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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 23]


É semelhante senhora que lá, naquelas plagas, comparam à Jeanne
d'Arc. Admirável!
Por aí, podem os senhores ver de que estofo são os heróis da
Bruzundanga; mas há outros.
Como sabem, a Bruzundanga foi, durante um século, Império ou Mo-
narquia. Há seis ou sete lustros os oficiais do seu exército começaram a
ficar descontentes e juntaram-se a outros descontentes civis, que tinham
achado para resumir as suas vagas aspirações a palavra República.
 Começaram a agitar-se e, em breve, tinham a adesão dos senhores de escravos,
cuja libertação os fizera desgostosos com o trono da Bruzundanga.
Os amigos do Império, vendo que as cousas perigavam, trataram de
enfrentar a corrente com decisão e chamaram, para condestável da
Bruzundanga, um velho general que vivia retirado nas suas propriedades
agrícolas. Era de crer que semelhante condestável pudesse ser vencido, mas que
confabulasse com os inimigos que vinha combater, não era possível admitir!

Pois foi o que ele fez. Não sou eu quem o diz; são os seus próprios
companheiros. Ainda há meses, recebi um jornal da Bruzundanga, em que
um grande e notável fabricante da República de lá contava como as cousas
se tinham passado. Narra esse senhor, como o condestável, nas vésperas
da proclamação da República, enganara aqueles que tinham depositado
confiança nele, para servir os contrários. Eis aí os começos de um herói
da República dos Estados Unidos da Bruzundanga! Ele, porém, ainda nos
merece mais algumas palavras.
Este último herói é lá chamado Consolidador da República. Sabem por quê? Porque não consolidou cousa alguma.Não houve Mandachuva, pois ele o foi, da Bruzundanga, quem mais
 desrespeitasse as leis da República. Entender-se-ia que a havia consolidado se o
seu governo fosse fecundo dentro das leis da Bruzundanga. Ele, porém,
saltou por cima de todas elas e governou a seu talante. Mostrou que as
leis da República não prestavam e, longe de consolidá-las, abalou-as nos
seus fundamentos. Tal cousa, na hipótese do seu governo ter sido bom e
fecundo; mas não o foi. Isto, porém, não nos interessa. Ele é um dos
heróis da Bruzundanga que, em falta de um Carlyle, teve um aqui escultor
que lhe fez um monumento, ereto em uma das praças da capital, monumento
 tão curioso que precisa de um guia, de um tratado escrito, para ser
compreendido. Arte do futuro; Beyreuth da Bruzundanga.
Outro herói da Bruzundanga é o Visconde de Pancome. Este senhor
era de fato um homem inteligente, mesmo de talento; mas lhe faltava o
senso do tempo e o sentimento do seu país. Era um historiógrafo; mas não
era um historiador. As suas ideias sobre história eram as mais estreitas
possíveis: datas, fatos estes mesmos políticos. A história social, ele não a
sentia e não a estudava. Tudo nele se norteava para a ação política e,
sobretudo, diplomática. Para ele (os seus atos deram a entender isto) um
país só existe para ter importância diplomática nos meios internacionais.
Não se voltava para o interior do país, não lhe via a população com as
suas necessidades e desejos. Pancome sempre tinha em mira saber como
havia de pesar, lá fora, e ter o aplauso dos estrangeiros.
Sabendo bem a história política da Bruzundanga, julgava conhecer bem
a nação. Sabendo bem a geografia da Bruzundanga, imaginava ter o país
no coração.
Entretanto, forçoso é dizer que Pancome desconhecia as ânsias, as
dificuldades, as qualidades e defeitos de seu povo. A história econômica
e social da Bruzundanga ainda está por fazer, mas um estadista (critério
clássico) deve tê-la no sentimento. Pancome não a tinha absolutamente.
A sua visão era unicamente diplomática e tradicionalista.
Estava como embaixador em um país qualquer e um Mandachuva fê-lo
Ministro de Estrangeiros. Logo que tomou posse, o seu primeiro cuidado
foi mudar o fardamento dos contínuos. Pôs-lhes umas longas sobrecasacas
com botões dourados. A primeira reforma. Tendo conseguido adjudicar
à Bruzundanga vastos territórios, graças à leitura atenta de modestos auto-
res esquecidos, a sua influência sobre o ânimo do Mandachuva, era imensa.
Convenceu-o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital. Era
preciso, mas devia ser feito lentamente. Ele não quis assim e eis a Bruzundanga,

tornando dinheiro emprestado, para pôr as velhas casas de sua
capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e
outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia
mesmo na cousa muito de cenografia.
Não contente com isto, convenceu o Mandachuva que devia adquirir
uma esquadra poderosa. Eis a Bruzundanga a pedir dinheiro aos judeus
da City para construir uma esquadra poderosa. E as festas? E os anúncios?
À vista do seu exemplo, nenhum ministro quis ficar atrás. Todos
porfiaram nos gastos. Anos depois, os deficits aumentavam, os impostos
aumentavam, os preços de todos os gêneros aumentavam; mas a gente do
país não deu pela origem da crise, tanto assim que, quando Pancome
morreu, lhe fez a maior apoteose que lá se há visto. Os heróis e o povo
da República dos Estados Unidos da Bruzundanga, são assim, caros
senhores.

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