Total de visualizações de página

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 28]

Porque o maravilhoso clínico não gostava das fórmulas e medica-
mentos vulgares; ele era original na botica que empregava.
O seu consultório ficava em uma rua central, ocupando todo um
primeiro andar. As ante-salas eram mobiliadas com gosto e tinham mesmo
pela parede quadros e mapas de cousas da arte de curar.
Havia mesmo, no corredor, algumas gravuras de combate ao alcoolismo
e era de admirar que estivessem no consultório de um médico, cuja glória
o obrigava a ser conviva de banquetes diários, bem e fartamente regados.
Para se ter a felicidade de sofrer um exame de minutos do milagroso
clínico, era preciso que se adquirisse a entrada, isto é, o cartão, com ante-
cedência, às vezes, de dias. O preço era alto, para evitar que os viciosos
do grande clínico não atrapalhassem os que verdadeiramente necessitavam
das luzes do célebre clínico...
Custava a consulta cera de cinqüenta mil-réis, na nossa moeda; mas
apesar de tão alto preço, o escritório da celebridade médica era objeto de
uma verdadeira romaria e toda cidade o tinha como uma espécie de Apa-
recida médica.

Cator Krat Ben, sócio principal da firma Suza & Cia, estabelecido
com armazém de secos e molhados, lá pelas bandas de um arrabalde afas-
tado da cidade, andava sofrendo de umas dores no estômago que não o
deixavam comer com toda liberdade o seu bom cozido, rico de couves e
nabos, farto de toucinho e abóbora vermelha, nem mesmo saborear, a seu
contento, o caldo que tantas saudades lhe dava de sua aldeia natal.
Consultou mezinheiros, curandeiros, espíritas, médicos locais e não
havia meio de lhe passar de todo aquela insuportável dorzinha que não
lhe permitia comer, com satisfação e abundância, o cozido e tirava-lhe de
qualquer modo o sabor do caldo que tanto amava e apreciava.
Era ir para a mesa, lá lhe aparecia a dor e o cozido com os seus
pertences, muito cheiroso, rico de couves, farto de toucinho e abóbora,
olhava-o, namorava-o e ele namorava o cozido sem ânimo de mastigá-lo,
de devorá-lo, de enguli-lo com aquele ardor que a sua robustez e o seu
desejo exigiam.
Krat Ben Suza era solteiro e quase casto.
Na sua ambição de pequeno comerciante, de humilde aldeão tangido
pela vida e pela sociedade para a riqueza e para a fortuna, tinha recalcado
todas as satisfações da vida, o amor fecundo ou infecundo, o vestuário, os
passeios, a sociabilidade, os divertimentos, para só pensar nos contos de
réis que lhe dariam a forra mais tarde, com toda a certeza, do seu quase
ascetismo atual, no balcão de uma venda dos subúrbios.
À mesa, porém, ele sacrificava um pouco do seu ideal de opulência
e gastava sem pena na carne, nas verduras, nos legumes, no peixe, nas
batatas, no bacalhau que, depois do cozido, era o seu prato predileto.
Desta forma, aquela dorzita no estômago o fazia sofrer extraordina-
riamente. Ele se privava do amor; - mas que importava se daqui a anos,
ele pagaria para seu gozo, em dinheiro, em jóias, em carruagens, em casa-
mento até, corpos macios, veludosos, cuidados, perfumados, os mais cama
que houvesse aqui ou na Europa; ele se privava de teatros, de roupas
finas, mas que importava, se dentro de alguns anos, ele poderia ir aos
primeiros teatros daqui ou da Europa com as mais caras que escolhesse;
mas deixar de comer -- isto não! Era preciso que o corpo estivesse sempre
bem nutrido para aquela faina de quatorze ou quinze horas por dia, a
servir ao balcão, a ralhar com os caixeiros, a suportar os desaforos dos
fregueses e a ter cuidado com os calotes.
Certo dia, ele leu nos jornais a notícia que o doutor Adhil Ben Thaft
tinha tido permissão do governo para dar alguns tiros com os grandes
canhões do grande couraçado da esquadra do país -- "Witopá".
Leu a notícia toda e feriu-lhe o fato da informação dizer: "Esse mara-
vilhoso clínico é, certamente, um exímio artilheiro..."
Clínico maravilhoso! Com muito esforço de memória, pôde conseguir
recordar-se de que aquele nome já por ele fora lido em qualquer parte.
Maravilhoso clínico! Quem sabe se ele, não curaria daquela dorzita ali,
no estômago? Meditava assim, quando lhe entra pela venda adentro, o
Sr. Hutekle, empregado na Repartição das Arapucas, funcionário público,
homem sério e pontual no pagamento.
Krat foi-lhe logo perguntando:
-- Senhor Hutekle, o senhor conhece o doutor Adhil Ben Tad?
-- Thaft, emendou o outro.
-- Isto mesmo. Conhece-o, Senhor Hutekle?
-- Conheço.
-- E bom médico?
-- Milagroso. Monta a cavalo, joga xadrez, escreve muito bem, é um
excelente orador, grande poeta, músico, pintor, goal-keeper dos primeiros...
-- Então é um bom médico, não é meu caro senhor?
- É. Foi quem salvou a minha mulher. Custou-me caro... Duas
consultas...
-- Quanto?
-- Cinqüenta mil-réis cada uma... Some.
O merceeiro guardou a informação, mas não se resolveu imediata-
mente a ir consultar o famoso taumturgo urbano. Cinqüenta mil-réis!
E se não ficasse curado com uma única consulta? Mais cinquenta...
Viu na mesa o cozido, olente, fumegante, farto de nabos e couves,
rico de toucinho e abóbora vermelha, a namorá-lo e ele a namorar o prato,
sem poder gozá-lo com o ardor e a paixão que o seu desejo pedia. Pensou
dias e afinal decidiu-se a descer até à cidade, para ouvir a opinião do
doutor Adhil Ben Thaft sobre a sua dor no estômago, que lhe aparecia de
onde em onde.

Nenhum comentário: