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sábado, 26 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto parte 33

Arrebatadamente entra pelo gabinete ministerial adentro e, dando
com o secretário, pois o Ministro não estava, desanda no dedicado serven-
tuário uma feroz descompostura em que o chama de lacaio, de capacho,
de toma-larguras, de lavador de tinteiros, etc., etc.
Entretanto, o secretário não merecia tão feroz objurgatória, pois, em
geral, esses abnegados serventuários da Bruzundanga são pessoas ternas,
meigas, de bom coração, especialmente com os filhos dos Ministros.
Em dias de festas, das festas familiares dos Ministros, é de ver como
tratam os pimpolhos ministeriais; é de ver como suportam resignadamente
o peso de um nas costas, o de um outro nos joelhos, além do incômodo
de um terceiro que lhe passou um barbante na boca e simula guiá-lo
como cavalo de tílburi.
Não vão para a copa; mas -- coitados! -- aturam coisas muito piores.
Disse, no começo desta "nota", que o secretário de Ministro era
indispensável ao complexo funcionamento do aparelho governamental da
Bruzundanga.

Pelos fatos que expus, estou certo de que provei esta asserção; e posso
concluir com orgulho, com aquele orgulho de um jovem estudante, quando
acaba de demonstrar com segurança um teorema de geometria e dizer,
como ele ou como o velho compêndio de Euclides, que demonstrei o que
era preciso demonstrar -- quod erat demonstradum, Q. E. D. como abre-
viam os compêndios.

XX
Uma província

AS províncias da República da Bruzundanga, que são dezoito ou vinte,
gozam, de acordo com a Carta Constitucional daquele país, da mais ampla
autonomia, até ao ponto de serem, sob certos aspectos, quase como países
independentes.
Seria enfastiar o leitor querer dar detalhes das prerrogativas que usu-
fruem as províncias. Com isto, faria obra de estudioso de cousas legisla-
tivas e não de viajante curioso que quer transmitir aos seus concidadãos
detalhes de costumes, que mais o feriram em terras estranhas. Faço traba-
lho de touriste superficial e não de erudito que não sou.
Das províncias da Bruzundanga, aquela que é tida por modelar, por
exemplar, é a província do Kaphet. Não há viajante que lá aporte, a quem
logo não digam: vá ver Kaphet, aquilo sim! Aquilo é a jóia da Bru-
zundanga.
A mim -- é bem de ver-se -- os magnatas de lá não me fizeram
semelhante convite; mas à tal província fui por minha própria iniciativa e
sem os tropeços de cicerones oficiais que me impedissem de ver e examinar
tudo com a máxima liberdade.
Pela leitura, sabia que a gente rica da província se tem na conta de
aristocratas, de nobres e organizam a sua genealogia de modo que as suas
casas tomem origem em certos antropófagos, como eram os primitivos
habitantes da província, dos quais todos eles querem descender. Singular
nobreza!
Sempre achei curioso que a presunção pudesse levar a tanto, mas,
em lá chegando, observei que podia levar mais longe. O traço caracte-
rístico da população da província do Kaphet, da República da Bruzundanga,
é a vaidade. Eles são os mais ricos do país; eles são os mais belos; eles
são os mais inteligentes; eles são os mais bravos; eles têm as melhores
instituições, etc., etc.
E isto de tal forma está apegado ao espírito daquela gente toda, que
não há modesto mestre-escola que não se julgue um Diderot ou um Aris-
tóteles, e mais do que isso, pois, deixando de parte a teoria, se julgam
também capazes de exercer qualquer profissão deste mundo; e, se se fala
em ser oficial de marinha, eles se dizem capazes de sê-lo do pé pra mão,
e assim de artilharia, de cavalaria. Imaginam-se prontos para serem astrô-
nomos, pintores, químicos, domadores de feras, pescadores de pérolas, re-
madores de canoas, niveladores, o diabo!
Tudo isto porque a província faz questão de que conste nos panegí-
ricos dela que o seu ensino é uma maravilha; as suas escolas normais,
cousa nunca vista; e os seus professores sem segundos no mundo.
Domina nos grandes jornais e revistas elegantes da província, a opinião
de que a arte, sobretudo a de escrever, só se deve ocupar com a gente rica
e chic, que os humildes, os médios, os desgraçados, os feios, os infelizes
não merecem atenção do artista e tratar deles degrada a arte. De algum
modo, tais estetas obedecem àquela regra da poética clássica, quando exigia,
para personagens da tragédia, a condição de pessoas reais e principais.
Mas, como eles não têm dessa gente lá; não têm nem Orestes, nem
Ájax, nem Ismênia, nem Antígone, os Sófocles da província se contentam
com algumas gordas fazendeiras ricas e saltitantes filhas de abastados
negociantes ou com uns bacharéis enfadonhos, quando não tratam de soler-
tes atravessadores de café.
Um dos traços mais evidentes da vaidade deles, não está só no que
acabo de contar. Há manifestações mais ingênuas.
Quando lá estive, deu-me vontade de ir ver a pinacoteca e a gliptoteca
locais. Já havia visto as da capital da Bruzundanga. Eram modestas,
possuindo um ou outro quadro ou mármore de autor de grande celebridade.
Eram modestas, mas probas e honestas.
Tinham-me dito cousas portentosas da galeria de quadros e estátuas
da capital da província do Kaphet. Fui até lá, como quem fosse para a
de Munich ou para o Louvre. Adquiri um catálogo e logo topei com esta
indicação: "La Gioconda", quadro de Leonardo da Vinci.
Fiquei admirado, assombrado com aquelas palavras do catálogo. Teria
a França vendido a célebre criação do mestre florentino? Poderia tanto
o dinheiro do café? Corri à sala indicada e dei -- sabem com quê? Com
a reprodução fotográfica do célebre retrato a óleo de Mona Lisa del
Gioconda, uma reprodução da Casa Braün!
Não quis ir adiante para ver a "Ronda Noturna", de Rembrandt, um
Corot, um Watteau, nem tampouco na secção de escultura, a "Vitória de
Samotrácia" e a "La Pietá", de Miguel Ângelo.
Eles, os da província, falam muito em arte, na cultura artística da-
quele rincão da Bruzundanga; mas o certo é que não lhe vi nenhuma ma-
nifestação palpável. Vão ter uma prova.
Durante os dias em que lá estive apuravam-se as provas do concurso
aberto para a escolha das armas da capital. Vi os desenhos. Que cousas
hediondas! Quanta insuficiência artística! Não havia talvez dous desenhos,
já não direi de acordo com as regras da heráldica, mas do gosto. Eram
verdadeiros rótulos de cerveja marca "barbante".
Não falo de música, porque pouco observei sobre tal arte; mas, no
que toca à arquitetura, posso dizer, com convicção, que lá não há um
arquiteto de talento. Devia citar-lhes o nome aqui; mas, ao se tratar de
tal gente, podia parecer que queria arranjar dinheiro. Não preciso.
Outra pretensão curiosa da gente daquela província da Bruzundanga
é afirmar que a sua casquilha capital é uma cidade européia. Há tantos
tipos de cidades européias que tenho vontade de perguntar se ela é do tipo
Atenas, do tipo Veneza, do tipo Carcassone, do tipo Madrid, do tipo Flo-
rença, do tipo Estocolmo -- de que tipo será afinal? Certamente do de
Paris. Ainda bem, que ela não quer ser ela mesma.
O mal da província não está só nessas pequenas vaidades inofensivas;
o seu pior mal provém de um exagerado culto ao dinheiro. Quem não tem
dinheiro nada vale, nada pode fazer, nada pode aspirar com independência.
Não há metabolia de classes. A inteligência pobre que se quer fazer, tem
que se curvar aos ricos e cifrar a sua atividade mental em produções
incolores, sem significação, sem sinceridade, para não ofender os seus
protetores. A brutalidade do dinheiro asfixia e embrutece as inteligências.
Não há lá independência de espírito, liberdade de pensamento.
A polícia, sob este ou aquele disfarce, abafa a menor tentativa de crí-
tica aos dominantes. Espanca, encarcera, deporta sem lei hábil, atemori-
zando todos e impedindo que surjam espíritos autônomos. É o arbítrio;
é a velha Rússia.
E isso a polícia faz para que a província continue a ser uma espécie
de República de Veneza, com a sua nobreza de traficantes a dominá-la,
mas sem sentimento das altas cousas de espírito.
Ninguém pode contrariar as cinco ou seis famílias que governam a
província, em cujo proveito, de quando em quando, se fazem umas curiosas
valorizações dos seus produtos. Ai daquele que o fizer!
A mentalidade desses oligarcas é tal, que não trepidaram em fazer
votar uma lei colonial, uma verdadeira disposição de Carta Régia, para,
diziam eles, aumentar o preço da "medida" (cerca de quinze quilos) do
café. O seu aparelho governativo decretou, em certa ocasião, a proibição
do plantio de mais um pé de café que fosse, da data daquela lei em
diante. A lei, ao que parece, caiu em desuso. Não era de esperar outra
coisa...
Havia muito ainda a dizer a respeito; mas bastam estes traços para
os brasileiros julgarem o que é uma província modelo na República dos
Estados Unidos da Bruzundanga.
XXI
Pancome, as suas idéias e o amanuense

ESTE caso do amanuense e alguns outros que aqui vão ser contados
na maioria, aconteceram na alta administração da Bruzundanga, quando
foi Ministro de Estrangeiros o Visconde de Pancome.
Mas, dentre todos os seus atos, aquele que fez propriamente escola,
foi a nomeação de um amanuense para a sua secretaria; e os demais, quer
quando foi ministro, quer antes, se entrelaçam tanto com a célebre no-
meação, esclarecem de tal modo o seu espírito de governo e a sua capa-
cidade de estadista, que tendo de narrar aquele provimento de um modesto
cargo, me vejo obrigado a relatar muitos outros casos de natureza quiçá
diversa. Entro na matéria.
Andava o poderoso secretário de Estado atrapalhado para preencher
um simples cargo de amanuense que havia vagado na sua secretaria.

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