- Isto parece a torre de Charing-T - comentou Lenina. Mas não teve oportunidade de gozar muito
tempo de tão tranquilizadora descoberta. Um ruído de passos amortecidos fê-los virarem-se. Nus do
pescoço ao umbigo, o corpo bronzeado listrado de riscas brancas («como campos de ténis de cimento»,
explicaria mais tarde Lenina), o rosto tornado inumano pela pintura escarlate, negra e ocre, dois índios
vinham correndo ao longo do carreiro. Os seus cabelos negros estavam entrançados com tiras de pele
de raposa e de flanela vermelha. Um manto de penas de peru flutuava-lhes nos ombros, enormes
diademas de plumas lançavam em volta da cabeça reflexos de tons brilhantes. A cada passo que davam,
elevava-se o guisalhar das suas pulseiras de prata e dos pesados colares de ossos e de turquesas.
Aproximavam-se calados, correndo silenciosamente com os seus sapatos de pele de gamo. Um deles
trazia uma espécie de espanador; o outro, em cada mão, o que parecia ser, à distância, três ou quatro
pedaços de corda grossa. Uma das cordas torcia-se inquietador amente, e Lenina viu de súbito que
eram serpentes.
Os homens aproximaram-se, cada vez mais perto. Os seus olhos sombrios encaram-na, mas sem darem
qualquer sinal de a terem visto ou de terem consciência da sua existência. A serpente, que antes se
retorcia, pendia agora, molemente, junto às outras. Os homens continuaram o seu caminho.
- Isto não me agrada - disse Lenina. - Não me agrada mesmo nada.
O que a esperava à entrada do pueblo ainda lhe agradou menos, quando o guia os abandonou por
momentos para ir receber instruções. Primeiro a sujidade, montes de imundícies, poeira, cães, moscas.
O rosto de Lenina franziu-se numa careta de nojo. Levou o lenço ao nariz.
- Mas como podem eles viver assim? - explodiu, numa voz de incredulidade indignada. Não, não era
possível.
Bernard encolheu filosoficamente os ombros.
- Seja como for - disse -, há cinco ou seis mil anos que eles o fazem. De maneira que creio que
atualmente devem estar habituados.
- Mas a limpeza é a aproximação da Fordinidade - insistiu ela.
- Sim, e a civilização é a esterilização - continuou Bernard, terminando ironicamente com a segunda
lição hipnopédica de Higiene Elementar. - Mas esta gente nunca ouviu falar de Nosso Ford e não é
civilizada. De maneira que não tem interesse ...
- Oh! - Ela agarrou-lhe o braço. - Olhe! Um índio quase nu descia muito lentamente a escada do
terraço do primeiro andar de uma casa próxima, degrau após degrau, com a trémula atenção da extrema
velhice. A sua cara estava cheia de rugas e era negra como uma máscara de obsidiana. A boca, sem
dentes, estava chupada. Aos cantos dos lábios e de cada lado do queixo brilhavam alguns pêlos
eriçados, quase brancos sobre a pele escura. Os longos cabelos, não entrançados, caíam-lhe em farripas
grisalhas em volta do rosto. O corpo estava curvado e tão magro que parecia não ter carne sobre os
ossos. Descia muito lentamente, parando em cada degrau antes de arriscar outro passo.
- Que tem ele? - murmurou Lenina, com os olhos esbugalhados de pasmo e horror.
- É apenas velho - respondeu Bernard com todo o desprendimento que lhe foi possível. Também ele
estava perturbado, mas fez um esforço para não o demonstrar. - Velho? - repetiu ela. - Mas o Diretor
também é velho, e há muita gente que é velha e, apesar disso, não é assim.
- Porque nós não lhes permitimos que o sejam. Preservamo-los das doenças; mantemos artificialmente
as suas secreções internas ao nível do equilíbrio da juventude; não deixamos cair o seu índice de
magnésio e de cálcio abaixo do que era aos trinta anos; fazemos-lhes transfusões de sangue novo;
mantemos o seu metabolismo permanentemente estimulado. Assim, evidentemente,O eles não têm este
aspecto. Em parte - acrescentou - porque a maioria de entre eles morre muito antes de ter atingido a
idade deste velho. A juventude quase intacta até aos sessenta anos. Depois, trás! O fim.
Mas Lenina não o ouvia. Observava o velho. Lentamente, muito lentamente, ele descia. Os seus pés
tocaram o solo. Virou-se. Nas órbitas profundas, os olhos eram ainda extraordinariamente vivos.
Olharam-na um longo momento, vazios de expressão, sem surpresa, como se ela simplesmente não
estivesse ali. Depois, lentamente, de costas curvadas, o velho, pé aqui, pé ali, passou em frente deles e
desapareceu.
- Mas é terrível! - murmurou Lenina. - É espantoso! Não devíamos ter cá vindo. - Apalpou a algibeira à
procura do soma, mas verificou que, devido a um esquecimento sem precedentes, tinha deixado o
frasco na pousada. As algibeiras de Bernard estavam igualmente vazias. E Lenina teve de enfrentar,
sem socorros exteriores, os horrores de Malpaís. Estes abateram-se sobre ela, abundantes e rápidos. O
espetáculo de duas mulheres ainda novas dando de mamar aos seus bebés fê-la corar e obrigou-a a
virar o rosto. jamais na sua vida tinha visto coisa tão indecente. E o que ainda mais agravava o facto é
que, em vez de fechar os olhos e de ter o tacto de passar adiante, Bernard começou a fazer sobre esse
revoltante espetáculo vivíparo comentários que exigiam uma resposta. Envergonhado, agora que os
efeitos do soma tinham passado, da fraqueza de que dera mostras essa manhã no hotel, esforçava-se por
se mostrar forte e livre de opiniões ortodoxas.
- Que relações maravilhosamente íntimas! - disse, ultrapassando deliberadamente todos os limites. - E
que intensidade de sentimentos elas devem criar! Parece-me frequentemente que é possível que nos
tenha faltado qualquer coisa por não termos tido mãe. E talvez, também, lhe tenha faltado qualquer
coisa a si, Lenina, por não ser mãe. Imagine-se sentada ali, com um pequeno bebé seu ...
- Bernard! Como pode ... ? - A passagem de uma velha com oftalmia e uma doença de pele distraiu a
sua indignação. - Vamo-nos embora - suplicou. - Nada disto está a agradar-me. Mas nesse momento o
guia reapareceu e, fazendo-lhes sinal para o seguirem, conduziu-os ao longo da estreita rua entre as
casas. Chegaram a uma esquina. Um cão morto jazia num monte de imundícies, uma mulher com bócio
catava piolhos na cabeça de uma garota. O guia parou ao pé de uma escada, ergueu a mão no ar e em
seguida projetou-a horizontalmente para a frente. Executando essas ordens silenciosas, subiram a
escada e, atravessando a porta a que ela dava acesso, entraram numa divisão estreita e longa, muito
escura e cheirando a fumo, gordura queimada e roupa usada durante muito tempo sem ser lavada. No
outro extremo da divisão havia outra porta por onde penetrava um raio de sol, assim como o barulho,
muito sonoro e próximo, dos tambores.
Franquearam o umbral e encontraram-se num espaçoso terraço. Abaixo deles, encerrada entre as altas
casas, estava a praça da aldeia, cheia de índios. Brilhantes mantos, penas e plumas espetadas nas
cabeleiras negras, o brilho das turquesas e as peles bronzeadas, luzentes de suor. Lenina levou
novamente o lenço ao nariz. No centro da praça erguiam-se duas plataformas de alvenaria e barro,
coberturas, sem dúvida, de câmaras subterrâneas, pois no centro de cada uma abria-se um buraco negro
com uma escada que saía da obscuridade inferior. Daí subia um som subterrâneo de flautas, que quase
completamente se perdia no rufar persistente, regular, implacável, dos tambores.
O som destes agradava a Lenina. Fechando os olhos, abandonou-se ao seu trovejar velado e repetido,
deixou invadir, completamente o seu eu consciente de tal maneira que por fim nada mais subsistiu
senão aquela única e profunda pulsação sonora. Lembrava-lhe, e isso tranquilizava-a, os sons sintéticos
das Cerimônias de Solidariedade e das cerimónias do Dia de Ford. «Orgia-folia», murmurou para si
mesma. Aqueles tambores batiam exatamente com o mesmo ritmo.
Subitamente houve uma explosão de cantos que a fez sobressaltar: centenas de vozes de homens
gritando impetuosamente, num uníssono rouco e metálico. Algumas notas prolongadas e o silêncio, o
silêncio vibrante dos tambores; depois, perfurante como um relincho agudo, a resposta das mulheres.
Em seguida, novamente os tambores, e, ainda mais uma vez, gritada pelos homens, a afirmação
profunda e feroz da sua virilidade.
Estranho, sem dúvida. O local era estranho e a música era-o também; os fatos, os bócios, as doenças de
pele, os velhos, eram-no igualmente. Mas o espetáculo em si, esse não lhe parecia ter qualquer coisa
de particularmente estranho.
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