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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 24]


XII
A sociedade

É deveras difícil dizer qualquer cousa sobre a sociedade da Bruzun-
danga. É difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em
geral, a gente da terra que forma a sociedade, só figura e aparece nos luga-
res do tom, durante muito pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em
trinta anos, no máximo. Não há, portanto, na sociedade do momento tra-
dição, cultura acumulada e gosto cultivado em um ambiente propício. São
todos arrivistas e viveram a melhor parte da vida tiranizados pela paixão de
ganhar dinheiro, seja como for. Os melhores e os mais respeitáveis são
aqueles que enriqueceram pelo comércio ou pela indústria, honestamente,
se é possível admitir que se enriqueça honestamente.
Esses, porém, fatigados, embotados, não formam bem a sociedade, em-
bora as suas filhas e mulheres façam parte dela.
Os que formam direitamente a grande sociedade, são os médicos ricos,
os advogados afreguesados, os tabeliães, os políticos, os altos funcionários
e os acumuladores de empregos públicos.

Por mais que se esforcem, por mais que queiram, semelhantes homens,
atarefados dia e noite, nos escritórios, nas repartições, nos tribunais, nos
cartórios, na indústria política, não podem ter o repouso de espírito, o
ócio mental necessário à contemplação desinteressada e à meditação cari-
nhosa das altas cousas. Limitam-se a pousar sobre elas um olhar ligeiro e
apressado; e a preocupação de manter os empregos e fazer render os cartó-
rios, tirar-lhes-á o sossego de espírito para apreciar as grandes manifestações
da inteligência humana e da natureza.
Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com
a palavra -- medíocre.
Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas do contínuo tor-
mento de cavar dinheiro, por meio de empregos e favores governamentais,
do sentimento de insegurança de sua própria situação.
Em uma sala, se se ouve conversa das senhoras (digo senhoras), a
preocupação não é outra senão saber se fulano será ministro, para dar tal
ou qual comissão ao marido ou ao filho. Uma outra criticará tal ou qual
pessoa poderosa porque não arranjou para o pai uma concessão qualquer.
É assim.
Uma tão vulgar preocupação pauta toda a vida intelectual da sociedade
bruzundanguense, de modo que, nas salas, nos salões, nas festas, o tema
geral dos comensais é a política; são as combinações de senatorias, de
governanças, de províncias e quejandos.
A política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos;
porém uma vulgar especulação de cargos e propinas.
Sendo assim, todas as manifestações de cultura dessa sociedade são
inferiores. A não ser em música, isto mesmo no que toca somente a
executantes, os seus produtos intelectuais são de uma pobreza lastimável.
Há lá salões literários e artísticos, mas de nenhum deles surgiu um
Montesquieu com o Espírito das Leis, como saiu do de Mme. du Deffand,
As obras mais notáveis que lá têm aparecido são escritas por homens que
vivem arredados da sociedade bruzundanguense.
Em uma sala desse país, quando não se trata de intrigas políticas ou
coisas frívolas de todos os dias, surge logo um tédio inconcebível. Ele
sepulta o pensamento, antes de matá-lo: enterra-o vivo. Mereceria detalhes,
mas só fazendo romance ou comédia.
A gente da Bruzundanga gosta de raciocinar por aforismos. Sobre
todas as cousas, eles têm etiquetadas uma coleção deles.
Se se fala em uma sala ou em outro qualquer lugar de sociedade de
coisas literárias, logo um aforista sentencia:
-- A arte deve ser impessoal. Os grandes artistas, etc.
Naturalmente, ele se lembrou de Dante, que pôs no inferno os seus
inimigos e no céu os seus amigos.
Incapaz de fazer aparecer no seu seio razoáveis manifestações intelec-
tuais, ela é ainda mais incapaz de apoiar as que nascem fora dela.
A pintura, que sempre foi arte dos ricos e abastados, não tem, na
Bruzundanga, senão raros amadores. Os pintores vivem à míngua e, se
querem ganhar algum dinheiro, têm que se rojar aos pés dos poderosos,
para que estes lhes encomendem quadros, por conta do governo.
Porque eles não os compram com o dinheiro seu, senão os de vagas
celebridades estrangeiras que aportam às plagas do país com grandes carre-
gações de telas. É outro feitio da gente imperante da Bruzundanga de só
querer ser generosa com os dinheiros do Estado. Quando aquilo foi Impé-
rio, não era assim; mas, desde que passou a República, apesar da fortuna
particular ter aumentado muito, a moda da generosidade à custa do governo
se generalizou.
Se um desses engraçados Mecenas julga que deve proteger tal ou qual
pessoa; que esta precisa viajar à Europa, aperfeiçoar-se, não lhe subven-
ciona a viagem, não tira nem um ceitil dos seus mil e mais contos. Sabem
o que faz? Influi para que ele receba um pagamento indevido do Tesouro
ou promove uma fantástica comissão para o indivíduo.

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