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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os Bruzundangas - Lima Barreto [parte 18]

A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições
para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o Presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse
mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não
tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
Nessa parte a Constituição foi sempre obedecida.
A República dura, na Bruzundanga, há cerca de trinta anos. Têm
passado pela curul presidencial nada menos do que seis Mandachuvas, e
não houve, talvez, um que infringisse tão sábias disposições.
A Carta da Bruzundanga, que começou imitando a do país dos gigantes, foi inteiramente obedecida nessa passagem, e de um modo religioso.
No que toca ao resto, porém, ela tem sofrido várias mutilações, desfigurações e interpretações de modo a não me permitir continuar a dar mais apanhados dela, a menos que quisesse escrever um livro de seiscentas páginas.
 

IV
Um mandachuva
OS leitores que têm seguido estas rápidas notas sobre os usos e costumes, leis e superstições da República da Bruzundanga, não devem ter esquecido que o seu presidente é chamado "Mandachuva", e oficialmente.
Já dei até algumas das exigências constitucionais que os candidatos  têm de preencher, a fim de ascenderem à curul presidencial daquele país, que fica próximo da ilha dos Lagartos, tão bem descrita pelo meu concidadão Antônio José, que as fogueiras da Inquisição queimaram em Lisboa,
O que pretendo agora, nestas linhas, é fornecer aos leitores o tipo de um presidente da curiosa República, infelizmente tão mal conhecida entre nós -- cousa de lastimar, pois ela nos podia fornecer modelos que nos  levassem de vez a completo desastre. Il faut finir, pour recommencer...
A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos  disfarçada, um General mais ou menos decorativo, o Mandachuva é sempre  escolhido entre os membros da nobreza doutoral; e, dentre os doutores, a escolha recai sobre um advogado.
É justo, pois são os advogados ou bacharéis em direito que devem  ter obrigação de conhecer a barafunda de leis de toda a natureza, embora a arte de governar, segundo o critério dos que filosofam sobre o Estado e o admitem necessário, não peça unicamente o seco conhecimento de textos de leis, de artigos de códigos, de opiniões de praxistas e hermeneutas.
As leis são o esqueleto das sociedades, mas a feição de saúde ou  doença destas, as suas necessidades terapêuticas ou cirúrgicas, são dadas pelo prévio conhecimento e exame, no momento, do estado de certas partes externas e dos seus órgãos vitais, que são o seu comércio, a sua indústria,
as suas artes, os sonhos do seu povo, os sofrimentos dele -- toda essa  parte mutável das comunhões humanas, cambiantes e fugidia, que só os  fortes observadores, com grande inteligência, colhem em alguns instantes, sugerindo os remédios eficazes e as providências adequadas, para tal ou
qual caso.
Gomo dizia, porém, na Bruzundanga, em geral, o Mandachuva é escolhido entre os advogados, mas não julguem que ele venha dos mais notáveis, dos mais ilustrados, não: ele surge e é indicado dentre os mais néscios e os mais medíocres. Quase sempre, é um leguleio da roça que, logo após a for-
matura, isto é, desde os primeiros anos de sua mocidade até aos quarenta,  quando o fizeram deputado provincial, não teve outro ambiente que a sua  cidadezinha de cinco a dez mil habitantes, mais outra leitura que a dos  jornais e livros comuns da profissão -- indicadores, manuais, etc.; e outra convivência que não a do boticário, do médico local, do professor público
e de algum fazendeiro menos dorminhoco, com os quais jogava o solo, ou  mesmo o "truque" nos fundos da botica.
É este homem que assim viveu a parte melhor da vida, é este homem que só viu a vida de sua pátria na pacatez de quase uma aldeia; é este homem que não conheceu senão a sua camada e que o seu estulto orgulho de doutor da roça levou a ter sempre um desdém bonanchão pelos inferiores; é este homem que empregou vinte anos, ou pouco menos, a conversar com o boticário sobre as intrigas políticas de seu lugarejo; é este homem cuja cultura artística se cifrou em dar corda no gramofone familiar; é este homem cuja única habilidade se resume em contar anedotas; é um homem
destes, meus senhores, que depois de ser deputado provincial, geral, senador, presidente de província, vai ser o Mandachuva da Bruzundanga.
Hão de dizer que, passando por tão-altos cargos que se exercem em  grandes cidades, nas capitais, o futuro Mandachuva há de ter recebido outras impressões e ganhar, portanto, idéias mais amplas. Naturalmente, ele há de adquirir algumas, mas não tantas que modifiquem a sua primitiva
estrutura mental.

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