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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 22]

Tomando posse, o famoso e prático usineiro imediatamente teve uma
grande admiração.
-- Onde está aqui agricultura?... Estes papéis... Isto não é prático!... Quero cousas práticas!... Canaviais... Engenhos... Qual! Isto não é prático! Vou fazer uma reforma!
Mandou chamar Ormesson para ajudá-lo e, nesse ínterim, andou às cristas com os seus subalternos. Vinha o chefe da Contabilidade e ele gritava:
-- Qual verba 29, letra A! Isto é uma trapalhada! Quero coisas práticas! Vou chamar o Félix, o meu guarda-livros, lá do Cambambu, a minha usina. Conhece?
O inspetor do serviço de veterinária vinha pedir-lhe autorização para instalar um laboratório e Caiana berrava:
-- Qual laboratório! Qual nada! Tudo isto é pomada! Vou mandar chamar o Nicodemo. Conhece? Pois trata toda a espécie de moléstias de animais com sangria ou óleo de andaiaçu. Quero cousas práticas! Práticas, está ouvindo?
Tendo chegado o francês e o guarda-livros, ele recomendou ao  primeiro:
-- Ormesson, vê como havemos de fazer isto aqui ser mesmo de
agricultura. Quero cousa prática! Hein? Vê lá, se vais beber! Hein? 

Ao guardo-livros, ele disse:
-- Tome conta dessas cousas de papéis aí, que não pesco nada disso.
A Nicodemo, nada o doutor Chico recomendou, porque o alveitar não  quis deixar as Canas.
O francês não bebeu e, dias depois, trouxe o projeto de transformar a chácara da Secretaria em campo agrícola.
-- Amendoim! -- exclamou o Ministro. -- Não dá nada! Se fosse  cana... "Mindobi", só para preta velha vender torrado...
Ele não conhecia, não admitia outra cultura que não fosse a da cana-de-açúcar. Ormesson convenceu-o e o ministro determinou o plantio aconselhado. Um dos diretores pediu autorização para admitir trabalhadores.
-- Trabalhadores! Ponha lá os escriturários, esses escreventes todos...
-- Mas...
-- Não tem mas, não tem nada! Quem não quiser, deixe o lugar,  que eu arranjo outros mais baratos.
Não houve remédio senão os oficiais da sua Secretaria de Estado irem puxar o rabo da enxada.
Houve, no ano seguinte, uma complicação internacional e o açúcar começou a ser procurado. Chico Caiana não se importou mais com as coisas do ministério e aproveitou a posição para ganhar dinheiro. Durante muito tempo, o Mandachuva não o viu. O guarda-livros era quem lhe levava os
atos necessitados da assinatura presidencial.
Um dia o chefe do governo perguntou ao auxiliar do grande agricultor:
-- Onde está o doutor Phrancisco Novilha?
-- Está ocupado com coisas práticas.

XII
Os heróis
A República da Bruzundanga, como toda a pátria que se preza, tem também os seus heróis e as suas heroínas.
Não era possível deixar de ser assim, tanto mais que a prática sempre foi feita para os heróis, e estes, sinceros ou não, cobrem e desculpam o que ela tem de sindicato declarado.
Um país como a Bruzundanga precisa ter os seus heróis e as suas heroínas para justificar aos olhos do seu povo a existência fácil e opulenta das facções que a têm dirigido.
O mais curioso herói da pátria bruzundanguense é sem dúvida uma senhora que nada fez por ela, antes perturbou-lhe a vida, auxiliando um aventureiro estrangeiro que se meteu nas suas guerras civis.
Para bem compreenderem o meu pensamento, é preciso que antes lhes recorde por alto alguns pontos da história política da Bruzundanga. Vou fazê-lo.
A atual república consta de territórios descobertos pelos iberos e povoados por eles e por outros povos das mais variadas origens.
Os colonizadores fundaram várias feitorias; e, quando fizeram a independência da Bruzundanga, essas feitorias ficaram sendo províncias do Império que foi criado.
Feita a República, elas ficaram mais ou menos como eram, com mais independência e outras regalias. Portanto, é claro que a evolução política da Bruzundanga tinha por expressão a unidade dessas províncias, e era mesmo o seu fim. Qualquer pessoa que tenha tentado, ou venha a tentar,
o desmembramento dessas províncias, não pode ser tido como herói nacional.
Pois bem: um senhor estrangeiro, cheio de qualidades, talvez, meteu-se de parceria com uns rebeldes, para separar uma dessas províncias do bloco bruzundanguense. Isto ao tempo do império. Em caminho, em uma de suas correrias, encontrou-se com uma moça da Bruzundanga que se apaixonou por ele. Seguiu-o nas suas aventuras e combates contra a união bruzundanguense.
Até aí nada de novo. É comum, até. Mas querer fazer de semelhante dama heroína da Bruzundanga, é que nunca pude compreender. Eu me  ponho aqui no ponto de vista dos patriotas, para os quais a pátria é uma e indivisível. Se me pusesse sob qualquer outro ponto de vista, então a
tal dama heroína nada de notável teria a meus olhos a não ser a dedicação até ao sacrifício pelo seu amante, mais tarde seu marido. Isto mesmo,  porém, não é virtude que torne uma mulher excepcional, pois é comum  nelas, a menos que tal dedicação sirva de moldura às qualidades excepcionais do seu marido ou do seu amante. No caso, porém, encarando-o estrictamente sob o aspecto da evolução política da Bruzundanga, o seu marido não era mais do que um aventureiro.

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