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terça-feira, 8 de outubro de 2013

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley [parte 23]

- Tome um grama de soma - aconselhou Lenina. Recusou, preferindo a sua cólera. E, enfim, Ford seja
louvado, obteve a ligação. Era mesmo Helmholtz, a quem explicou o que tinha acontecido, e que lhe
prometeu ir imediatamente fechar a torneira, sim, imediatamente, mas que aproveitou a ocasião para o
informar do que o D. I. C. tinha dito em público na véspera à noite ...
- O quê? Anda à procura de alguém para me substituir? A voz de Bernard traduzia um sofrimento atroz.
- Então sempre é verdade? E ele precisou que era a Islândia? Você diz que sim? Ford! A Islândia! ...
Desligou o aparelho e virou-se de novo para Lenina. O seu rosto empalidecera, tinha uma expressão
totalmente abatida.
- Que se passa? - perguntou ela.
- Que se passa? - Deixou-se cair pesadamente numa cadeira. - Passa-se que vão despachar-me para a
Islândia.
Frequentemente, no passado, ele tinha perguntado a si próprio o que sentiria se fosse submetido (sem
soma e sem poder contar com outra coisa a não ser a sua própria força interior) a alguma grande prova,
a alguma dor, a alguma perseguição; tinha mesmo desejado ardentemente ser atingido. Apenas há oito
dias vira-se resistindo corajosamente, aceitando estoicamente, sem uma palavra, o sofrimento. As
ameaças do Diretor tinham-no exaltado verdadeiramente, tinham-lhe dado a sensação de ser maior
que o normal. Mas isso era, via agora, porque não tomara essas ameaças a sério; não acreditara que,
quando chegasse a altura, o D. I. C. fizesse alguma coisa. Agora, ao ver que as ameaças iam realmente
ser postas em execução, Bernard ficou aterrado. Desse imaginado estoicismo, dessa coragem teórica,
nada restava.

Barafustou contra si próprio - que imbecil tinha sido! contra o Diretor - como era injusto em não lhe
dar uma última oportunidade de se emendar, essa última oportunidade que, não alimentava
presentemente a menor dúvida a tal respeito, ele sempre tivera a intenção de aproveitar. E a Islândia, a
Islândia ...
Lenina meneou a cabeça.
- «Fui» e «serei» não são da lei - citou ela. - Um grama de soma tomado, e só «sou» é lembrado.
Finalmente, convenceu-o a engolir quatro comprimidos de soma. Ao fim de cinco minutos as raízes e
os frutos tinham desaparecido, a flor do presente desabrochava, toda rosada. Uma mensagem trazida
pelo porteiro informava que, conforme as ordens do conservador, um guarda da Reserva estava à
disposição
deles com um helicóptero e esperava-os no terraço. Um mestiço de uniforme verde-gama
cumprimentou-os e sentiu-se na obrigação de recitar o programa da manhã. 
Uma rápida visita a dez ou doze dos principais pueblos, depois uma aterragem, para o almoço, no vale
de Malpaís. A pousada era confortável e lá em cima, no pueblo, os selvagens estariam provavelmente
celebrando a sua festa de Verão. Seria aí o melhor sítio para passar a noite.
Subiram para o helicóptero e partiram. Dez minutos mais tarde atravessaram a fronteira que separava a
civilização da selvageria. Por montes e vales, através de desertos de sal ou de areiâ, cortando as
florestas, descendo às profundidades violáceas dos canyons, atravessando precipícios, picos e planaltos
da mesa, a rede metálica corria irresistivelmente, em linha recta, símbolo geométrico do triunfante
desígnio humano. junto dela, aqui e ali, um mosaico de ossos embranquecidos, uma carcaça ainda não
apodrecida, sombria no solo selvagem, marcava o sítio onde veado ou touro, puma, porco-espinho ou
coiote, ou ainda enormes abutres vorazes, atraídos pelo cheiro da carne putrefacta, tombaram
fulminados, dir-se-ia que por uma justiça poética, por se terem aproximado demasiadamente dos
destruidores fios metálicos.
- Eles não conseguem aprender - disse o piloto de uniforme verde, apontando para os esqueletos no
solo por baixo deles. - Nunca conseguirão. - E riu, como se isso fosse um triunfo pessoal sobre os
animais electrocutados.
Bernard começou igualmente a rir; após dois gramas de soma, a piada parecia-lhe boa, sem que
soubesse porquê. Começou a rir e depois, quase imediatamente, adormeceu, e foi a dormir que
sobrevoou Taos e Tesuque, Nambe, Picuris e Pojoaque, Sia e Cochiti, que sobrevoou Laguna, Acoma e
La Mesa Encantada, Zuñi e Cibola e Ojo Caliente, para só acordar quando o aparelho pousou em terra.
Lenina, carregada de malas, dirigia-se para uma pequena casa quadrada e um mestiço, verde-gama
conversava incompreensivelmente com um jovem índio.
- Malpaís - elucidou o piloto, enquanto Bernard descia do helicóptero. - Ali é a pousada. E há danças
esta tarde, no pueblo. Ele leva-o. - Apontou para o jovem selvagem de aspecto sombrio. - Deve ser
engraçado - disse a rir e fazendo uma careta. - Tudo o que eles fazem é engraçado. - Depois subiu para
o helicóptero e pôs os motores a trabalhar. - Volto amanhã. E lembrem-se - acrescentou, tranquilizador,
para Lenina - de que eles são completamente inofensivos; os selvagens não vos farão mal. Têm
suficiente experiência das bombas de gás para saberem que não devem fazer asneiras. - Sempre a rir,
embraiou as hélices do helicóptero e partiu.

CAPÍTULO SÉTIMO
A mesa parecia um barco retido pela calmaria num estreito de poeira amarelada, cor de leão. O
canal serpenteava entre margens a pique. Descendo suavemente de uma a outra das muralhas através
do vale, corria uma fita verde: o rio e os campos que ele regava. À proa desse navio de pedra, no centro
do estreito e parecendo fazer parte dele, semelhante a um afloramento com a forma definida e
geométrica da rocha nua, elevava-se o pueblo de Malpaís. Bloco sobre bloco cada um dos andares mais
pequeno que o inferior, as altas casas subiam, quais pirâmides de degraus truncadas, para o céu azul.
Em baixo, um aglomerado de casas acachapadas, uma rede de muralhas. Por três lados, precipícios
caindo a pique na planície. Algumas colunas de fumo subiam verticalmente no ar calmo e nele se
diluíam.
- Estranho - disse Lenina -, muito estranho. - Era a sua habitual expressão condenatória. - Não me
agrada. E esse homem ainda me agrada menos. - Apontou o guia índio que fora designado para os
conduzir até ao pueblo. Esse sentimento era manifestamente retribuído; as próprias costas do homem,
enquanto caminhava à frente deles, eram hostis, sombriamente desprezadoras. - E, depois - baixou a
voz , cheira mal.
Bernard não tentou negá-la. Continuaram a caminhar. Subitamente dir-se-ia que todo o ar se tinha
tornado vivo e começara a vibrar, a vibrar com a infatigável pulsação do sangue. Lá em cima, em
Malpaís, os tambores soavam. Os seus pés adquiriram o ritmo desse coração misterioso. Apressaram o
passo. O carreiro que seguiam conduziu-os junto do precipício. Os flancos do enorme navio-mesa
dominavam-nos com toda a sua altura, cem metros acima.
- Se tivéssemos podido trazer o helicóptero até aqui! - disse Lenina, erguendo colericamente os olhos
para a superfície nua do rochedo que os dominava. - Detesto andar. E, além disso, sentimo-nos tão
pequenos quando estamos no sopé de uma montanha!
Continuaram a andar, percorrendo uma parte do caminho à sombra da mesa, contornaram uma ponta, e
eis que aparece, num barranco cavado pelas águas, o carreiro que subia até ao planalto. Galgaram-no.
Era um carreiro muito íngreme, que ziguezagueava de um extremo ao outro da ravina. Em certos
momentos o rufo dos tambores amortecia a ponto de ser apenas perceptível. Noutros, parecia bater tão
perto que se esperava encontrá-los na próxima curva.
Quando estavam a meio caminho do cume, uma águia passou voando tão próximo deles que sentiram
no rosto o ar deslocado pelas suas asas. Num buraco da rocha jazia um monte de ossos. Tudo era
estranho e provocava uma sensação de opressão. E o índio cheirava cada vez pior. Saíram finalmente
da ravina, em pleno sol. O cume da mesa era uma superfície plana de terra.

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