Total de visualizações de página

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 31]

Foi então que para sanar tão lastimável estado de cousas, para nacio-
nalizar o comércio, alguns homens de boa vontade tomaram a iniciativa
de fundar, em Bosomsy, um alto estabelecimento de instrução comercial,
nos moldes alemães e americanos, isto é, inteiramente prático. Vou em
rápidas palavras dizer-lhes como eles o projetaram e para tal, nada mais
farei do que transcrever para aqui as partes essenciais do programa que
estavam distribuindo quando saí da grande República e as conversas que
com eles tive.
Era intuito dos fundadores da Academia Comercial banir do seu ensino
todo o pedantismo, todo o luxo teórico; fazê-lo prático, moderno, à yankee.
De tal modo o queriam assim que ao fim de um curso de pequena dura-
ção, o aluno pudesse, sem dificuldades e hesitações, colocar-se à testa de
uma loja e geri-la com o desembaraço e a segurança de velho negociante
com vinte anos de prática.
Além de negociantes propriamente, a Academia visava sobretudo for-
mar magníficos caixeiros, magnéticos, com virtudes de ímã, capazes de
solicitar, de empolgar, de atrair a freguesia.

Para a boa Compreensão dos leitores que mal conhecem certamente
os usos daquele país e os aspectos da sua capital, os exemplos locais de
hábitos de comércio, que me foram fornecidos pelos fundadores da Acade-
mia, serão por mim dados aqui com similares cariocas. Continuemos.
Os cursos da Academia Comercial da Bruzundanga não ficarão insta-
lados em um enorme edifício, grandioso e inútil para os fins a que se
destina, e sobremodo favorável à criação de um espírito de escola, de
camaradagem, indigno da luta comercial. As aulas funcionarão em peque-
nas casas, situadas nas regiões da capital em que atualmente mais flores-
cem os gêneros de comércio que os alunos pretenderem aprender.
Conversando com um dos iniciadores, tive ocasião de receber a confi-
dência da metodologia própria ao estabelecimento. Lembro ainda que os
exemplos são transferidos das coisas de lá para as daqui.
Assim, em uma espécie de Rua da Alfândega de Bosomsy, entre as
equivalentes de lá às nossas do Núncio e São Jorge, será estabelecido o curso
de venda ambulante de fósforos.
A aula ficará a cargo de um velho "turco" afeito ao negócio, cujas
calças curtas, denticuladas nas extremidades, beijam a fugir os canos das
botinas muito grandes e deixam ver, de quando em quando, dois bons
pedaços de suas canelas felpudas.
Possuidor de voz roufenha e lenta mas penetrante e persuasiva, toda
a manhã, o venerável catedrático, no centro de jovens discípulos, marcando
o ritmo com uma varinha auxiliar, fá-los-á repetir uma, duas, mil vezes:
-- "fofo barato! fofo barato! duas caixa um tostão!"
Este curso durará seis meses, dando direito a um atestado de frequência.
A aula de jornalismo (venda ambulante das gazetas) ia ser instalada
em frente do popularíssimo quotidiano de lá -- Bosomsy-Gazetto; e tencio-
navam os fundadores da Academia realizá-lo de madrugada, admitindo um
número restrito de alunos, sendo-lhe exigida a apresentação de atestados
valiosos de que sabiam tomar bondes em movimento.
Os cocheiros de bondes (ainda eram de tracção animal), os respec-
tivos recebedores e os baleiros eram pessoas idôneas para passar o atestado.
A aula de "frege" cuja sede seria uma espécie de Largo da Sé de lá,
ficará dividida em duas partes: cantata da lista e encomenda de pratos à
cozinha.
Os discípulos serão obrigados a repetir em coro e na toada de uso,
todo um pantagruélico e imaginário menu: "seca desfiada, caldo à portu-
guesa, arroz com repolho, feijoada Camões, tripas à portuense, bifes à
Itália", etc., etc...
O lente, um exemplar de homem assim como um gordo proprietário
de casa de pasto da Rua da Misericórdia, sentado a uma mesinha, coberta
com uma toalha eloquentemente imunda, dirá subitamente a um dos alunos:
-- Traga-me um arroz e um bacalhau, "Seu" Manuel.
O discípulo correrá até ao fundo da sala e, com a voz clássica do
ofício, gritará para a fantástica cozinha:
-- Salta um "chim" e um bacalhau.
O tirocínio acadêmico durará um ano, conferindo o título de bacharel
em lista cantada e dando direito ao uso de um anel simbólico.
Afora estes, haverá o curso de barbeiro, de botequim, de compra de
ferro velho, e outros. O mais difícil, porém, há de ser o de armarinho,
cujas aulas funcionarão em uma rua principal da cidade, em uma rua como
a nossa do Ouvidor, e terão lugar em grandes salas, guarnecidas de assen-
tos em anfiteatro, como nas grandes escolas superiores.
Alguma dama facilmente adaptável figurará como freguesa atendida,
pelo professor, que perpetrará os lânguidos olhares de uso nesse tráfico,
ajudando-a na escolha das fazendas, cortando o padrão com elegância e
dizendo as frases amáveis, espirituosas e adequadas a tão alto comércio:
"em si, toda a fazenda vai bem; quem quer cassa, caça", etc., etc.

Nenhum comentário: