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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte final]

Outras noticias
DA minha viagem à República dos Estados Unidos da Bruzundanga,
tenho publicado, no A.B.C., algumas notas com as quais organizei um volu-
me que deve sair dentro em breve das mãos do editor Jacinto Ribeiro dos
Santos.
Estou fora da Bruzundanga há alguns anos; mas, de quando em
quando, recebo cartas de amigos que lá deixei, dando-me notícias de tão
interessante terra.
De algumas vale a pena dar conhecimento ao público que se interessa
pela vida desses povos exóticos e paradoxais.
Diz-me um amigo, em carta de meses atrás, que a Bruzundanga decla-
rou guerra ao império dos Ogres; mas não mandou tropas para combatê-los
ao lado dos outros países que já o faziam. Tratou unicamente de vender
uma grande partida de tâmaras dos seus virtuais aliados, com o que o inter-
mediário ganhou uma fabulosa comissão.

Outra carta que de lá recebi, mais tarde, conta-me que os governantes
da Bruzundanga resolveram afinal mandar uma esquadra para auxiliar os
países amigos que combatiam os Ogres.
Logo toda a Bruzundanga se entusiasmou e batizou a sua divisão naval
de "Invencível Armada".
Como lá não houvesse um Duque de Medina Sidonia, como na Es-
panha de Felipe II, foi escolhido um simples almirante para comandá-la.
A esquadra levou longos meses a preparar-se e com ela, mas em
paquete, partiu também uma missão médica, para tratar dos feridos da
guerra contra os Ogres.
Tanto a esquadra como a missão chegaram a um porto intermediário,
onde, em ambas, se declarou uma peste pouco conhecida. Chamado o
chefe da comissão médica, este respondeu:
-- Não entendo disto... Não é comigo... Sou parteiro.
Um outro doutor da missão dizia:
-- Sou psiquiatra.
E não saiu daí.
-- Não sei -- acudiu um terceiro, ao se lhe pedir os seus serviços pro-
fissionais -- não curo defluxos. Sou ortopedista.
Não houve meio de vencer-lhes a vaidade de suas especialidades, de
anúncio de jornal.
Assim, sem socorros médicos, a "Invencível Armada" demorou-se longo
tempo no tal porto, de modo que chegou aos mares da batalha, quando
a guerra tinha acabado.
Melhor assim...
Não foram só estas duas cartas que me trouxeram novas excelentes da
Bruzundanga.
Muitas outras me chegaram às mãos; a mais curiosa, porém, é a que
me narra a nomeação de um papagaio para um cargo público, feita pelo
poder executivo, sem que houvesse lei regular que a permitisse.
Um ministro de lá muito jeitoso, que andava fabricando em vida, ele
mesmo, as peças de sua estátua, julgou que fazendo uma tal nomeação...
tinha já em bronze o baixo relevo do monumento futuro à sua glória.
Consultou um dos seus empregados que estudava leis e a interpretação
delas em Bugâncio, sabia a casuística jesuítica, além de conhecer as suti-
lezas da Escolástica, a ponto de ser capaz de provar com a mesma solidez
a tese e a antítese, desde que os interessados em uma e na outra o retri-
buíssem bem.
Dizia a lei fundamental da Bruzundanga:
"Todos os cargos públicos são acessíveis aos bruzundanguenses, me-
diante as provas de capacidade que a lei exigir".
O exegeta ministerial, depois de verificar que o papagaio tinha nas-
cido na Bruzundanga, e era, portanto, bruzundanguense, concluiu, muito
logicamente, que ele podia e lhe assistia todo o direito de ser provido em
um cargo público de seu país.
Argumentou mais com Augusto Comte que incorporava à Humani-
dade certos animais; com o "artemismo", crença de determinados povos
primitivos que se julgam descendentes ou parentes de tal ou qual animal,
para mostrar que o anelo íntimo dos homens é elevar esses seus semelhantes
e companheiros de sofrimentos na terra. Emancipá-los.
A Arte, dizia ele, foi sempre por eles. Citava as esculturas assírias,
egípcias, gregas, góticas que, embora idealizados ou estilizados, denuncia-
vam um culto pelos animais que, injustamente, chamamos inferiores.
Na arte escrita, para demonstrar o que o sábio consultor vinha asse-
verando, lembrava La Fontaine, com as suas fábulas, e modernamente,
Julcs Renard, com as suas interessantes Histoires Naturelles.
Nas modernas artes plásticas, nem se falava, continuava ele. A repre-
sentação artística de animais, por meio delas, já constituía uma especiali-
dade.
Foi por aí...
E, de resto, dizia ele quase no fim, quem não se lembra do papagaio
de Robinson Crusoé?
Devemos, portanto, exalçar o papagaio, que é um animal que fala,
rematou afinal.
O ministro gostou muito do parecer; julgou dispensável pedir uma lei
ao corpo legislativo que, na Bruzundanga, é composto de duas câmaras:
a dos vulgares e dos doutores; não julgou também necessário avisar os
outros papagaios da sua resolução, para que concorressem e nomeou o do
seu amigo Fagundes...
E foi assim, segundo me conta a missiva que recebi, que um "louro"
bem falante foi nomeado arauto d'armas da Secretaria de Estado de Me-
suras e Salamaleques da República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
A.B.C., Rio, 23-11-18.

FIM

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