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domingo, 27 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 39]


Há, porém, o método empírico que é mais humano e compatível com
o grau de adiantamento a que chegou a nossa humanidade atualmente. Não
há morte, nem sangue, nem bravura, nem salvas.
Este método é muito usado na guarda nacional e poucas outras enti-
dades (vocabulário do football) militares. Vamos ver em que consiste.
Um tal método tem por princípio básico só admitir à promoção, oficiais
que nunca tenham visto soldados, fortalezas, quartéis, etc.
Por esse processo, estão fatalmente eliminados todos os oficiais que
hajam servido em guarnições longínquas.
O mais relevante conhecimento exigido, para as promoções de acordo
com esse processo empírico, é o de uma perfeita sabedoria nas marcas de
papel de ofícios, de grampos, colchetes e alfinetes, para papéis. Contam-se
como ultrameritórios os serviços pacíficos em linhas telegráficas, em leitura
de pluviômetros, em conversas com bugres filósofos e em construção de
estradas de ferro que não acabam mais.

Em caso de merecimento igual, entre os candidatas, promovido será
o que tiver melhor "pistolão".
Para isso, o oficial precavido não se deve afastar da capital do país;
e, nela, sempre cultivar a amizade de poderosos políticos e pessoas de seu
amor e amizade; e é, por isso, que os oficiais que servem em guarnições
longínquas, fronteiras, etc., não podem entrar na lista das promoções,
determinação que se subentende nesse sistema empírico que a sabedoria
dos tempos consagrou com alguns retoques.
Não falei nas promoções nos bombeiros. Emendo a mão. Nos bom-
beiros -- corporação reduzida -- as promoções devem ser feitas em fa-
mília. É o melhor.
O que acabo de dizer, são como o croquis das minhas idéias sobre
promoções nas classes armadas, sendo que algumas não me pertencem pro-
priamente, antes a todos os militares, suas mulheres, filhas e noivas. Eis aí.
Capitão Ortiz y Valdueza (Do Exército da Bruzundanga).
Reconheço a rubrica supra e a letra do Capitão Ortiz y Valdueza, do
Corpo de Submarinos do Exército da República os Estados Unidos da
Bruzundanga.
(Tenho o sinal público e, à margem, "grátis"), -- O COPISTA.
Careta, Rio, 29-1-21.
Rejuvenescimento
(Crônica Militar)

"Todas as medidas esperadas para resolver o problema do
rejuvenescimento dos quadros do Exército, das discutidas no Con-
gresso, não conseguiram sair do campo das discussões.
Rejuvenescer os quadros não significa somente melhorar o
futuro dos oficiais; é concorrer para que não reine o desânimo.
para que seja mantido o ardor profissional.
Não é possível esperar dum oficial que moireja de seis a oito
anos em cada posto, que ele tenha sempre o mesmo entusiasmo.
que a própria idade consegue arrefecer.
E com a idade vem naturalmente a diminuição do vigor físico
exigido para o desempenho do árduo trabalho de oficial de tropa."
É assim que se exprime sabiamente um jornal desta cidade. Estamos
de pleno acordo com as opiniões do nosso colega diário; mas julgamos,
no nosso humilde parecer, que ele só encara uma face do problema. É
nossa opinião que essa questão de rejuvenescimento, é uma questão geral
e interessa, não só aos militares, como também a outras classes da socie-
dade.
Que ardor profissional pode ter um carpinteiro que tem cinqüenta anos
de idade e trabalha no ofício desde os dezesseis?
A sua obra há de se ressentir da fadiga dos seus músculos cansados
e do desinteresse que traz a monotonia de fazer durante anos a mesma
tarefa. A sociedade perde muito com isso, pois os seus trabalhos não
terão a perfeição que havia nos que executava com trinta anos de vida.
Seria inútil repetir exemplos como este, pois eles estão aí aos pontapés,
para mostrar o quanto é indispensável decretar medidas que rejuvenesçam
os quadros de todas as profissões.
Para as funções públicas, inclusive as militares, já o célebre filósofo
político-militar dinamarquês, Hans Reykavyk propôs dois métodos para
obter o remoçamento dos quadros:
Um, aparente meramente, e de origem feminina; o segundo substancial
e rigorosamente científico.
O primeiro método se baseia nas pinturas, pomadas e massagens. Não
há negar que o seu emprego, quando executado por operador hábil, dá ao
indivíduo que a ele se sujeita a aparência de mocidade; mas é só aparên-
cia e não restitui a quantidade de força vital que o indivíduo perdeu com
o correr dos anos.
De resto, ele ia levar para a caserna hábitos de camarim de atriz.
A guerra em si mesma nada tem de teatral; só acham essa cousa nela
os pintores de batalhas que recebem encomendas dos governos, e os literatos
da moda.
A guerra em si é uma cousa brutal e horrendamente ignóbil; a única
consideração que rege a batalha, se há uma, está na cabeça de quem a
dirige, e isto não é matéria para tela, nem para páginas literárias, mas
notas e riscos numa carta topográfica, em escala conveniente com con-
venções adequadas.


Além disto, introduzindo hábitos teatrais no viver guerreiro, iria isso
perturbar a ação dos combatentes, diminuir-lhes a eficiência com a supo-
sição de que deviam tomar belas atitudes, para obter o aplauso da galeria,
distraindo-lhes do verdadeiro objetivo de sua ação que é dar cabo do
inimigo, por fas ou nefas.
Esse sistema de academia de beleza não pode ser adotado, sendo essa
também a conclusão a que chega, depois de exaustiva análise, o grande
filósofo dinamarquês que nos guia nestas despretensiosas notas.
Resta o método científico que se estriba na psicologia experimental e
é corrigido pela sociologia transcendente.
Não posso transcrever aqui todas as considerações que precedem a
exposição que o Senhor Hans Reykavyk faz desse método.
Bastará dizer-lhes que, depois de expor fatos concretos em abundância,
ele estabelece o postulado de que o general deve ser moço; de menos de
trinta anos, pois é nessa idade que os homens têm o máximo de iniciativa.
Saído das escolas militares o oficial será logo general, ganhando como
tenente, depois irá descendo de graduação de forma a chegar aos sessenta
como tenente, ganhando como general.
Eis em linhas gerais o plano de rejuvenescimento dos quadros de ofi-
ciais militares, a que chega o ilustre Reykavyk, após uma análise detalhada
das conclusões da psicologia experimental, convenientemente corrigidas pela
sociologia transcendente.
Além de outras vantagens, tem este método a de fazer que os tenentes
deixem, por morte, para as viúvas, filhos, filhas, genros e netos um monte-
pio que porá estes a coberto de todas as necessidades -- montepio de
general.
Pelo seu caráter geral e abstrato, com as necessárias modificações,
ele pode aplicar-se, não só a todas as corporações militares, como também
a quaisquer outras civis, estipendiadas pelo governo.
Não é preciso mais dizer, a fim de pôr em evidência o grande alcance
do sistema do pensador dinamarquês e chamar para ele a atenção do legis-
lativo brasileiro.
Creio que, fazendo isso, cumpro um dos deveres da missão militar de
que me acho incumbido no Brasil.
Capitão Ortiz y Valdueza, do corpo de Submarinos dos Estados Unidos
da Bruzundanga.
Pela tradução do "bengali". -- Lima Barreto -- (Tradutor público
ad-hoc).
Careta, Rio, 19-3-1921.
No salão da marquesa
NA República da Bruzundanga, nunca houve grande gosto pelas
cousas de espírito. A atividade espiritual daquelas terras se limita a uns
doutorados de sabedoria equívoca; entretanto, alguns espíritos daquele Fon-
kim se esforçavam por dar um verniz esperitual à sociedade da terra. Escre-
viam livros e folhetos, revistas e revistecas de modo que, artificialmente, o
país tinha uma certa atividade espiritual.
Notavam todos a falta de salas literárias, de salões espirituais, tais
aqueles que tanto brilho deram ao século XVIII francês, revelando não
só grandes escritores e filósofos, mas também espíritos femininos que, pela
sua graça, pelo seu talento de penetração, muito distinguiram o sexo amá-
vel, antes desse feminismo truculento e burocrático que anda por aí.
Consciente desta falta, a Marquesa de Borós, uma senhora de alta
estirpe e não menos alta inteligência, tomou o alvitre de fundar um salão
literário.
Ela residia em um grande palácio que se dependurava sobre a cidade
capital, do alto de uma verdejante colina, e nele em certas e determinadas
tardes reunia os intelectuais do país.
Em começo, recebeu alguns de valia; mas, bem depressa, os fariseus e
simuladores de talento tomaram conta da sala.
A sua delicadeza e a sua bondade se vira obrigada a receber toda
essa chusma de mediocridades que, sem ter talento nem vocação, se julgam
literatos e artistas, como se se tratasse de condecorações e títulos fornecidos
pelo presidente da República do Cunany.
A esse pessoal, acompanhou o equivalente feminino; e era de ver como
Cathos fazia pendant ao farmacêutico Homais; Madelon ao gramático
Vaugelas; e Filaminta ao artista Pèlerin.
Uma sociedade, ou antes: este salão começou a dominar a atividade
espiritual do país; e não havia recompensa do esforço intelectual em que
ele não se metesse e até pusesse o seu veto.
O parecer dele era sempre sobremodo néscio e tolo.
Para uns, ele opinava:
-- O Jagodes receber prêmio -- qual! Um filho natural! Não é
possível!
Para outros, ele sentenciava:
-- Não julgo o Fagundes digno de figurar no Grêmio Literário Na-
cional... Ele não bebe champagne!
A propósito destoutro, ele dogmatizava:
-- O Bustamante não pode receber a medalha. É verdade que ele tem
merecimento; mas veste-se muito mal...
Essa opinião acabava de ser pronunciada pelo ilustre literato Manuel
das Regras, cuja obra por ser desconhecida era de alto valor, quando,
num canto da sala, foi visto um sujeito mal vestido, relaxado, sujo mesmo,
com um todo de homem de outros tempos.
Todos se entreolharam com certo medo, apesar do estranho não ter
nenhum ar de existência sobrenatural.
Um mais animoso resolveu-se a falar ao intruso:
-- Quem é o senhor?!
-- Eu! Eu sou Francisco II, rei da Prússia.
E toda aquela miudeza de gente escafedeu-se por todas as portas e
janelas da sala.
Careta, Rio, 5-11-21.

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