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domingo, 27 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 38]

Aos poucos, porém, os parvenus viram bem que era preciso pôr um
pouco de beleza e de sonho nas suas existências de mascates broncos e
ferozes saqueadores legais. Deram em pagar sonetos que festejassem o
nascimento dos filhos e elegias que lhes dessem lenitivo por ocasião da
morte dos pais. Pagavam bem e pontualmente, como hoje se pagam as
missas de sétimo dia aos sacerdotes que oficiam nelas, ou em outras ceri-
mônias menos tristes.
Alguns, porém, quiseram mais ainda e, tendo notícias que os nobres
feudais, de espada e cavalo de batalha encouraçado e intrépido, tinham
os seus vates e trovadores, nos seus castelos e manoirs, pensaram em tê-los
também, pagando-os a bom preço, a fim de que contribuíssem com as suas
"palavras douradas" para o brilho de suas festas.
Um desses milionários, caprichoso e voluntarioso, quis ir mais longe
ainda. Tendo construído nos fundos de sua chácara, situada em um pito-
resco arrabalde da capital da República da Bruzundanga, um tanque imenso,
para dar banho aos cavalos de raça das suas opulentas cavalariças, teimou
que havia de inaugurá-los soberbamente, com notícias nos jornais, bênçãos
religiosas e um discurso feito pelo maior literato de Bruzundanga, ou tido
como tal, enfim, pelo mais famoso.

Não posso garantir que o Creso tivesse pago ao celebérrimo poeta
ou que este lhe devesse algum dinheiro; mas o certo é que, desprezando
a dignidade de sua Arte e a Glória, a reputação literária mais absorvente
e mais tirânica da Bruzundanga, pescou latim, grego, a cabala judaica, o
Ramâiana, os Evangelhos e inaugurou com um discurso assim pomposo,
e grandiloqüente, no estilo hugeano, o banheiro dos ginetes do multimilio-
nário Har-al-Nhardo Ben Khénly.
O altitudo!
O Parafuso, São Paulo, 12-3-1919.

A arte
O país da Bruzundanga, hoje República dos Estados Unidos da Bru-
zundanga, antigamente império, tem-se na conta de civilizado e, para isso,
entre outras coisas, possui escolas para o ensino de belas-artes.
Naturalmente dessas escolas saem competências em pintura, escultura,
gravura e arquitetura que devem ter mais ou menos talento; entretanto,
ninguém lhes dá importância, seja qual for o seu mérito.
Se não conseguem lugares de professores, mesmo de desenho linear,
nenhum favor público ou particular recebem da sua nação e do seu povo.
Houve um até, pintor de mérito, que se fez fabricante de tabuletas
para poder viver; os mais, quando perdida a força de entusiasmo da moci-
dade, se entregam a narcóticos, especialmente a uma espécie da nossa
cachaça, chamada lá sodka, para esquecer os sonhos de arte e glória dos
seus primeiros anos.
Dá-se o mesmo com os poetas, principalmente os pouco audazes, aos
quais os jornais nem notícia dão dos livros.
Conheci um dos maiores, de mais encanto, de mais vibração, de mais
estranheza, que, apesar de ter publicado mais de dez volumes, morreu aban-
donado num subúrbio da capital da Bruzundanga, bebendo sodka com
tristes e humildes pessoas que nada entendiam de poesia; mas o amavam.
A gente solene da Bruzundanga dizia dele o seguinte: "E um javanês
(equivalente ao nosso "mulato" aqui) e não sabe sânscrito".
Essa gente sublime daquele país é quase sempre mais ou menos java-
nesa e, quase nunca, sabe sânscrito.
Todo estímulo se vai e uma arte própria lá não se cria por falta de
correspondência entre o herói artístico e a sua sociedade.
Não é que ela não tenha necessidade dessa atividade do espírito
humano, tanto assim que os jornais da Bruzundanga vêm pejados de notícias,
encômios, ditirambos às mediocridades mais ou menos louras do que as
de lá.
Tenho aqui adiante dos olhos um jornal da Bruzundanga que trata
de um poeta da Austrália, cujos melhores versos são como estes:
Fui lá em cima ver meu Deus;
Voltei triste, por nada encontrar.
Mas se tiver forças hei de voltar
Para vê-lo de novo outra vez.
A notícia está assinada com o nome do autor e justifica os elogios
que lhe faz, com estas palavras, cuja aplicação devia caber aos seus cama-
radas e contemporâneos, para animá-los a fazer grandes coisas. Ei-las:
"Nada mais agradável e, sobretudo, nada mais útil que aplaudir aos
espíritos que apenas desabotoam, ainda cheios do calor dos primeiros sonhos,
ainda ressoantes da vibração dos primeiros vôos. Para eles não deve ser
a crítica um instrumento frio, insensível, com as asperezas de uma medida
certa, senão uma voz de estímulo, uma alentadora voz que embale o coração
e penetre, carinhosamente, a inteligência que reponta. O comentário, sem
ser exagerado, para não se tornar prejudicial, sem ser frívolo, para não se
transformar em elemento nocivo, em fonte de erros e vícios, deve procurar
os aspectos mais significativos do temperamento que surge, apontando, com
amoroso intuito, as insuficiências, as indecisões da primeira hora, as dúvidas
e as hesitações peculiares aos que começam. Geralmente, porém, não cos-
tumam os críticos profissionais usar de tais cautelas antes preferem exercer
o seu mister, com rudeza e impassibilidade, confundindo autores novos, sem
responsabilidades literárias ainda firmadas, para os quais o maior rigor é
brandura."
É engraçado que seja só maior rigor a brandura quando se trata de
poetas da Austrália; mas quando se trata de vates da Bruzundanga a
aior brandura é o rigor.

Não é só assim em poesia. Nas artes plásticas, na música, tudo é
assim.
Chega à capital da Bruzundanga um pintor que se diz pintor e espa-
nhol, a quem ninguém nunca viu ou conheceu, e logo os críticos dos jornais,
viajados e lidos, finos e limpos de colarinhos, logo dizem: "Este Dom
Tuas y Trias é Velázquez, é Zurbarán, é o Greco, é Goya, etc., etc."
Os quadros que ele traz, talvez, não sejam dele; são de uma banali-
dade de concepção e de uma infantilidade de execução lamentáveis; mas
os tais homens lidos, viajados, que desprezam os javaneses (os mulatos de
lá), afirmam que o homem é extraordinário.
Dito isto, logo todos os bobos ricos, enriquecidos com o tráfico do
ópio e outras maléficas, a fim de imitarem os príncipes da Renascença --
já se viu! -- correm à exposição e compram os quadros a preço de ouro,
enquanto os pobres diabos naturais ou vivendo na Bruzundanga, que são
conscienciosos do seu mister, morrem em ofícios humildes ou de sodka.
E assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de
doutores e aventureiros, ambas dadas à chatinagem e à veniaga, desde os
primeiros caçando casamentos ricos e os segundos na cavação comercial e
industrial, sem ter tido tempo para se deter nessas coisas de pensamento
e arte.
Quando ficam ricos, estão completamente embotados, para não dizer
mais...
Houve um pintor viriático que veio com uns quadros dramáticos.
cenográficos para a Bruzundanga, precedido de uma fama de todos os
diabos, a ponto de um guarda-livros, Filinto não hesitar em dizer que era
Leonardo Da Vinco.
Quando publicar estas notas em volume, que está a aparecer em
edição de Jacinto Ribeiro dos Santos, meu bom amigo e camarada, hei de
juntar uma reprodução do retrato eqüestre de um rei dele, o pintor, que
é o modelo mais perfeito do maneirismo, do apelo aos uniformes, aos
chamalotes, às plumas que conheço, em pintura.
Estas notas foram escritas ao correr da pena; mas, entretanto, poderei
desenvolvê-las se os interessados me provocarem. Escrevo em dia oportuno.
ABC, Rio, 7-9-1919.
Lei de promoções
(Crônica Militar)
O que tem até agora regulado as promoções, quer no exército e arma-
da, quer na polícia e guarda nacional, é o arbítrio, o capricho e a igno-
rância cega dos elementos da genesíaca cartesiana, que os metafísicos defi-
nem erroneamente como aplicação da álgebra à geometria.
No semi-século genial e fecundo que medeou entre Descartes e Leib-
nitz, muita conquista útil foi obtida, no terrena da análise transcendente,
mesmo antes da sua completa sistematização pelo gênio do último daqueles
filósofos.
Fermat, Cavallieri, Roberval e outros muitos concorreram para o esta-
belecimento definitivo do instrumento leibnitziano -- uma imortal con-
quista científica, para obtenção da qual o espírito humano estava assaz
maduro, tanto assim que Newton, pela mesma época, apresentou o seu
cálculo das fluxões.
Todo esse lento e paciente trabalho que absorveu o espírito de tantos
grandes homens da Humanidade, obriga-nos a dispensar um culto acen-
drado à memória deles, por isso lhes cito aqui os nomes, ao lembrar as
suas descobertas que muito lucraram com o rigor e a justiça das promo-
ções nos batalhões dos colégios equiparados e linhas de tiro.
Nestas unidades, o acesso ao posto imediato é determinado por um
processo rigorosamente científico, de um rigor verdadeiramente astronô-
mico.
É preciso estendê-lo ao resto das forças armadas.
Suponhamos um sargento que quer ser alferes. Pega-se o candidato
e faz-se engolir a seguinte beberagem:
Ácido azótico .......................................... 5 g.
Oxalato de potássio .................................... 7 g.
Magnésia calcinada ..................................... 3 g.
Bicloreto de mercúrio .................................. 2 g.
Água destilada ......................................... 100 g.
Deve-se dar ao paciente tudo isto de uma só vez. Se o sujeito não
bater a bota, examinam-se as fezes com o papel tournesol, que, no caso de
avermelhar-se, indica que o tipo pode ser alferes. No contrário, não.
Isto não tem nada que ver com Leibnitz, nem com o seu cálculo
infinitesimal; mas não me ficava bem deixar de citar o imortal filósofo e
a sua magna obra, podendo, se assim não procedesse, ser confundido com
um qualquer legislador metafísico e anarquizado, por aí, que não é senhor
do saber integral da humanidade.
A dosagem que indiquei, deve variar quando se tratar de polícias,
guardas nacionais e oficiais de fazenda. Para os primeiros carregar no
ácido azótico, para os segundos e terceiros, dobrar a dose de bicloreto de
mercúrio.
Com o emprego deste método que é rigorosamente científico, o gover-
no pode ter, em breve, um corpo de oficiais perfeitamente selecionados
pela Morte e um povoamento rápido e instantâneo dos cemitérios -- o
que, afinal, é o fim natural de todas as guerras a que os oficiais, sejam
desta ou daquela corporação, são obrigados a servir com todos os riscos e
vantagens.

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