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sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 34]

Em lei, o caminho estava estabelecido: abria-se concurso e nomeava-se
um dos habilitados; mas Pancome nada tinha que ver com as leis, embora
fosse ministro e, como tal, encarregado de aplicá-las bem fielmente e
respeitá-las cegamente.
A sua vaidade e certas quizílias faziam-no desobedecê-las a todo o
instante. Ninguém lhe tomava contas por isso e ele fazia do seu minis-
tério coisa própria e sua.
Nomeava, demitia, gastava as verbas como entendia, espalhando di-
nheiro por todos os toma-larguras que lhe caíam em graça, ou lhe escreviam
panegíricos hiperbólicos.
Uma das suas quizílias era com os feios e, sobretudo, com os bruzun-
danguenses de origem javanesa -- cousa que equivale aqui aos nossos
mulatos.
Constituíam o seu pesadelo, o seu desgosto e não julgava os indivíduos
dessas duas espécies apresentáveis aos estrangeiros, constituindo eles a ver-
gonha da Bruzundanga, no seu secreto entender.

Esta preocupação, nele, chegava às raias da obsessão, pois o seu
espírito de herói da Bruzundanga não se orientava, no que toca à sua
atividade governamental, pelos aspectos sociais e tradicionais do país, não
se preocupava em descobrir-lhe o seu destino na civilização por este ou
aquele tênue indício a fim de com mais proveito, auxiliar a marcha de sua
pátria pelos anos em fora. Ao contrário: secretamente revoltava-se contra
o determinismo de sua história, condicionado pela sua situação geográfica,
pelo seu povoamento, pelos seus climas, pelos seus rios, pelos seus aci-
dentes físicos, pela constituição do seu solo, etc.; e desejava muito infantil-
mente fabricar, no palácio do seu ministério, uma Bruzundanga peralvilha
e casquilha, gênero boulevard, sem os javaneses, que incomodavam tanto
os estrangeiros e provocavam os remoques dos caricaturistas da República
das Planícies, limítrofe, e tida como rival da Bruzundanga.
Enfim, ele não era ministro, para felicitar os seus concidadãos, para
corrigir-lhe os defeitos em medidas adequadas para acentuar as suas quali-
dades, para aperfeiçoá-las, para encaminhar melhor a evolução do país,
acelerando-a como pudesse; o visconde era ministro para evitar aos estra-
nhos, aos touristes, contratempos e maus encontros com javaneses. Ele
chegou até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabo destes
últimos...
Mas como ia dizendo, Pancome, no seu ministério, fazia tudo o que
entendia; mas, mesmo assim, não se atrevia a romper abertamente com
aquela história de concursos, com os quais desde muito andava escarmen-
tado, devido a razão que lhes hei de contar mais tarde.
Era, afinal, uma pequena hesitação no espírito de um homem que
tinha tido até ali tão audazes atrevimentos para desrespeitar todas as leis,
todos os regulamentos e todas as praxes administrativas.
É bastante dizer que, não contente em residir no próprio edifício do
Ministério sem autorização legal, Pancome não trepidou em estabelecer
na chácara do mesmo um redondel de touradas, um campo de football,
um café-concerto, para obsequiar respectivamente os diplomatas espanhóis,
ingleses e suecos.
Como já tive ocasião de dizer, tal ministro só trabalhava para impres-
sionar os estrangeiros, e, apesar de não ter feito obra alguma de alcance
social para a Bruzundanga, o povo o adorava porque o julgava admirado
pelos países estranhos e seus sábios.
Se alguém se lembrava de censurar esse seu desavergonhado modo
e governar, logo os jornalistas habituados a canonizações simoníacas e
parlamentares que gostavam do pot-de-vin, gritavam: que tipo mesqui-
nho! Criticar esse patrimônio nacional que é o Visconde de Pancome, por
causa de ninharias! Ingrato!
Diante dessa desculpa de patrimônio nacional, toda a gente se calava
e o país ia engolindo as afrontas que o seu ministro fazia às suas leis e aos
seus regulamentos.
De onde -- hão de perguntar -- lhe tinha vindo tal prestígio?
fácil de explicar.
Ele veio, no fim, da tal história das condecorações que já lhes contei
-- fato que encheu de júbilo todo o povo daquela pátria, porque a Repú-
blica das Planícies que Pancome trabalhava para sempre andar às turras
com a Bruzundanga, não as tinha obtido, apesar de disputá-las. Antes
disso, porém, ele já tinha um ascendente bem forte, devido a uma grande
proeza. Pancome tinha subido ao cume do Tiaya, o modesto Himalaia da
corografia da República da Bruzundanga, dois mil e novecentos a três mil
metros de altitude. Vou-lhes contar como a cousa foi.
Um dia, estando Pancome nas proximidades dessa montanha, anun-
ciou a todos os quadrantes que ia escalá-la.
Os bruzundanguenses do lugar sorriram diante do projeto daquele
homem gordo e pesado. Aquilo (o monte) diziam, era muito alto e ele
não teria fôlego para chegar ao cume; havia fatalmente de rolar pelas
encostas abaixo, antes de atingir o meio da jornada.
O visconde, porém, não se temorizou, subiu e dizem que foi ao pico
da montanha.
A vista de semelhante proeza, os naturais do país, logo que a nova
se espalhou, exultaram, pois andavam de há muito necessitados de um
herói. Não contentes da notícia da façanha ter corrido toda a nação,
telegrafaram para as cinco partes do mundo exaltando a ousadia ainda
mais.

E verdade que, antes de Pancome, muitos outros, entre os quais o
Kaetano Phulgêncio, um roceiro do local, tinham subido o Tiaya várias
vezes, em aventuras de caça, e até esse Phulgêncio serviu-lhe de guia; mas
isto não foi lembrado e Pancome passou por ser o primeiro a fazê-lo.
De tal proeza e das consequências que dela advieram, nasceu a fama
do visconde, a sua consideração de herói nacional, tanto mais que os clubes
alpinos da Europa tomaram nota do ilustre feito e, graças à diplomacia da
Bruzundanga, o retrato e a biografia do portentoso varão foram estam-
pados nas revistas especiais de sport.
Durante um mês, os jornais da capital do interessante país que ora
nos ocupa, não deixaram um só dia de publicar telegramas do seguinte teor
ou parecidos: "La Vie au Grand Air, importante revista francesa, publica
o retrato do Visconde de Pancome, o destemido herói do Tiaya, e os seus
traços biográficos".
Um outro quotidiano dizia: "Army, Navy and Sport, célebre magazine
inglês, estampando o retrato do Visconde de Pancome, essa legítima glória
do nosso país, afirma que a sua ascensão ao cume do Tiaya é sem prece-
dentes na história do alpinismo"; e assim transcreviam ou noticiavam
referências de outras revistas alemãs, italianas, sírias, gregas, tcheques, etc.
Recebendo esse impulso do estrangeiro, os jornais da Bruzundanga,
os mais lidos e os mais obscuros, e as revistas de toda a natureza redo-
braram a sua habitual gritaria em casos tais. Enchiam-se de artigos lou-
vando o herói que fizera a Bruzundanga conhecida na Europa, afirmação
essa em que logo o povo do país acreditou piamente; mostraram também
com períodos bem caídos, como o fato tinha um alcance excepcional e
proclamaram o homem o primeiro de todos os bruzudanguenses.
A seguir-se aos jornais, vieram os poetas louvaminheiros com as suas
odes, poemas, sonetos, cantatas, erguendo às nuvens o visconde e a sua
extraordinária proeza. Eles sacavam com atilamento sobre o futuro, por-
quanto, quando Pancome veio a ser ministro, os encheu de propinas e
fartos jantares.
É ocasião de notar aqui uma singular feição dos poetas da Bruzun-
danga.
Todos os vates de lá, em geral, são incapazes de comparação, de critica
e impróprios para a menor reflexão mais detida, e, com a sua mentalidade
de parvenus aperuados, estão sempre dispostos a bajular os titulares ou os
apatacados burgueses, para terem o prazer de ver mais perto as suas mu-
lheres e filhas, pois se persuadiram que são elas feitas de outra substância
diferente daquela que forma as cozinheiras e os pequenos burgueses.
Tão tolos são eles que não se lembram que tais marqueses e mais
barões da sua terra são de origem tão humilde e tão vexatória em face
do critério nobiliárquico que os próprios portadores de tais títulos fidalgos
ocultam o mais que podem a sua ascendência. Mas é preciso voltar ao
nosso Visconde de Pancome.
A custa de todas essas vociferações, o povo não permitia que ninguém
lhe tocasse na reputação e ficou convencido de que o homem era mesmo
um demiurgo e consubstanciou a sua admiração ingênua nesta fórmula
simples: "é um bruzundanguense conhecido na Europa".
Porque a mania daquele povo é querer à força que o seu país e os
seus homens sejam conhecidos no estrangeiro, embora ele não possua uma
atividade, de qualquer natureza, nem mesmo um homem notável que possa
atrair a curiosidade dos estranhos sobre a região e as suas coisas.
De modo que, qualquer referência a ele ou a um natural dele, se ela
é favorável e elogiosa, logo alvorota o povo da Bruzundanga, que fica
crente de que em todas as aldeias de países afastados não se fala em outra
cousa senão na sua nação.
Quando, porém, se diz lá fora que, na sua população, há milhões
de javaneses e mestiços deles (o que é verdade), imediatamente todos se
aborrecem, zangam-se, lançando tristemente o labéu de vergonha sobre os
seus compatriotas de tal extração.
É uma tolice deles (aí entram também muitos javaneses), pois tanto
os de origem javanesa como os de outras raízes raciais têm dado inteli-
gências e atividades que se equivalem. Não há este de tal procedência que
sobrepuje aquele de outra procedência, nem mesmo na quantidade; os de
uma origem não sobrelevam os de outra, isto dura há três séculos e poucos;
e, pode-se dizer, que é uma prova perfeitamente experimental, obtida no
laboratório da história. Tão bom como tão bom...
Com tal mania, não é de admirar que, de uma hora para outra,
Pancome ficasse sendo o ídolo da Bruzundanga; e o governo, para pre-
miá-lo e satisfazer a opinião pública, apressou-se em nomeá-lo embaixador
junto ao governo de uma potência européia, e foi (lembro-me agora)
quando embaixador, que obteve as condecorações a que aludi em capítulo
anterior.
E de tal forma a população do país se convenceu da imensa inteli-
gência, das geniais vistas do visconde, de que ele era admirado no mundo
inteiro, e de que, também todos os sábios do Universo respeitavam-no
religiosamente, que ao chegar ele da estranja para assumir a pasta do
Exterior, toda ela correu em massa para a rua, quase lhe desatrelam, os
mais entusiastas, os cavalos do carro, aclamando-o freneticamente pelas
ruas em que passou, como se recebesse a cidade Júlio César vitorioso ou
Descartes, caso a natureza da glória deste se compadecesse com admirações
irrefletidas.

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