidas para a sua prefeitura em Bosomsy, nada sabia da cidade, nem
mesmo as ruas principais. Metódico, econômico, por estar muito preocupado
em desagravar as suas propriedades, de hipotecas, nos primeiros meses de
sua gestão limitava-se a ir de casa para a Prefeitura no seu automóvel
oficial, e voltar dela para a sua residência, também no seu automóvel
burocrático.
Certo dia cismou em percorrer, a pé, um dos mais centrais boulevards
da cidade. Esta recente via pública corfava muitas outras estreitas da antiga
cidade e, em todas as esquinas, ele encontrou os urbanos (guarda civis)
nos seus postos. Todos estes modestos policiais da cidade o cumprimenta-
vam respeitosamente e o Prefeito ficou muito contente com a sua admi-
nistração. Chegou, porém, em um dado cruzamento de rua donde, de
uma estreitinha, tanto da direita como da esquerda, saíam e entravam
magotes de povo. Que reboliço será esse? pensou ele. Será uma greve?
Um motim? Que será?
O prefeito, assustado, medita logo providências, quando se lembra de
pedir ao urbano explicações diretas, sem ir pelos canais competentes:
-- Que quer dizer tanto povo aí, nessa rua? perguntou ele esquecido
da celestial altura em que estava.
-- Não há nada, senhor prefeito. É sempre assim, acudiu o urbano,
levando a mão ao boné.
-- Como?
-- Vossa Excelência não sabe que esta é a rua mais transitada da
cidade, e que é a antiga Rua do Desembargador?
O prefeito não conhecia, senão de ouvido, a rua mais célebre do país,
dentre todas as ruas célebres das suas principais cidades.
Com um Almotacé-mor da cidade, deu-se um caso quase semelhante.
Este arconte tinha nascido na província dos Bois, e, apesar de viver desde
há muitos anos na capital da Bruzundanga, pouco a conhecia. Quando foi
provido no seu cargo, quis fazer em horas o que não havia feito em anos.
Tomou o automóvel oficial (certamente) e mandou tocá-lo para os arre-
dores de Bosomsy. Admirou-se muito de que não houvesse por eles, mata-
douros de gado bovino, pois nos da sua pequena, pequeníssima cidade natal,
os havia em quantidade. Não viu senão essa falta e deixou de ver as terras
abandonadas, incultas, as estradas esburacadas, terras em que um bom Al-
motacé ainda podia, com proveito, animar o plantio de árvores frutíferas,
hortaliças, legumes e a criação de pequeno gado, na zona rural.
Com essa decepção na alma, pois não podia admitir que uma cidade
não tivesse nos arredores matadouros, para o fabrico da carne salgada,
resolveu certo dia visitar as dependências da sua repartição. Chegou ao
arquivo. O arquivista, que era zeloso e conhecia bem a história da cidade,
prontificou-se a mostrar-lhe os documentos curiosos da vida passada da
linda capital:
-- Vossa Excelência vai ver as atas das sessões do Senado da Câmara,
que...
Eram documentos escritos dos mais antigos, não só da história da
cidade, como da do país inteiro; mas o Almotacé, com grande surpresa de
toda a comitiva, exclamou amuado:
-- Como? O quê?
-- ...as atas do Senado da Câmara, Excelência.
-- Qual! Senado é uma cousa e Câmara é outra. Como Senado da
Câmara? Que embrulho? Cada um se governa por si... A Constituição...
-- Mas...
-- Não tem mas, não tem nada. Mande o que é do Senado, para o
Senado; e o que é da Câmara, para a Câmara.
Um grande filósofo afirmou que, para bem se conhecer uma institui-
ção, uma ciência, um país, era necessário saber-lhes a história; e ninguém,
penso, pode admitir que se possa administrar bem qualquer coisa sem a
conhecer perfeitamente.


Os administradores de Bosomsy nada conhecem, como já disse, da
cidade, cujos destinos vão reger e cuja vida vão superintender. Exemplifico.
Um Prefeito de polícia, como lhes contei, não lhe conhecia a rua
principal; e um Almotacé-mor, encarregado da administração geral do mu-
icípio, não lhe conhecia a natureza de suas produções nem a sua história,
como ficou contado. Ele não sabia que a antiga Câmara dos Edis chama-
va-se -- Senado da Câmara.
Como estes muitos outros se repetem na administração da capital.
* * *
Via eu todos os dias passar na rua principal de Bosomsy um sujeito
cheio de imponência e ademanes fidalgos; perguntei a um amigo:
-- Quem é aquele? É algum duque? É marquês?
-- Qual! E um tabelião.
* * *
"O Senhor F. de Tal, redator da Warkad-Gazette, contratou casa-
mento com a Senhorita Hilvia Kamond, filha da viúva Almirante Bartel
Kamond", informava um jornal.
É caso de perguntar: que diabo de cousa é esta -- "viúva almirante"?
Por que a noiva não é logo e simplesmente filha do falecido almirante?
* * *
-- Quem é aquele sujeito que ali vai?
-- Não lhe sei o nome. Sei, porém, que vive muito bem e é o ma-
rido da Klarindhah.
* * *
-- O doutor Sicrano já escreveu alguma coisa?
-- Por que perguntas?
-- Não dizem que ele vai ser eleito para a Academia de Letras?
-- Não é preciso escrever coisa alguma, meu caro; entretanto, quando
esteve na Europa, enviou lindas cartas aos amigos e...
-- Quem as leu?
-- Os amigos, certamente; e, demais, é um médico de grande clínica.
Não é bastante?
Sobre o teatro

TENDO lido na Warkad-Gazetre uma notícia elogiosa da estréia da
revista "Mel de Pau", no Teatro Mundhéu, lá fui uma noite. Quando
entrei já o espetáculo tinha começado e uma dama, em fraldas de camisa,
fumando um cigarro, cantava ao som de uma música roufenha:
Eu hei de saber
Quem foi aquela
A dizer ali em frente
Que eu chupava
Charuto de canela.
Por aí os pratos estridulavam, o bombo roncava e a orquestra iniciava
alguns compassos de tango, ao som dos quais a dama bamboleava as ancas
As palmas choviam e, quase sempre, a cantora repetia a maravilha, que
tanto fazia rir a platéia.
Na noite seguinte, passando pelo "Harapuka-Palace", li no cartaz:
"Todo o serviço", revista hilariante, em três atos, etc.
Entrei. No palco uma dama, em fraldas de camisa, fumando um
cigarro, cantava acompanhada de uma música rouca:
Eu hei de saber
Quem foi aquela
A dizer ali em frente
Que eu chupava
Charuto de canela.
Acabando os pratos eram feridos, o bombo trovejava, a música inteira
iniciava uns compassos de "maxixe" e a dama, com as mãos nos quadris,
bamboleava as ancas. Risos, palmas e o portento era repetido.
Interessei-me por tão variado teatro e foi com agrado que em certa
noite, muito próxima destas duas últimas, aceitei um convite para ir ao
"Mussuah Theatre". Lá dei com uma outra dama, em fraldas de camisa,
fumando e cantando, sob a direção da batuta do maestro:
Eu hei de saber
Quem foi aquela
A dizer ali em frente
Que eu chupava
Charuto de canela.
Risos, palmas, pratos, chocalhos, bombos; a música iniciava alguns
compassos, e a dama remexia bem os quadris. Tratava-se da revista "Está
pra tudo".
Assim, fui a três ou quatro teatros e sempre dei com uma dama a
cantar esta cousa tão linda:
Eu hei de saber
etc., etc., etc.

Sobre os literatos

-- QUANTAS cartas tens aí! disse-lhe eu ao vê-lo abrir a carteira
para tirar uma nota com que pagasse a despesa.
- São "pistolões".
-- Pra tanta gente?
-- Sim; para os críticos dos jornais e das revistas. Não sabes que vou
publicar um livro?

Sobre os jornais

NOVIDADES telegráficas sensacionais:
"Cocos, 2 -- Foi aposentado o Primeiro Escriturário da Intendência
F. (A, A.), Correio Vespertino, de 3-6-07."
"Caranguejos, 22 -- Os padres maristas comemoraram ontem com
grandes festas o centenário da fundação da respectiva ordem (J. C., ed. t.,
de 22-6-17)."
"Guarabariha, 22 -- Foi desligado do quadro da administração dos
Correios daqui o praticante de segunda classe Virgílio César, por ter sido
removido para os Correios de Santa Catarina.
-- Chegaram a esta capital os doutores Ascendino Cunha e Guilherme
Silveira (J. C., ed. t., de 22-6-17)."

Erudição

"COSTUMAVA Tito Lívio dizer que tinha ganho o seu dia sempre
que lhe era dado realizar um benefício." (Correio Matutino, de 2-11-13).
Tito Lívio foi imperador?
"E é o motivo dessa antecipação que está sendo explicado, agora, nos
jornais da Fortaleza, pelos entendidos na matéria, um dos quais acusa como
razão desse desequilíbrio a abertura do canal de Panamá, que pôs em
contato duas grandes massas d'água de nível diferente." (O Himparcial, de
12-11-15).
A que fica reduzida a tal história do equilíbrio dos líquidos em vasos
comunicantes? Pobre Ganot, quer o grande quer o pequeno!
Sobre a administração
"A extração deste combustível na América do Sul se eleva, contudo,
a mais de 1.500.000 toneladas, produzindo o México 500.000 toneladas e
o Chile o restante" (Relatório oficial sobre -- A Indústria Siderúrgica no
Mundo, pelo general F. M. de S. A., pág. 198)
O México na América do Sul? Que terremoto!

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