Total de visualizações de página

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto {parte 29]

Vestiu-se o melhor que pôde, dispôs-se a suportar o suplício das botas,
pôs ao colete o relógio, a corrente e o medalhão de ouro com a enorme
estrela de brilhante que parece ser o distintivo dos pequenos e grandes
negociantes de todas as terras, e encaminhou-se para a estação da estrada
de ferro. Ei-lo no centro da cidade.
Adquiriu a entrada, isto é, o cartão, nas mãos do contínuo do con-
sultório, despedindo-se dos seus cinqüenta mil-réis com a dor de pai que
leva um filho ao cemitério. Ainda se o doutor fosse seu freguês... Mas
qual! Aqueles não voltariam mais...
Sentou-se entre 'cavalheiros bem vestidos e damas perfumadas. Evitou
encarar os cavalheiros e teve medo das damas... Sentia bem o seu opró-
brio, não de ser taverneiro, mas de só possuir de economias duas miseráveis
dezenas de contos... Se tivesse algumas centenas -- então, sim, ele! -- ele
poderia olhar aquela gente com toda a segurança da fortuna, de dinheiro,
que havia de alcançar certamente, dentro de anos, o mais breve possível.
Um a um, iam eles entrando para o interior do consultório; e pouco
se demoravam. Suza, começou a ficar desconfiado... Diabo! Assim tão
depressa?

Boa profissão, a de médico! Ah! Se o pai tivesse sabido disso...
Mas qual!
Pobre pai! Ele mal podia com o peso da mulher e dos filhos, como
havia de pagar-lhe mestres? Cada um enriquece como pode...
Foi, por fim, à presença do doutor. Krat gostou do homem. Tinha
um olhar doce, os cabelos já grisalhos, apesar de sua fisionomia moça,
umas mãos alvas, polidas.
Perguntou-lhe o médico com muita macieza de voz:
-- Que sente o senhor?
Krat Ben Suza foi-lhe dizendo logo o terrível mal no estômago de
que vinha sofrendo, há tanto tempo, mal que aparecia e desaparecia mas
que não o deixava nunca. O doutor Adhil Ben Thaft fê-lo tirar o paletó,
o colete, auscultou-o bem, examinou-o demoradamente, tanto de pé, como
deitado, sentou-se depois, enquanto o negociante recompunha a sua modesta
toilette.
Suza sentou-se também, e esperou que o médico saísse de sua medi-
tação.
Foi rápida. Dentro de um segundo, o famoso clínico dizia com toda
segurança:
-- O senhor não tem nada.
O humilde vendeiro ergueu-se de um salto da cadeira e exclamou
indignado:
-- Então, senhor doutor, eu pago cinquenta mil-réis e não tenho
nada! Esta é boa! Noutra não caio eu!
E saiu furioso do consultório que merecia da cidade uma romaria
semelhante à da milagrosa Lourdes, no doce país de França.

XVI
A organização do entusiasmo

A curiosa República de que me venho ocupando, é acusada pelos seus
filósofos de não ter costumes originais. É um erro de que participam quase
todos os seus naturais -- erro muito naturalmente explicável, pois mergu-
lhados na sua vida, não possuem pontos de referência para aquilatar da
originalidade das usanças especiais de sua terra.
Os estrangeiros, porém, logo as percebem e contam nos seus livros.
Li muitos livros de viagem na Bruzundanga; e, em nenhum deles vi refe-
rências a um costume curioso daquele país -- "a manifestação".
Chama-se isto ao ato de fazer ressaltar uma dada personalidade com
aclamação, o vivório de muitos outros. Esta é a grande manifestação; há
também as pequenas que consistem em banquetes, saraus, piqueniques, em
honra de um dado sujeito.
Convém fazer observar que tanto uma espécie como a outra visam
a publicação de longas notícias nos jornais, de modo a fazer crer ao pú-
blico que o "manifestado" é mesmo homem de valor(às vezes o é) e
merece dos poderes públicos todo o acatamento e toda a proteção. E este
o fim oculto da "manifestação", grande ou pequena.
Houve lá um rapaz que, graças aos banquetes que lhe eram oferecidos
e cujas notícias saíam em colunas pelos jornais afora, foi de segundo
Tenente da Marinha a contra-almirante, em cinco anos, sem nunca ter
comandado uma falua.
Um senhor que conheci, fez-se uma celebridade em astronomia, com
auxílio dos saraus que lhe eram oferecidos pelos amigos. Ele tinha em
casa um óculo de bordo, montado sobre uma tripeça, que, por sua vez, se
alcandorava em um mangrulho erguido na sua chácara; lia o Flammarion;
e isto tudo com mais uns amigos dedicados a lhe oferecer bailes, por
ocasião das suas portentosas descobertas nos céus ignotos, levaram o go-
verno da Bruzundanga a nomeá-lo diretor de um dos Observatórios Astro-
nômicos da República.
Esses casos são de pequenas homenagens levadas ao cabo por amigos
cuja amizade e vinhos generosos são bastantes para incutir-lhes entusiasmo,
por ocasião de tais manifestações.
Mas, para as grandes, para aquelas feitas a políticos, a capitalistas, a
embaixadores; para aquelas em que se exige multidão, o entusiasmo não
era fácil de obter-se assim do pé pra mão e quando eram realizadas, além
desse "defeito" apresentavam alguns outros.
Muitas vezes até os organizadores verificavam que os manifestantes
não sabiam bem o nome do grande homem a festejar. Era uma lástima!







Nenhum comentário: