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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 21]


Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência
nos lugares em que têm as suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política,
fazem o que querem, são senhores de baraço e cutelo, eles ou os seus
prepostos.
O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa coberta com  o que nós chamamos sapê, e começa a trabalhar para o barão, desta ou
daquela maneira. Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso asseverar que o trabalhador agrícola daquele país -- esteja o café em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar -- há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é, dez tônios
por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e dois mil-réis, sem alimentação.
Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalhadores agrícolas. A parte povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as suas necessidades, mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu suor, em breve
deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.

Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos, e deputados, e senadores, e ministros, logo que sentem o êxodo dos naturais, começam a berrar que há falta de braços. Publicam uns fascículos desonestamente optimistas, onde há as maiores hipérboles laudatórias ao clima e à
fertilidade da Bruzundanga e atraem emigrantes incautos.
Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem "queimou os seus navios", trabalham vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias; mas já seus filhos não são assim. Logo se enchem do mesmo desânimo que os seus patrícios mais antigos, na terra, e começam a cair
naquele marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com um grande apelo à embriaguez sexual, das cantigas populares do país e cobre a roça da Bruzundanga de um sudário impalpável.
A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando em quando, a nacionalidade dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles  conseguem manter o fogo sagrado e ter trabalhadores abnegados.
Tudo isto se dá porque o fazendeiro ou grande agricultor da Bruzundanga quer ter da sua cultura lucros imensos que lhe proporcionem uma vida de fausto, a ele, aos filhos que estudam para doutor, às filhas para casarem com a nobreza do país. O crédito agrícola é, por isso, até prejudicial à lavoura da paradoxal República.
Em geral, vivem fora das propriedades, nas grandes cidades, sob o pretexto de educarem as filhas e os filhos mas com o secreto intuito de arranjar bons partidos matrimoniais para as meninas.
Foi entre semelhantes morubixabas que certo Mandachuva escolheu  um seu Ministro da Agricultura. Remontemos as origens desse cacique do açúcar, os piores da Bruzundanga, pois lidam em geral com os naturais do pais que não têm a quem se queixar. Na província das Canas, houvera
m turumbamba mais ou menos oficialmente protegido por um Manda-chuva, motivo esse que derrubou a oligarquia da família dos Cravhos. Um usineiro muito rico da mesma província, Phrancisco Novilho Ben Kosta, mais conhecido por Chico Caiana, tinha adiantado dinheiro e assoldadado
gente para que o general Tupinambá tomasse o lugar do soba-mor Cravho Ben Mathos. O general vitorioso ficou muito agradecido ao Chico, e prometeu dar-lhe uma posição de destaque na política.
Chico era o tipo do grande agricultor da Bruzundanga: nada entendia  de agricultura, mesmo daquela que dizia exercer.
As canas que moía nos seus engenhos, eram plantadas por outros, a quem ele impunha o preço do carro como bem entendia; e, no que toca à moagem e preparo do açúcar, aí já de indústria, ele nada ou pouco conhecia.
Apesar de bacharel em direito, mal lia os jornais e o seu forte, em aritmética, era a conta de juros, de cabeça. A sua usina era de fato dirigida por um francês boêmio, Ormesson, a quem chamavam de doutor, apesar de ter ele unicamente um simples curso do Conservatoire des Arts
et Métiers, de Paris.
Charles Ormesson, o tal francês, com o ser prático e hábil no ofício, era um extravagante incorrigível; e, como tal, pouco exigente de dinheiro e facilmente explorável. Bebia desregradamente e fazia do feroz doutor  Chico Novilho gato e sapato. O doutor Novilho não o despedia, apesar
de seus pruridos disciplinadores até à tirania, por sordícia. Caiana nada entendia daqueles mistérios de fazer da cana, açúcar; e, se fosse mexer nos
aparelhos, nas turbinas, dosar o caldo, etc., etc., a cousa era capaz de ex-
plodir como pólvora. Acrescia mais ainda que ele conseguia pagar a
Ormesson o que bem entedia; e, se quisesse substituí-lo, o outro talvez
custasse mais caro. Aturava o francês e explorava-o. Conservando Or-
messon, reservava o seu autoritarismo para os outros pobres diabos de
empregados subalternos, colonos e mais gente sob o seu guante.
Toda a manhã, em tempo de safra, inteiramente de branco, montado
no "Quitute", um cavalo ruço-malhado, Caiana, corria os canaviais; e, se
se encontrava com um comboio de canas, nas usineiras linhas Decauville,
olhava a pequena locomotiva e sempre se lembrava de admoestar o foguista-maquinista:
-- Olhe o manômetro que não está limpo.
Eis aí a sua agricultura, de que veio tirá-lo o braço forte do general Tupinambá. Vejamos como. Ascendendo à governança da Província das Canas, Tupinambá tratou logo de eleger senador da Bruzundanga o seu forte esteio eleitoral, o doutor Chico Caiana. Arranjaram as atas e manda-
ram-nas, e mais ele, para a capital do país.
Quando saltou, era um gozo ver o Chico Caiana atravessar as ruas com um ostentoso chapéu Panamá, terno de linho branco, botinas inteiriças de pelica amarela e açoiteira pendente do pulso direito. Olhava tudo alvarmente; e, de quando em quando, ficava surpreendido de que ninguém
o conhecesse. O doutor Chico Caiana, da usina do Cambambu! Não conhecem? Que gente fútil!
O Senado não o quis reconhecer; porém, Mandachuva, que tinha a palavra empenhada com Tupinambá, arranjou as cousas. Determinou que o Ministro da Guerra fosse estudar na Europa o fabrico dos mais modernos medicamentos alemães; transferiu o Ministro da Agricultura para a pasta
da Guerra e nomeou Caiana para aquela outra.

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