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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 25]

É assim o mecenato da Bruzundanga. A falta de generosidade e a sua
inquietude pelo dia de amanhã ferem logo a quem examina a sociedade
daquele país, mesmo perfunctoriamente.
Basta ler os testamentos dos seus ricos e compará-los com os que
fazem os humildes iberos que lá enriqueceram em misteres humildes, para
sentir a inferioridade moral da sociedade da Bruzundanga.
Nestes últimos, há mesmo um grande pensamento da hora da morte,
quando fazem legados a amigos, a parentes afastados, a criados, a institui-
ções de caridade; mais, nos daqueles, só se topa com o mais atroz egoísmo.
Lembro-me de um ricaço de lá que, ao morrer, fez avultados legados aos
netos, filhos de sua filha, com a condição de que deviam usar o nome dele
-- cousa que, como se sabe, se não é contrária às leis, ofende os costumes.
O sobrenome tira-se do pai, lá como aqui.
Por falar em cousas de morte, convém recordar que os cemitérios dessa
gente, ou por outra, os túmulos das pessoas da alta roda da Bruzundanga
são outra manifestação da sua pobreza mental.

São caros jazigos ou carneiros de mármore de Carrara, mas os orna-
tos, as estátuas, toda a concepção deles, enfim, é de uma grande indigência
artística. Raros são aqueles que pedem a escultores que os façam. Todos
os encomendam a simples marmoristas, que os recebem, aos montes, da
Itália.
As suas casas são desoladoras arquitetonicamente. Há modas para
elas. Houve tempo em que era a de compoteiras na cimalha; houve
tempo das cúpulas bizantinas; ultimamente era de mansardas falsas. Car-
neiros de Panúrgio...
A sua capital, que é um dos lugares mais pitorescos do mundo, não
tem nos arredores casas de campo, risonhas e plácidas, como se veem em
outras terras.
Tudo lá é conforme a moda. Um antigo arrabalde da capital que, há
quantos anos era lugar de chácaras e casas roceiras, passou a ser bairro
aristocrático; e logo os panurgianos ricos, os que se fazem ricos ou fingem
sê-lo, banalizaram o subúrbio, que ainda assim é lindo.
Um dos toques da mediocridade da sociedade da Bruzundanga é a sua
incapacidade para manter um teatro nacional.
O teatro é por excelência uma arte de sociedade, de gente rica. Ele
exige vestuários caros, joias, carros -- tudo isso que só se pode obter com
a riqueza. Pois os ricos da Bruzundanga, não animam as tentativas que se
têm feito para fazer surgir um teatro indígena, e todas têm fracassado.
Ela se contenta com a ópera italiana ou com as representações de
celebridades estrangeiras.
Poderia ainda falar nas suas festas íntimas, nos seus casamentos,
nos seus batizados, nas suas datas familiares; mas, por hoje, basta o que
vai dito, e é o bastante para mostrar de que maneira a aristocracia da
Bruzundanga é incapaz de representar o papel normal das aristocracias:
criar o gosto, afinar a civilização, suscitar e amparar grandes obras.
Se falei aqui em aristocracia, foi abusando da retórica. O meu intento
é designar com tão altissonante palavra, não uma classe estável que dete-
nha o domínio da sociedade da Bruzundanga, e a represente constante-
mente; mas os efêmeros que, por instantes, representam esse papel naquele
interessante país.
Explicado este ponto, posso ir adiante nas minhas breves "notas" sobre
o país da Bruzundanga.

XIV
As eleições
DENTRE as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das
mais curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata
de pequenas cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais,
quase municipais, como eram na antiguidade, elas tomam um aspecto de
sortilégio, de adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos imensos
estados modernos. Um deputado eleito por um dos nossos imensos distritos
eleitorais, com as nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer
intelectuais, sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar
virtudes e poderes que ele quase sempre não tem. Os seus eleitores não
sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas idéias políticas, as
suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública;
é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. O eleito, porém, depois
de certos passes e benzeduras legais, vai para a Câmara representar-lhes a
vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes os sofrimentos,
sem nada conhecer de tudo isto.
A superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais
há de fazer rir os nossos futuros bisnetos.
Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo,
desde o vereador até ao Presidente da República, eram eleitos por sufrágio
universal, e, lá, como aqui, de há muito que os políticos práticos tinham
conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento
perturbador -- "o voto".
Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus
concidadãos era anarquizar a instituição e provocar um trabalho infernal
na apuração porquanto cada qual votaria em um nome, visto que, em
geral, os eleitores têm a tendência de votar em conhecidos ou amigos.

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