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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 26]


Cada cabeça, cada sentença; e, para obviar os inconvenientes de seme-
lhante fato, os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme enten-
diam e davam votações aos candidatos, conforme queriam.
Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições,
o espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar.
As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mu-
heres e homens atarefados; mas para compensar tal desfalque passam
constantemente por elas, carros, automóveis, pejados de passageiros hetero-
gêneos. O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da
cidade, quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de secção,
interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor; o grave chefe,
o homem severo com os vadios de sua burocracia, não trepida em andar
de cabeça descoberta, com dois ou três calaceiros conhecidíssimos.
A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à
espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se
amontoam nas secções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as
prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia. 

Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender
a pedidos de amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão
mais prestante, que no dia do pleito, para fins eleitorais, muda de nome
e toma o do pacato burguês que se deixa ficar em casa, e vota com eles.
Isto é o que lá se chama: -- "um fósforo".
Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos, cujos
diplomas apresentam aos mesários solenes e hieráticos que nem sacerdotes
de antigas religiões. Quer um, quer outro serviço eleitoral, constituem os
préstimos mais relevantes que se podem prestar aos políticos de profissão.
Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos cô-
micos, mas, por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós,
abstenho-me de narrá-los. Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de um
ingênuo e inteligente eleitor, que descreve a sua iniciação eleitoral na Bru-
zundanga e os característicos do exercício dos direitos políticos que a sua
Constituição outorga aos cidadãos.
Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país. Ao
tempo em que nos conhecemos, ele tinha ai os seus vinte e seis anos e já
havia publicado algumas memórias interessantes sobre a paleontologia da
Bruzundanga.
Não sei, ao certo, se continuou com brilho a sua estreia brilhante;
mas, suspeito que não.
A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os
desdenhe, mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos,
como enfeites de sala banal.
O meio inconsciente de que ela se serve para tal fim, é o casamento.
O rapaz começa a fazer ruído e logo todos o cercam, já os de sua
camada, já os de camada superior, se é de extração modesta.
É natural que ele encontre entre tantas damas da roda que o cerca a
do seu pensamento.
Ei-lo casado; a mulher, porém, não pode compreender sábio que não
ganhe muito dinheiro e viva modestamente. Não compreende nem Spinosa,
nem Fabre. Se não se faz católico praticamente, o rapaz, para arranjar
bons empregos, faz-se charlatão, acólito de políticos, já não medita, perde
a pertinácia, para as pesquisas originais, publica compilações rendosas e
enche-se de cargos públicos e particulares. É esta a trajetória de todas as
"esperanças" intelectuais da Bruzundanga.
Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos
os seus iguais, se banalizou com o casamento e a consequente cavação de
empregos. Tratemos, porém, da sua estreia eleitoral, como ele me contou.
Vamos ouvi-lo:
"Pelos meus vinte e dois anos, uma manhã, li um artigo eloquente em
que se lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de inscrever
os seus nomes no próximo alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido,
Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e, nas vésperas da eleição,
pus-me a estudar os manifestos dos candidatos ao cargo espinhoso de depu-
tado. Fiquei perplexo.
Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício de
candidato, prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação de livros
e estampas; e, hoje mesmo, apesar de homem feito, passa horas e horas a
folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta demoveu-me a empenhar-lhe
o meu voto. Não durou muito essa minha resolução. Na mesma Coluna
dos apelidos do jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me com
uma grande esperança.
Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar
a aprovação compulsória dos estudantes reprovados.
Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, pode-
rão imaginar como fiquei contente com semelhante candidato.
Foi tiro e queda: decidi votar no doutor Karaban. Saí bem cedo,
para almoçar qualquer cousa.

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