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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 20]

O cargo dá-lhe certos incômodos, mas muitas vantagens: não paga
selo nas cartas, não paga bonde, trem, nem teatros, onde continua a quase
não ir. O que o aborrece, sobretudo, são as audiências públicas -- uma
importunação para esse parente de São Luiz. Mais o amolar que lhe dão
fadiga. Ao sair de uma delas, diz à mulher:
-- Que povo aborrecido!
-- Mas que tem você com o povo? -- pergunta Mme. Mandachuva, a
Egéria conjugal.
Para distrair-se, o esclarecido Mandachuva compra um bom gramofone e instala no palácio um cinema.
É conveniente lembrar que, nesse mesmo palácio, ao tempo em que  a Bruzundanga era Império, executores famosos no mundo inteiro tinham tocado obras-primas musicais, no violino e no piano. Houve progresso...
Eis aí um Mandachuva perfeito.


X
Força armada
Na Bruzundanga não existe absolutamente força armada. Há, porém, cento e setenta e cinco generais e oitenta e sete almirantes. Além disto, há quatro ou cinco milheiros de oficiais, tanto de terra como de mar, que se ocupam em fazer ofícios nas repartições. O fim principal dessas repar-
tições, no que toca ao Exército, é estudar a mudança de uniformes dos mesmos oficiais. Os grandes costureiros de Paris não têm tanto trabalho em imaginar modas femininas como os militares da Bruzundanga em conceber, de ano em ano, novos fardamentos para eles.
Quando não lhes é possível de todo mudá-los, reformam o feitio do boné ou do calçado. É assim que já usaram os oficiais do Exército de lá, coturnos, borzeguins, sandálias, sabots e aquilo que nós chamamos aqui -- tamancos.
Entretanto, o Exército da Bruzundanga merece consideração, pois tem boas qualidades que desculpam esses pequenos defeitos. É às vezes abnegado e quase sempre generoso, e eu, que vivi entre os seus oficiais muito tempo, tendo tido muitas questões com eles, posso dizer que jamais os
supus tão tolerantes. Foi, no que me toca, um traço que, além de me surpreender, me cativou imensamente. Demais, apesar de toda e qualquer presunção que se lhes possa atribuir, eles têm sempre um sincero respeito pelas manifestações da inteligência, partam elas de onde partirem.
O mesmo não se pode dizer da Marinha. Ela é estrictamente militar e os seus oficiais julgam-se descendentes dos primeiros homens que saíram de Pamir. Não há neles a preocupação de constante mudança de fardamento; mas há a de raça, para que a Bruzundanga não seja envergonhada
no estrangeiro possuindo entre os seus oficiais de mar alguns de origem javanesa. Os mestiços de javaneses, entretanto, têm dado grandes inteligências ao país, e muitas.
A marinha da Bruzundanga, porém, com muito pouco entra para o inventário intelectual da pátria que ela diz representar no estrangeiro com os seus navios paralíticos.
Se, de fato, lá houvesse Marinha, podia-se dizer que era mantida pelo povo da Bruzundanga para gáudio e alegria dos países estranhos. 
As principais produções dos arsenais de guerra do país são brinquedos aperfeiçoados; e os da Marinha são muito estimados na nação pela perfeição das redes de pescaria que lhe saem dos estaleiros.
Uma das curiosidades da Armada daquele país é a indolência tropical dos seus navios que, às vezes, por mero capricho, teimam em não andar.
Enfim, a força armada da Bruzundanga é a cousa mais inocente deste mundo. Em face dela, todo o pacifismo ou humanitarismo é perfeitamente ridículo.

XI
Um ministro
ESTAS "notas" sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar mais. Temo, ao escrevê-las tão longas como as Histórias de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a imortalidade da obra do viajante grego.
Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e as desprezar, os contemporâneos do meu país podem achar nestas rápidas narrações de coisas de nação tão remota, moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.
Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de Mandachuva da Bruzundanga; agora, vou ver se debuxo o de um ministro daquele país.
A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola; e, como o Brasil, pode-se dizer que não tem agricultura.
O regímen de propriedade agrícola lá, regímen de latifúndios com toques feudais, faz que o trabalhador agrícola seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde é expulso por dá cá aquela palha,
sem garantias de espécie alguma -- situação mais agravada ainda pela sua ignorância, pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela incapacidade e cupidez dos proprietários.
Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer coisa, indignos da função que a obscura marcha das coisas depositou em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de formados, nisto ou naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer sentimento de nobreza
e generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos de riqueza que o mais feroz taverneiro, pimpãos e arrogantes, as suas fazendas ou usinas são governadas por eles, quando o são, com a dureza e os processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de escravos.

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