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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 30]

Uma vergonha!
Acontecia em certas ocasiões que um grupo gritava -- Viva o doutor
Clarindo! -- o outro exclamava: -- Viva o doutor Carlindo -- e um
terceiro expectorava -- Viva o doutor Arlindo! -- quando o verdadeiro
nome do doutor era -- Gracindo!
Para obviar tais inconvenientes, houve alguém que teve a ideia de
"canalizar, de disciplinar" o entusiasmo do povo bruzundanguense, entusias-
mo tão necessário às manifestações que lá há constantemente, e tão indis-
pensáveis são ao fabrico de grandes homens que dirijam os destinos da
grande e formosa República dos Estados Unidos da Bruzundanga.
Esse alguém, esse homem de gênio, cujo nome infelizmente me escapa
agora, delineou -- a "Guarda do Entusiasmo".
Os fins a que a organização de semelhante corpo manifestante devia
obedecer, foram expostos pelo seu criador, mais ou menos, nas seguintes
palavras que, se não são transcritas do seu manifesto, podem ser tomadas
como verdadeiras, pois me gabo de ter muito boa memória.

Ei-las:
"As sucessivas e continuadas festas que Bosomsy (capital da Bruzun-
danga) tem dado a vários personagens nacionais e estrangeiros, nestes
últimos tempos, sugerem a ideia de se organizar um corpo de dez mil
homens, convenientemente fardados, armados e disciplinados, encarregados
das aclamações, dos vivórios e todas as outras cousas que os jornais englo-
bam sob o título -- 'Uma Entusiástica Recepção'.
É conveniente que esse corpo tenha uma organização adequada e
fique sujeito à suprema direção de um dos nossos ministérios, por intermé-
dio de uma Diretoria Geral de Manifestações e Festejos, que deve ser
criada oportunamente.
O nosso catita Ministério de Estrangeiros está naturalmente indicado
para superintender os destinos superiores dessa 'Guarda do Entusiasmo',
e da diretoria, que fará parte naturalmente da respectiva Secretaria de
Estado.
O aproveitamento da energia entusiástica desses dez mil homens obter-
-se-á com uma disciplina inteligente e uma hierarquia conveniente.
Cada soldado, pelo menos, deverá dar dois 'vivas' por minuto; os
sargentos e demais inferiores, nos intervalos dos 'vivas', baterão palmas,
muitas palmas, seguidas e nervosas; os oficiais serão encarregados de soltar
foguetes e traques; o general fará, por intermédio do corneta, os sinais da
ordenança, de modo a graduar, a marcar a aclamação delirante.
Ter-se-á assim a canalização, a organização do entusiasmo, e a popu-
lação de Bosomsy mediante um pequeno imposto, ficará desembaraçada do
ônus manifestante. 
O fardamento não custará lá grande cousa. Roupas usadas, velhos
chapéus de funcionários sobrecarregados de família, botas acalcanhadas de
empregados de advogados, emprestarão aos soldados o aspecto mais popu-
lar possível. Os oficiais vestirão a sobrecasaca de sarja das grandes ocasiões;
o general e o seu estado-maior virão em carro descoberto.
A 'Guarda do Entusiasmo' não formará, por completo, para toda e 
qualquer homenagem.
Um embaixador belíssimo terá direito à metade; um chefe de Estado
feio, a toda ela.
O Governo, como atualmente procede com as bandas de música mili-
tares, poderá alugar fracções da 'Guarda', ou mesmo ela completa, a parti-
culares que pretendam realizar manifestações honestas e republicanas;
e, com isto, obterá uma segura fonte de renda para o erário nacional.
Tudo indica que nela haja algumas centenas de praças e uma ou duas
dúzias de oficiais conhecedores do entusiasmo inglês, francês, china e abe-
xim para as manifestações a grandes personagens abexins, chineses, fran-
ceses e ingleses.
Toda a corporação congênere deve ser proibida pelo governo, e na
'Guarda' é bom que o comandante admita algumas dezenas de homens
robustos capazes de puxar carros de heróis ambulantes ou atrizes fascina-
doras. Às vezes, temos visto o entusiasmo exigir esse glorioso serviço...
Se no mercado comum de homens robustos não se encontrarem mús-
culos capazes para tão nobre atividade, é bom que sejam contratados alguns
lutadores de luta romana, mesmo porque, procurando dar às manifestações
um cunho de novidade, pode haver quem proponha levantar-se a carrua-
gem dos 'manifestados' de sobre o vulgar chão de asfalto".
Estas palavras vinham eivadas de tanta lógica que logo convenceram
os governantes da Bruzundanga da verdade e da necessidade que encerra-
vam; e não demorou um mês que a "Guarda" fosse organizada, apesar
de se terem apresentado como candidatos a lugares dela quase todos os
habitantes de Bosomsy.
 
XVII
Ensino prático
NOTANDO os grandes estadistas da Bruzundanga que o comércio do
país estava nas mãos de estrangeiros, resolveram com todo o patriotismo
retirar o monopólio da mercancia, quer por atacado quer a varejo, das
mãos de estranhos ao país.
Os economistas tinham mesmo verificado que a exportação de dinheiro
que os grandes e pequenos negociantes faziam para os seus países de ori-
gem, sobrepujava à do café; e, longe do comércio da nação enriquecê-la,
empobrecia-a mais até do que a da venda aos estrangeiros da famosa rubiá-
cea que constituía a sua riqueza.

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