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sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 37[


Coisas maravilhosas de um tradutor burocrático:
1.o) arbustos de serra (arbrisseaux de serre)
2.o) bilhetes de bilhar (billes de billard)
3.o) Tecidos de... cânhamo ou de ramia (ramie)
4.o) fetos de serra (fougères de serre)
5.o) berloques, colorados... (breloques, coloriées),
Todas estas e muitas outras lindezas semelhantes vieram publicadas no
D.O. da Bruzundanga, em 23 de março de 1917: e o ato era assinado
pelo grande Ministro -- Kallokeras.
"A seleção nas repartições é feita inversamente de forma que os em-
pregados mais graduados são os mais néscios e inscientes. Houve quem
propusesse para corrigir tal defeito que se mudasse a hierarquia burocrá-
tica: o cargo de diretor passava a ser o primeiro da escala e o de prati-
cante, o último."


No gabinete do ministro

-- O senhor quer ser diretor do Serviço Geológico da Bruzundanga?
pergunta o Ministro.
-- Quero, Excelência.
-- Onde estudou geologia?
-- Nunca estudei, mas sei o que é vulcão.
-- Que é?
-- Chama-se vulcão a montanha que, de uma abertura, em geral no
cimo, jorra turbilhões de fogo e substâncias em fusão.
-- Bem. O senhor será nomeado.
* * *
Pancome, quando se deu uma vaga de amanuense na sua secretaria
de Estado, de acordo com o seu critério não abriu concurso, como era de
lei, e esperou o acaso para preenchê-la convenientemente.
Houve um rapaz que, julgando que o poderoso Visconde queria um
amanuense chic e lindo, supondo-se ser tudo isso, requereu o lugar, jun-
tando os seus retratos, tanto de perfil como de frente. Pancome fê-lo vir
à sua presença. Olhou o rapaz e disse:
-- Sabe sorrir?
-- Sei, Excelentíssimo Senhor Ministro.
-- Então mostre.
Pancome ficou contente e indagou ainda:
-- Sabe cumprimentar?
-- Sei, Senhor Visconde.
-- Então, cumprimente ali o Major Marmeleiro.
Este major era o seu secretário e estava sentado, em outra mesa, ao
lado da do Ministro, todo ele embrulhado em uma vasta sobrecasaca.
O rapaz não se fez de rogado e cumprimentou o major com todos
os "ff" e "rr" diplomáticos.
O Visconde ficou contente e perguntou ainda:
-- Sabe dançar?
-- Sei. Excelentíssimo Senhor Visconde.
-- Dance.
-- Sem música?
O visconde não se atrapalhou. Determinou ao secretário:
-- Marmeleiro, ensaia aí uma valsa.
-- Só sei "Morrer sonhando" (exemplo).
-- Serve.
O candidato dançou às mil maravilhas e o Visconde não escondia o
grande contentamento de que sua alma exuberava.
Indagou afinal.
-- Sabe escrever com desembaraço?
-- Ainda não, doutor.
-- Não faz mal. O essencial, o senhor sabe. O resto o senhor apren-
derá com os outros.
E foi nomeado, para bem documentar, aos olhos dos estranhos, a beleza
dos homens da Bruzundanga.

Sobre os sábios
(a desenvolver)
OS engenheiros, tanto os civis como os militares, mais estes que aque-
les, julgam-se geômetras. Não o são absolutamente; os melhores são sim-
ples professores.
* * *
Os médicos da Bruzundanga imaginam-se sábios e literatos.
Pode-se afirmar que não são nem uma cousa nem outra.
* * *
É sábio, na Bruzundanga, aquele que cita mais autores estrangeiros; e
quanto mais de país desconhecido, mais sábio é. Não é, como se podia crer,
aquele que assimilou o saber anterior e concorre para aumentá-lo com os
seus trabalhos individuais. Não é esse o conceito de sábio que se tem
em tal pais.
Sábio, é aquele que escreve livros com as opiniões dos outros.
Houve um que, quando morreu, não se pôde vender-lhe a biblioteca,
pois todos os livros estavam mutilados. Ele cortava-lhes as páginas para
pregar no papel em que escrevia os trechos que citava e evitar a tarefa
maçante de os copiar.
* * *
Há mais de século que se estudam nas suas escolas superiores, as
altas ciências; entretanto os sábios da Bruzundanga não têm contribuído
com cousa alguma para o avanço delas.
Em toda a parte, os sábios, de qualquer natureza, são homens de
recursos medianos, modestos, retraídos, pouco mundanos, mesmo quando
ricos. Na Bruzundanga, não; os sábios são nababos, têm carros e auto-
móveis de luxo, palácios; freqüentam teatros caros, durante temporadas
completas; dão festas suntuosas nos seus hotéis, etc., etc.
* * *
Não há médico afreguesado que não seja considerado um sábio pela
gente da Bruzundanga, e, para firmar tal reputação, não fabrique uma
compilação escrita em sânscrito. O médico sábio não pode escrever em
outra língua que o sânscrito. Isto lhe dá foros de literato e aumenta-lhe
a clínica.
Com a vida dos sábios da Bruzundanga ninguém poderia escrever
Os Mártires da Ciência. Têm eles a precaução preliminar de inaugurarem
a sua sabedoria com um casamento rico.

Sobre a música

A música, na Bruzundanga, é, em geral, a arte das mulheres.
É raro aparecer no país uma obra musical.

Sobre a indústria

A indústria nacional da Bruzundanga tem por fim espoliar o povo
com os altos preços dos seus produtos. É nacional, mas recebe a matéria-
-prima, já em meia manufatura, do estrangeiro.

A última nota solta
A habilidade dos governantes da Bruzundanga é tal, e com tanto e
acendrado carinho velam pelos interesses da população, que lhes foram
confiados, que os produtos mais normais à Bruzundanga, mais de acordo
com a sua natureza, são comprados pelos estrangeiros por menos da metade
do preço pelo qual os seus nacionais os adquirem.

A última nota solta

A habilidade dos governantes da Bruzundanga é tal, e com tanto e
acendrado carinho velam pelos interesses da população, que lhes foram
confiados, que os produtos mais normais à Bruzundanga, mais de acordo
com a sua natureza, são comprados pelos estrangeiros por menos da metade
do preço pelo qual os seus nacionais os adquirem.
OUTRAS HISTÓRIAS DOS
BRUZUNGANGAS

As letras na Bruzundanga
"A solenidade que aqui nos reúne e para a
qual foram convocados os poderes do Céu e da
Terra, e o mar, é de tanta magnitude que a não
podemos avaliar senão rastreando, através das
sombras do Tempo, a sua projeção no Futuro."
Coelho Neto.
Discurso na inauguração da piscina do Fluminense F.C.
O meu livro de viagem à República dos Estados Unidos da Bruzun-
danga está a sair das mãos do editor carioca Jacinto Ribeiro dos Santos;
por isso nada lhe posso adicionar, senão quando estiver em segunda edição,
caso tenha ele essa felicidade.
Nesse meio tempo, porém, tenho recebido notícias de lá que, sem
implicar numa total modificação dos costumes e hábitos daquele notável
povo e daquela curiosa terra, observados já por mim, revelam, entretanto,
pequenas alterações interessantes que não devem ficar sem registro. Uma
delas é a que se está passando com os seus literatos e poetas.
Em todos os tempos os homens de letras, maus ou bons, geniais ou
medíocres, ricos ou pobres, glorioso ou ratés, sempre se julgaram inspira-
dos pelos Deuses e confabulando intimamente com eles. A vida dos escri-
tores, poetas, comediógrafos, romancistas, etc., está cheia de episódios que
denunciam esse singular orgulho deles mesmo e da missão da arte de escre-
ver a que se dedicam. Todos eles se deixariam morrer à fome ou de mi-
séria, antes de transformar a sua Musa em passatempo de poderosos e
ricaços. Entregaram essa função aos bufões, aos histriões, aos bobas da
corte, etc.
Mesmo quando um duque ou um príncipe tinha um poeta a seu soldo,
o estro dele só era empregado para solenizar os grandes acontecimentos
privados ou públicos em que o duque ou o príncipe estivesse de qualquer
forma metido. Se se tratasse de um batizado na família, de um casamento,
do aniversário da duquesa, de uma vitória ganha pelo príncipe, de sua
nomeação para embaixador junto à corte de Grão-Mongol, sim! O poeta
palaciano tinha que puxar a mitologia do tempo, escrever uma ode, um
epinício, um ditirambo ou mesmo um simples soneto, conforme fosse a
natureza da festa. Mesmo para as mortes havia a elegia com todas as suas
regras marcadas na retórica e poética daqueles tempos de reis, marqueses
e duques.
Esses fidalgos mesmo aceitavam de bom grado o orgulho profissional
dos seus poetas attachés. Alguns destes mereciam até homenagens excep-
cionais, como um tal Alain Chartier, poeta francês do século XV. Conta-se
que a delfina Margarida da Escócia, passando com o seu séqüito de damas
e cavalheiros de honor, por uma sala em que estava cochilando o poeta,
não trepidou em beijá-lo na boca diante de todo o seu acompanhamento. A
mulher do príncipe que foi mais tarde o sombrio e velhaco Luís XI de
França justificou o ato dizendo que apesar do desgracioso físico de Alain,
a encerrar, contudo, tão belo espírito, daquela boca tinham saído tantas
palavras douradas, que ele merecia aquela sua imprevista homenagem. As
crônicas do tempo contam esse episódio que me parece não ter eu adulte-
rado e, além deste, muitos outros interessantes, em que se mostra até que
ponto os homens de pena eram prezados pelos poderosos de antanho, e
como eles tinham em grande conta a sua missão de troveiros e trovadores.
Na Bruzundanga, até bem pouco, era assim também. A sua nobreza
territorial e agrícola estimava muito, a seu jeito, os homens de inteligência,
sobremodo os poetas, aos quais ela perdoava todos os vícios e defeitos
Essa fidalguia à roceira daquele país era assim semelhante aos nossos
"fazendeiros", antes da lei de 13 de maio; e poeta, ou mesmo poetastro,
que aportasse nas suas fazendas, que lá são chamadas -- "ampliúdas" --
tinha casa, comida, roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda a
semana, podendo demorar-se no latifúndio o tempo que quisesse, e fazendo
o que bem lhe parecesse, desde que nada tentasse contra a decência e a
honra da família. Por agradecimento, então, em dia festivo da família ou
da religião, ao jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia
inédita, alusiva ou não ao ato, e tomava uma grande e alegre carraspana.
Houve um até -- uma espécie do nosso Fagundes Varela -- que é
ainda lá muito célebre, recitador nas salas, e cujas obras têm tido muitas
edições que viveu anos inteiros em peregrinações de "ampliúda" para
"ampliúda", sem saber o que era uma moeda, por mais insignificante que
fosse de valor, comendo, bebendo, fumando, sem que nada lhe faltasse, a
não ser dinheiro de que ele mesmo não sentia nenhuma necessidade. Tinha
tudo...
Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução social e, logo em se-
guida, uma política, deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos deles,
até, dos seus domínios, que vieram a cair nas mãos de aventureiros recen-
temente chegados à terra ou, quando nascidos nela, eram de primeira gera-
ção, descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único pensamento
era fazer fortuna do pé para a mão, cheios de uma avidez monetária e
inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos filhos, e logo os lindos cos-
tumes de antiga nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à
margem e não tiveram mais nem consideração nem desprezo. Era como
se não existissem, como se fosse possível isso, seja em sociedade humana,
fora de qualquer grau de civilização que ela esteja.

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