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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 27]

Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. E
um moço muito pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de
família; precisa muito do subsídio.
Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito de
votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a secção
eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.
Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria
consegui atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que
me olhavam desdenhosamente.
Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na
urna e fiquei um momento cismando diante da esbelteza de um longo
arco abatido que, de uma única enjambée e com uma flecha relativamente
diminuta, vencia, com suave elegância, toda a largura do átrio do palácio
vice-real, onde funcionava a secção eleitoral.
Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque vi as
minhas cismas interrompidas pelo grito enérgico do coronel mesário-pre-
sidente:

-- O senhor não se levanta! berrou o homem. Obedecendo, afastei-me
corrido de vergonha e atravessei de novo por entre aquelas mesmas caras
ferozes que me tinham visto passar um pouco antes, no alevantado intuito
de influir nos destinos da Pátria.
Aguardei o resultado quieto, a um canto.
Estava seriamente interessado em impedir que o pobre Kasthriotoh
morresse de fome, com a mulher, filhos, sogra, cunhadas, etc.
Estive assim cerca de duas horas, ao fim das quais alguns daqueles
sujeitos horrendos se aproximaram e, fingindo que o faziam às ocultas,
começaram a examinar facas, punhais, estoques, garruchas, revólveres, que
traziam. Via perfeitamente tais armas e descobri que mesmo para isso é
que eles tal cousa faziam.
Fascinaram-me e não pude desviar o olhar. Foi a minha desgraça,
Deus dos Céus! Um deles ergueu o chapéu ao alto da cabeça e fez para
mim, encarando-me com horrorosa catadura:
-- Que está olhando?
-- Nada, não senhor; respondi eu.
-- Vá... Você está aí com parte de siri sem unha... Arreda!
E, sem saber como, vi-me envolvido em um formidável rolo e levei
uma porção de pauladas e quatro facadas.
Mandaram-me para a Santa Casa, onde meu amigo Hanthônio me foi
visitar:
-- Que foi isto? perguntou-me.
-- Direitos políticos.
Depois de restabelecido, vim a saber que o Kasthriotoh não tivera um
único voto e arranjara um emprego modesto que lhe dava para fazê-lo
viver e mais a família com café e pão sem manteiga. A ata (eu a pude ver
mais tarde) estava um primor de autenticidade, pois tinha sido falsificada
com toda a perfeição por um espanhol que vivia do ofício eleitoral de
falsificar atas de eleições. Eis como foi a minha estréia eleitoral."
Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a
Bruzundanga nada tem que invejar da nossa cara pátria.
XV
Uma consulta médica
NA Bruzundanga, quando lá estive, a fama do doutor Adhil Ben Thaft
não cessava de crescer.
Não havia dia em que os jornais não dessem notícia de mais uma
proeza por ele feita, dentro ou fora da medicina. Em tal dia, um jornal
dizia: "O doutor Adhil, esse maravilhoso clínico e excelente goal-keeper
acaba de receber um honroso convite do Libertad Football Club, de São
José de Costa Rica, para tomar parte na sua partida anual com o Ayroca
Football Club, de Guatemala. Todo o mundo sabe a importância que tem
esse desafio internacional e o convite ao nosso patrício representa uma
alta homenagem à ciência da nossa terra e ao football nacional. O cele-
brado mestre, porém, não pôde aceitar o convite, pois a sua atividade
mental anda agora norteada para a descoberta da composição da Pomada
Vienense, específico muito conhecido para a cura dos calos".
O extraordinário clínico vivia assim mais citado nos jornais que o
próprio Mandachuva e o seu nome era encontrado em todas as secções
dos quotidianos. A secção elegante do O Conservador, logo ao dia se-
guinte da notícia acima, editada nos sueltos do Jornal ocupou-se do famoso
médico da seguinte maneira:
"O doutor Adhil apareceu ontem no Lírico inteiramente fashionable.
"O milagroso clínico saltou do seu coupé completamente nu. Não se
descreve o interesse das senhoras e o maior ainda de muitos homens. Eu
fiquei babado de gozo."
A fama do doutor corria assim desmedidamente. Deixou em ins-
tantes de ser médico do bairro ou da esquina, como dizia Mlle. Lespinasse,
para ser o médico da capital do país, o lente sábio, o literato ilegível, à
João de Barros, o herói do football, o obrigado papa-banquetes diários; o
Cícero das enfermarias, o mágico dos salões, o poeta dos acrósticos, o
dançador dos bailes do tom, etc., etc...
O seu consultório vivia tão cheio que nem a avenida em dia de carna-
val; e havia quem dissesse que muitos rapazes preferiam-no para as proezas
daquelas que os nossos cinematógrafos são o teatro habitual.
Era procurado sobretudo pelas senhoras ricas, remediadas e pobres, e
todas elas tinham garbo, orgulho, satisfação, emoção na voz quando diziam:
Estou me tratando com o doutor Adhil.
Moças pobres sacrificavam os orçamentos domésticos para irem à
consulta do doutor Adhil e muitas houve que deixavam de comprar o
sapato ou o chapéu da moda para pagar o exame perfunctório do famoso
doutor. De uma eu sei que lá foi com enorme sacrifícios para curar-se de
um defluxo; e curou-se, embora o doutor Adhil não lhe tivesse receitado
um xarope qualquer, mas um específico de nome arrevesado, grego ou
copta, Mutrat Todotata.

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